O governador Doria falou repetidamente sobre a Fapesp, elogiando publicamente esta Fundação. Estes merecidos elogios descrevem uma instituição mundialmente reconhecida que, respeitando religiosamente o dinheiro do contribuinte paulista, vem investindo para fazer o Estado mais inteligente, aumentando e melhorando a sua economia e contribuindo para diminuir as iniquidades sociais que nos rodeiam.
Ao mesmo tempo, o governador submete projetos de lei à Assembleia do Estado de São Paulo que retiram as reservas da Fundação (PL 529) ou propõem usar a DREM (Desvinculação de Receita para Estados e Municípios) para retirar 30% dos repasses à Fapesp em 2021 (PL 627). A distância entre o discurso elogioso e a prática é enorme. Se todas as medidas propostas nestes PLs fossem implementadas, novos projetos não poderiam ser aprovados, boa parte da pesquisa seria afetada, e a confiança que cientistas, empresários e a sociedade em geral depositam na Fapesp há décadas seria perdida.
Reconheça-se que o atentado à autonomia da Fapesp proposto pelo PL 529 foi evitado pelo próprio governador. É bem verdade que a pressão política pela retirada dessa parte do PL foi significativa. Milhares de assinaturas em abaixo assinados, dezenas de artigos em jornais e muitos meios de comunicação social, artigos de opinião em jornais de circulação nacional, entre outros, sensibilizaram o governador e, neste caso, fizeram com que a ação fosse coerente com o discurso.
Eis que no PL que apresenta o orçamento para 2021, semi-escondido, aparece um anexo onde, usando erradamente como argumento a PEC 93/2016 (DREM), se volta a atentar contra a autonomia constitucional da Fapesp, retirando mais de R$ 400 milhões dos repasses do tesouro para o ano 2021.
Voltam pois os abaixo assinados, a pressão dos artigos, as cansativas negociações entre o executivo e a Fapesp e eis que, cinco dias antes da eleição municipal, se celebra um acordo entre a Fapesp e o governo do Estado para retirar do PL 627 a menção a DREM para a Fapesp. Numa cerimônia pública, no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), devidamente paramentados, o governador Doria e o presidente da Fapesp se congratulam com a manutenção dos repasses à Fundação e, assim, a autonomia e os recursos da instituição de pesquisa parecem ser preservados.
Note-se a distinção entre autonomia e recursos, pois esta diferença, como descrevemos mais adiante, toma importância nestes últimos dias.
Tudo parecia tranquilo, mas, ao apagar as luzes, o parecer da Comissão de Finanças, Orçamento e Planejamento da Alesp que deve ser votado em plenário esta semana, reafirma o corte dos recursos destinados à Fapesp. Será que o governador foi surpreendido com este parecer ou, de novo, enfrentamos a contradição entre discurso e prática na relação do governador Doria e a Fapesp?
A autonomia da Fapesp está descrita na Constituição do Estado, e portanto, projeto de lei não deveria poder passar por cima da letra da Carta Magna do Estado de São Paulo. Esta impossibilidade foi, aliás, reafirmada em decisão recente do Supremo Tribunal Federal no caso referente a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Rio de Janeiro.
É conveniente lembrar a letra da Constituição do Estado a esse respeito. O artigo 271 diz que: “O Estado destinará o mínimo de um por cento de sua receita tributária à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, como renda de sua privativa administração, para aplicação em desenvolvimento científico e tecnológico.” É claro que as palavras importam, e o significado de “renda da sua privativa administração” dificilmente poderia ser mais claro. Sem pretender entender de contraditórios legais, lembro ao leitor que na PEC 93/2016, que sustenta o parecer desvinculatório, se lê “art. 76-A. São desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2023, 30% (trinta por cento) das receitas dos Estados e do Distrito Federal relativas a impostos, taxas e multas, já instituídos ou que vierem a ser criados até a referida data, seus adicionais e respectivos acréscimos legais, e outras receitas correntes”. Portanto, dada a diferença entre a fonte de recursos nos textos, o embate entre a letra da Constituição do Estado e a PEC pode ensejar ricos debates jurídicos. É isso que se quer?
Entre as linhas das notícias de hoje na imprensa sobre este assunto se entende que o governo Doria pode pretender recuperar o orçamento da Fapesp por decreto. Assim, uma parcela dos R$ 400 milhões poderiam retornar ao caixa da Fundação. Este procedimento acabaria em definitivo, com a autonomia da Fapesp. Sem usar meias palavras, ter-se-ia uma condição em que a Fundação teria que a cada ano negociar um adicional com o governo, negociação esta sujeita a pressões que somente podemos imaginar.
A promessa de recuperação de caixa, que atenta contra a autonomia, é ainda mais perigosa, pois alguém poderia pensar que se mantém a grana qual o problema? O problema é que o Estado de São Paulo perderia, quiçá para sempre, uma instituição que, com independência, autonomia e respeito pelo contribuinte, ajudou a construir um Estado independente.
A desvinculação anticonstitucional de recursos da Fapesp é, portanto, inaceitável, e todas as forças vivas do Estado deveriam se insurgir por mais um atentado contra o futuro do próprio Estado.
Hernan Chaimovich, Professor Emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do CNPq