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Pablo Mariconda (1 notícias)

Publicado em 20 de maio de 2025

Pablo Mariconda (1949-2025): filósofo da ciência que desafiou a tecnociência mercantilizada e construiu pontes entre conhecimento crítico, ética e democratização do saber

 

1.

O universo fechou uma janela para seu próprio entendimento. Faleceu em São Paulo, aos 75 anos, Pablo Rubén Mariconda, professor titular aposentado de Teoria do conhecimento e filosofia da ciência da Universidade de São Paulo (USP) e um dos principais nomes do pensamento crítico sobre ciência e tecnologia no Brasil.

Argentino de nascimento, Pablo Mariconda veio para o Brasil ainda criança, aos cinco anos de idade, acompanhado por seus pais, Anna e Letizio Mariconda. Sua trajetória reflete as possibilidades abertas pela São Paulo de seu tempo, inteiramente construída no interior do sistema público de ensino e pesquisa do país.

Foi por meio da escola pública que se preparou para cursar Engenharia Aeronáutica no ITA – instituição da qual literalmente escapou, pulando os muros durante a noite, para seguir um chamado mais profundo: explorar o desconhecido na Faculdade de Filosofia da USP, onde permaneceu desde então, em um engajamento de corpo e alma.

Com dedicação integral, consagrou sua vida à filosofia e à história do conhecimento, da ciência e da tecnologia, sempre guiado pela convicção inabalável de que o saber deve ser público e universal. Essa mesma convicção o impulsionou a enfrentar as profundas transformações que afetaram a universidade, a ciência e a própria filosofia nas últimas décadas.

Como resposta a esse cenário, engajou-se em parcerias fundamentais voltadas à análise crítica das práticas tecnocientíficas contemporâneas e de sua intensa associação com os valores do capital e do mercado – uma aliança que, segundo ele, compromete gravemente a busca pela objetividade do conhecimento.

Pablo Mariconda teve papel central na implantação e consolidação da filosofia da ciência como campo de estudo crítico e interdisciplinar, contribuindo de forma decisiva para os debates contemporâneos sobre os limites da racionalidade científica e os dilemas éticos da tecnociência.

Sua trajetória intelectual abrange múltiplas frentes: investigações rigorosas sobre a história do pensamento científico, traduções e edições críticas de obras fundadoras da modernidade, formação de quadros acadêmicos e atuação constante na crítica aos modelos reducionistas de ciência e à dependência das agendas tecnocientíficas em relação aos interesses mercadológicos.

Graduado, mestre, doutor e titular pela USP, onde foi orientado por Oswaldo Porchat e João Paulo Monteiro, Pablo Mariconda destacou-se inicialmente por estudos sobre Karl Popper, Pierre Duhem e o debate entre realismo e instrumentalismo na filosofia da ciência.

Por mais de quatro décadas, foi professor de graduação e pós-graduação na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), onde também coordenou, a partir dos anos 1980, um dos grupos mais influentes de filosofia e história da ciência da América Latina.

Como orientador, formou dezenas de pesquisadores – entre mestres e doutores – e era reconhecido por sua exigência teórica, profundidade metodológica e constante estímulo ao pensamento crítico. Muitos de seus ex-alunos ocupam hoje cargos de docência nas mais importantes universidades do Brasil.

2.

Ao longo de sua profícua carreira, publicou artigos acadêmicos, capítulos e ensaios em periódicos nacionais e internacionais de alto prestígio, além de organizar cerca de 20 livros – muitos deles frutos de projetos coletivos de pesquisa. Foi responsável por traduções de grande relevância para o público de língua portuguesa.

Destaca-se sua edição bilíngue, comentada e amplamente anotada do Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo, de Galileu Galilei, considerada até hoje a tradução mais completa dessa obra para o português. Traduziu também, com seu pai, os Discursos e demonstrações sobre duas novas ciências, além de escrever e reeditar Galileu e a nova física em uma edição primorosa, repleta de imagens e com curadoria editorial de fino acabamento. Em 2018, organizou a publicação integral, com introdução e aparato crítico, de quatro obras fundamentais de René Descartes – trabalho que foi laureado na edição de 2019 do Prêmio ABEU.

Pablo Mariconda era uma autoridade inconteste em sua área de conhecimento. Coordenou diversos projetos de pesquisa financiados pela FAPESP, Capes e CNPq. Com o apoio dessas agências, dirigiu estudos de fôlego sobre o desenvolvimento da racionalidade científica moderna, a história da constituição do saber científico e as interações entre valores sociais e práticas epistêmicas.

Um de seus projetos mais reconhecidos pela FAPESP investigou a historicidade da ciência moderna em suas dimensões filosófica, cosmológica e epistemológica. Outro, em parceria com o filósofo Hugh Lacey, aprofundou o modelo de interação ciência-valores (MI-CV), hoje amplamente debatido em redes internacionais de estudos críticos sobre ciência e tecnologia.

3.

Mas Pablo Mariconda foi também um cientista autônomo e atuou independentemente de financiamento público. Em 2003, fundou a Associação Filosófica Scientiæ Studia – uma “guilda”, como ele mesmo dizia – nascida de seu desejo de entender os modos de produzir e conduzir a ciência no mundo contemporâneo. A Associação tornou-se um núcleo de pensamento crítico, engajado e plural. Em mais de duas décadas de atuação, consolidou um catálogo que inclui 60 volumes do periódico homônimo, mais de 25 títulos de livros, traduções com aparato crítico e incursões no universo das artes gráficas e visuais.

Sua mais expressiva produção editorial, a revista Scientiae Studia, voltada à articulação entre ciência, filosofia e sociedade, tornou-se uma das mais importantes publicações acadêmicas brasileiras em ciências humanas. Com 60 edições publicadas entre 2003 e 2017, incluindo números especiais, a revista acumula um acervo de 477 artigos e mais de 520 textos. Mapearam-se ali os temas mais relevantes da filosofia, história e sociologia da ciência e da tecnologia ao longo de décadas.

Scientiae Studia resistiu ao progressivo encerramento de periódicos acadêmicos no Brasil – especialmente os da área de humanidades – graças ao trabalho incansável de Pablo Mariconda e à sua habilidade em articular equipes multidisciplinares. Foi mantida com periodicidade e qualidade rigorosas – um feito raro entre revistas vinculadas à Universidade de São Paulo. Hoje, todo o seu conteúdo permanece acessível gratuitamente em plataformas como SciELO e o Portal de Revistas da USP.

Para abrigar a Associação, Pablo Mariconda reformou, com recursos próprios, um sobrado no bairro do Butantã, em São Paulo, onde trabalhou de forma intensa e ininterrupta. Ali construiu um centro de estudos especializado, talvez o maior nos campos da filosofia da ciência e da tecnologia, com um acervo de mais de cinco mil livros físicos, além dos digitais. Esse espaço se tornou um núcleo fundamental para pesquisadores, estudantes e interessados, fortalecendo a produção crítica e interdisciplinar do conhecimento filosófico-científico no país.

A Associação foi pensada para refletir sobre os usos e fins do conhecimento científico: como ele pode ser orientado por princípios éticos, democráticos e ambientalmente responsáveis; como respeitar os direitos e a dignidade humana em meio às transformações tecnológicas; e como restaurar o papel regenerativo da natureza.

Para Pablo Mariconda, a atividade editorial e institucional era uma extensão natural de seu projeto filosófico: democratizar o saber, fomentar o pensamento crítico e fortalecer os vínculos entre ciência, cultura e sociedade.

Nesse sentido, a Scientiae Studia extrapolou os limites acadêmicos: esteve presente em feiras de arte e publicações internacionais, como nas duas edições do PLANA — Festival Internacional de Publicações, realizado na Bienal e na Cinemateca de São Paulo. Nessas ocasiões, tão afastadas do universo acadêmico tradicional, chamaram atenção as capas, o design gráfico de suas coleções e livros, os cartazes e artes relacionados aos temas de pesquisa conduzidos pela Associação. Pablo Mariconda acreditava que o belo também era fundamental na divulgação científica.

Nos últimos anos, seguiu profundamente engajado, concentrando seus esforços na análise crítica da tecnociência e dos efeitos sociais, políticos e ambientais da atual configuração das práticas científicas. Em parceria com Hugh Lacey, desenvolveu um referencial teórico robusto para demonstrar como os valores não epistêmicos – como justiça social, sustentabilidade, equidade e solidariedade – podem e devem orientar decisões científicas, desde a definição de problemas até a avaliação de impactos.

Defendia que, embora o paradigma tecnocientífico tenha se consolidado como dominante, existem alternativas epistemológicas e institucionais viáveis, que favorecem uma ciência mais democrática, ética e comprometida com o bem comum. Seus estudos sobre alternativas agroecológicas iluminam caminhos possíveis de sobrevivência humana.

Embora aposentado, seguia atuante na vida acadêmica, participando de orientações, bancas, seminários e publicações. Seu último livro, ainda inédito, articula temas de longa maturação: linguagem, conhecimento e cosmologia, com ênfase na transição entre o mundo medieval e a modernidade científica.

O projeto parte da análise da cosmologia do Renascimento, combinando leituras de Dante, Galileu e Descartes, e busca compreender a constituição das formas modernas de conhecimento. A obra será lançada postumamente. Além desse trabalho, Pablo Mariconda estava envolvido na produção de mais cinco livros, programados para 2025, que também serão publicados conforme o cronograma por ele mesmo definido.

Além de seu vasto legado bibliográfico e institucional, Pablo era conhecido por seu sorriso caloroso, seu espírito acolhedor e sua generosidade intelectual. Doava, como um pai, atenção e afeto aos amigos e alunos. Multiplicam-se as manifestações de pesar por esse extraordinário intelectual e ser humano solar.

Com a morte de Pablo Mariconda, a filosofia da ciência no Brasil perde uma de suas referências mais produtivas e atuais. Seu pensamento permanece vivo, pulsante e essencial para todos que desejam refletir criticamente sobre os sentidos do mundo em que vivemos.