A luz dos vaga-lumes faz a ciência brasileira brilhar no campo das pesquisas biotecnológicas, com recursos promissores para diagnósticos e tratamentos de doenças, testes de eficiência de medicamentos e controle da degradação ambiental
Sou réu confesso, já encarcerei muitos vaga-lumes. Atraía minhas presas com uma cantilena: "Vaga-lume tem-tem, seu pai tá aqui, sua mãe também!". A música era infalível naquelas noites de verão, em Mirante do Paranapanema, no oeste paulista. Aprisionava na caixa de fósforos a magia da luz, companheira nos momentos de escuridão.
Por alguns dias, os bichinhos brilhavam sem falhar: anoitecia e se fazia a luz, um fenômeno sem explicação, um milagre. A sensação de mistério de infância nunca se perde, mas encontrei novas admirações e explicações com outro admirador de vaga-lumes, o biólogo molecular Vadim Viviani, professor de pós-graduação das universidades Estadual Paulista (Unesp Rio Claro) e Federal de São Carlos (Ufscar campus Sorocaba).
As pesquisas sobre luciferases (enzimas responsáveis pela cor da luz) de seu grupo de estudos estão literalmente indo para o espaço neste outono de 2006. Um experimento com as enzimas embarca com o astronauta brasileiro Marcos Pontes na nave russa "Soyuz" para permanecer oito dias na Estação Espacial Internacional (ISS). E os resultados ajudarão a desenvolver produtos de uso biotecnológico, biomédico e ambiental, incluindo processos de sintetização de fármacos e de detecção de patógenos, como se chamam os agentes causadores de doenças.
Mas antes de chegar à "estratosférica" importância científica de simples vaga-lumes, vale esclarecer que a luz produzida por eles é produto de uma reação bioquímica, uma combinação de moléculas biológicas que resulta na emissão de luz fria com 90% de eficiência. Durante a vida, as diversas espécies de vaga-lumes utilizam-se da bioluminescência como defesa contra predadores, para atrair parceiros em período de acasalamento ou para enganar possíveis presas.
E não é só na fase adulta (besouro) que têm luz. Na família Lampyridae, a do besouro pisca-pisca mais conhecido no mundo, todas as espécies mantêm a bioluminescência nas etapas de ovo e larva e a maioria também enquanto pupa e adulto. As outras duas grandes famílias de vaga-lumes são Elateridae ou besouro tec-tec do tipo que eu aprisionava e Phengodidae ou trenzinho, cuja larva tem pares de luzinhas ao longo do corpo. Esta é a família que emite a maior variedade de cores entre os coleópteros.
Quanto ao ciclo de vida, nas regiões tropicais os vaga-lumes lampirídeos vivem de seis meses a um ano. Já espécies de climas temperados chegam a dois anos. Um destaque é o vaga-lume aquático (Luciola cruciata). Sua larva vive por até um ano na água, onde preda caramujos, depois sai para as fases de pupa e adulto.
Outra espécie que ganha importância é o vaga-lume elaterídeo Pyrearinus termitilluminans. Todos os anos, fim de inverno e início de primavera, esses vaga-lumes tec-tec do Cerrado dão espetáculos de luz nos parques nacionais da Serra da Canastra, em Minas Gerais, e das Emas, em Goiás. Geralmente após uma chuva, as larvas sobem em cupinzeiros, transformandoos em "árvores de natal bioluminescentes". Seu brilho atrai presas potenciais, entre cupins, formigas e outros insetos. E já há pousadas e operadores de ecoturismo anunciando a observação do belo fenômeno como atração extra no Brasil Central. Quem foi e viu, garante que é uma experiência única!
Em relação às 2 mil espécies de vaga-lumes conhecidos no mundo, nosso País está entre os de maior diversidade, com cerca de 500 espécies. Como a pesquisa com essas famílias é incipiente e tem muitas lacunas, porém, estima-se que existam outras 1.500 espécies brasileiras ainda por descobrir. "Só numa minúscula área de Mata Atlântica do município de Salesópolis, em São Paulo, já coletamos mais de 20 espécies diferentes. É praticamente a mesma quantidade de espécies conhecidas em todo o território dos Estados Unidos", comenta Vadim Viviani. E não é só. O padrão de emissão das luzes de vaga-lumes, em outras regiões do mundo, se restringe ao verde e amarelo. Mas no Brasil, além dessas cores, algumas espécies emitem o laranja e até o vermelho, caso excepcional das larvas do gênero Phrixotrix. "E ainda existem gradações intermediárias dessas cores básicas", acrescenta o pesquisador.
O grupo de estudos da Unesp integrado, além de Viviani, pelos pósgraduandos Frederico Arnoldi, Florisbela Ogawa e Antônio J. S. Neto conseguiu criar a maior biblioteca de luciferases do mundo. Ali eles mantêm um conjunto de enzimas clonadas a partir de sete espécies diferentes de besouros e mais de 30 enzimas mutantes, produzidas em laboratório. Assim, por meio da engenharia genética, a luminosidade dos vaga-lumes ganha aplicações práticas, sem impactos sobre a população natural de besouros. Marcadores bioluminosos para o estudo do funcionamento de células de mamíferos estão em uso na Europa, nos Estados Unidos e no Japão. O gene do vaga-lume é anexado ao gene da insulina, por exemplo, e se acompanha a produção da insulina no organismo através da luminosidade, com equipamentos especiais.
Outro caso é o do vaga-lume aquático espécie estudada no Brasil usado como bioindicador para avaliar a degradação de cursos d"água. O professor Nobuyoshi Ohba, do Museu Yokosuka, do Japão, levou o besouro para lá e o introduziu em rios recuperados. Agora, monitora o equilíbrio ambiental através deles. E o sucesso do método já interessa a várias prefeituras. Assim, a bioluminescência dos vaga-lumes coloca os pesquisadores brasileiros num seleto grupo de cientistas mundiais, capazes de dominar conhecimentos biotecnológicos aplicados. E o Brasil entra num mercado internacional associado a essas substâncias, que até recentemente era privilégio apenas do Japão e dos Estados Unidos. Os vaga-lumes, com certeza, nunca deixarão de ser um encantamento na infância, mas conhecê-los melhor é cultivar também uma paixão adulta muito compensadora.
Luciferases no espaço
por VADIM VIVIANI
Os vaga-lumes e outros besouros luminescentes são importantes não somente para a pesquisa científica, mas também para fins biotecnológicos e ambientais. Por dependerem de sua luminescência para a reprodução, os vaga-lumes são muito sensíveis, por exemplo, à poluição luminosa em centros urbanos. Servem, portanto, como indicadores ambientais, que nos apontam o uso excessivo de luzes artificiais.
Os vaga-lumes também são usados como indicadores ambientais para a recuperação de cursos de água degradados, em países industrializados, como o Japão. Suas enzimas luciferases, responsáveis pela emissão de luz, há muitos anos ajudam a detectar contaminação microbiológica de águas e de produtos industriais, como alimentos e bebidas. As mesmas enzimas ainda funcionam como sondas bioluminescentes no estudo de processos biológicos e patológicos a nível molecular, facilitando a análise de infecções bacterianas e virais, e até diagnósticos de câncer. E com a ajuda das luciferases é possível desenvolver testes rápidos para drogas microbicidas.
Basicamente, as enzimas produtoras de luz originalmente extraídas dos vagalumes e agora produzidas por engenharia genética em indústrias e em nosso laboratório acendem onde existe vida, de qualquer espécie, por menor que seja. São indicadores precisos, já utilizados pela agência espacial americana NASA na busca de sinais de vida em amostras minerais de outros planetas.
Por enquanto, todas as aplicações utilizaram luciferases de luz verde-amarela. Ao longo dos últimos 10 anos, porém, em nosso laboratório e com associados, clonamos e desenvolvemos várias luciferases de espécies brasileiras, que produzem luz de cores diferentes, inclusive vermelha. Algumas delas estão em teste em células de mamíferos, com diversas aplicações biotecnológicas, como os biosensores de toxicidade ambiental e bioprospecção.
Uma das luciferases mais recentes, dentre as desenvolvidas em nosso laboratório, seguirá em breve para o espaço, num projeto realizado em colaboração com a Agência Espacial Brasileira (AEB) e institutos de pesquisas da Rússia. O comportamento da enzima atomizada e misturada a reagentes será avaliado em uma câmara escura, em condições de baixa gravidade. Os resultados do experimento devem contribuir para novos desenvolvimentos tecnológicos.
Vadim Viviani é professor de pós-graduação das universidades Estadual Paulista (UNESP) de Rio Claro e Federal de São Carlos (UFScar). É também pesquisador associado do National Institute of Advanced Science and Technology, de Osaka, Japão, e representa o Brasil como conselheiro cientifico da International Society of Bioluminescence and Chemiluminescence. Seu projeto é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Para identificar as famílias
Lampirídeos: são conhecidos como piscapisca, a luz deles está no abdômen. O estágio larval dura cerca de um ano e a fase adulta, apenas um mês
Elaterídeos: são os besouros tec-tec, possuem duas lanternas no tórax, de cor esverdeada, parecem dois olhos. Uma outra luz mais amarelada fica entre o tórax e o abdômen. A larva se alimenta de insetos, vive até dois anos, e o adulto, até dois meses.
Fengodídeos: são as larvas trenzinho, possuem pares de lanternas ao longo do dorso (geralmente verde-amarelo) e uma lanterna na cabeça (verde, amarela, laranja ou vermelha, dependendo da espécie). As larvas fêmeas têm a luz mais desenvolvida. A família é mais rara, ocorre só na América do Sul. A larva se alimenta de piolhos-de-cobra, vive dois anos e o adulto, em média, uma semana.