Com o caos à volta, o que posso desejar para 2021 é arte sem moderação
JORGE COLI
Começo de ano impõe balanços, junto com bons votos, o que me deixa com profundo desânimo. Queria, como qualquer um, que 2021 fosse bom. Porém, ele nasce prolongando o infernal 2020.
Atravessamos meses assustadores, marcados pela pandemia mais Bolsonaro e companhia bela. Doria, que enche a boca para se apoiar na ciência ao travar a guerra oportunista das vacinas, corta verbas para a pesquisa científica, tolhendo o orçamento da Fapesp, principal financiadora do desenvolvimento científico no estado. Doria, cujo sonho parece ser o de transformar São Paulo num imenso shopping center.
Ok, houve a legalização do aborto na Argentina. Houve a derrota de Trump, o que é uma boa coisa para o mundo inteiro. Houve a afirmação de Boulos e de Manuela no cenário político e houve o fiasco do apoio presidencial aos seus candidatos a prefeitos. Mas o maluco ainda está no poleiro e, pelo gingado da traquitana, continua lá até 2022, pois nada parece indicar força e decisão capazes de removê-lo. Se tivermos a sorte de que não fique até 2026.
Assistimos, patetas, à contradança de oportunismos em volta da vacina contra a Covid, justo quando o vírus retoma o vigor e o presidente anuncia, com sorriso sinistro, que a epidemia está terminando. Enquanto, no mundo, a aplicação de vacinas começou, por aqui tudo indica que a delonga vai durar: briga de vacina contra vacina, agulha que falta, seringa que não tem.
O milico sentado na cadeira de ministro da Saúde ganhou o prêmio Maria Antonieta do Planalto ao perguntar: “Para que essa ansiedade e essa angústia?”. Vá comer brioche, ministro, enquanto tanta gente está morrendo.
Marcos Nogueira, em crônica do Cozinha Bruta, previu, com lucidez agoniada: “Acredite, não chegamos ao fundo do poço. O poço não tem fundo, aliás, e tudo pode piorar. Pode piorar, e vai piorar”.
Desemprego comendo solto, inflação passando para o galope. O Brasil cresceu 2,2% na década, enquanto o mundo chegou a 30,5%, disparidade que, assinala Gustavo Patu num artigo da Folha, nunca foi tão grande.
O relatório mundial sobre índice de qualidade de vida, divulgado no dia 15 de dezembro pela ONU, aponta que o Brasil caiu do 79º para o 84º lugar, atrás do Chile, da Argentina, do Uruguai, da Sérvia, de Cuba (pois é), do México, da Tailândia, do Peru...
O bando de facínoras no comando se elegeu proclamando o triunfo da segurança coletiva por meio da violência armada e intransigente. O que assistimos é, ao contrário, um acréscimo vertiginoso dos crimes: incitados à brutalidade e ao assassinato (recordam-se do “mirar na cabecinha”, da arminha que os eleitores da Besta faziam com a mão, do “fuzilar a petralhada”?), policiais e seguranças se intoxicaram com a atmosfera de ferocidade.
“Entre 2017 e 2019, policiais mataram ao menos 2.215 crianças e adolescentes no país. O número de mortes vem crescendo. Em 2017, representavam 5% do total das mortes violentas nessa faixa etária; no ano passado, já eram 16%”, escreveu Thaiza Pauluze na Folha. 69% das vítimas são negras e negros.
Quando os números se transformam em casos individuais, os acontecimentos adquirem tom de tragédia. As manchetes multiplicam-se: a senhora baleada dentro de casa, na cozinha; as duas meninas no jardim; o mototaxista que levou um tiro no peito, perto de sua casa, enquanto esperava, sentado na moto; o cliente do Carrefour esmurrado e asfixiado — a lista desses casos parece não ter fim.
Na Europa, vários países elencam, em placas de mármore, a lista de seus mortos da Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Deveríamos fazer isso, nós também, com o nome das vítimas inocentes, para que essa guerra interna promovida pela barbárie armada nunca fosse esquecida. Deveríamos erigir monumentos aos nossos mortos, aos mortos dos conflitos insanos e estúpidos.
Com esse caos à volta, 2020 isolou cada um de nós, deixando-nos sem o apoio de presenças amigas. Debilitou-nos em nosso confinamento. 2021 há de fazer pior.
Que remédio? Receito estes: muita música, muita. E livros. E filmes. Arte sem moderação. Cultivemos nossos jardins, físicos e espirituais. Tudo isso nos alimenta: são coisas da assim chamada cultura, que os políticos vivem querendo tolher, sonegando e cortando verbas.
Lembram-se de Xerazade, que sobreviveu contando histórias toda noite para o sultão? Pois essas coisas são as nossas Xerazades, que nos mantêm vivos para enfrentar o dia seguinte. Portanto, em 2021, o que posso desejar, caros leitores, são muitos livros, muitas músicas, muitos filmes. Belas Xerazades a todas e a todos!
Jorge Coli
Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.
Ilustríssima / FSP 2.01.2021