O Oriente não é mais um mundo tão estranho, tão distante. O tsunami popular que varre o mundo árabe, derrubando ditaduras que pareciam inquebrantáveis, vem sendo acompanhado ao vivo pela população dos países ocidentais. Redes sociais, como o Twitter, dão voz aos insatisfeitos mundo afora. O eco é instantâneo. Mas o Ocidente não é apenas espectador da crise política que atinge o norte da África e o Oriente Médio. A onda que nasce lá bate cá. Europa, Japão, Estados Unidos e Brasil, dependentes economicamente daquela região, já começam a sentir os efeitos das manifestações que surgiram na Tunísia e, em dois meses, num efeito dominó, se espalharam por outros 14 países, entre os quais Egito e Líbia, chegando até mesmo à China.
O temor virou realidade. As bolsas de valores em todo o mundo fecharam em baixa durante a semana, enquanto o preço do petróleo disparou. O abalo econômico foi consequência, sobretudo, dos protestos na Líbia, primeiro grande produtor do combustível fóssil a entrar no circuito dos levantes populares. O mundo receia uma crise de abastecimento, embora a Organização de Países Exportadores de Petróleo (Opep) tenha assegurado que aumentará sua produção de petróleo em caso de escassez no mercado decorrente dos protestos, que pedem a saída do ditador Muamar Kadafi, há 42 anos no poder. A Arábia Saudita, que tem 4 milhões de barris extras de petróleo diários dos 5 milhões que constituem a capacidade excedente mundial, também garantiu que o produto não faltará.
A Líbia, membro da Opep, tem a maior reserva de petróleo da África e é a nona maior produtora mundial, com uma produção estimada de 1,69 milhão de barris por dia, de acordo com a Agência Internacional de Energia (AIE). É um dos principais fornecedores da Europa. Um terço do petróleo líbio é exportado para a Itália. A Alemanha recebe 178 mil barris/dia do país norte-africano, seguida de França (133 mil) e Espanha (115 mil). A reserva líbia é de 42 bilhões de barris. O turbilhão de protestos levou companhias petroleiras estrangeiras a interromperem os trabalhos e repatriarem seus cidadãos.
Muamar Kadafi cumpriu papel central na questão do petróleo líbio. Quando chegou ao poder, em 1969, as companhias petroleiras do país eram quase todas americanas. O coronel, que sempre governou com mão de ferro, nacionalizou o combustível, limitou a produção e criou a Companhia Nacional de Petróleo (NOC, na sigla em inglês). Só foi abrir espaço para empresas ocidentais 20 anos depois.
O diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), Adriano Pires, diz que o Ocidente já começa a sentir na pele os reflexos da crise política no Oriente. "Este momento turbulento já está afetando o Ocidente porque a Líbia é o primeiro grande produtor de petróleo a entrar na rota de manifestações antigovernistas. Mais que isso, Kadafi é um símbolo no Oriente Médio", afirma, em entrevista por telefone. "Isso pode desencadear algo muito maior. Há um aumento no preço do barril de petróleo, que pode chegar a até US$ 130. É problema para o mundo inteiro", acrescenta. Pela primeira vez em dois anos e meio, o preço passou dos US$ 100.
A instabilidade ameaça até a perspectiva de 4,4% de crescimento econômico mundial em 2011. Existe o risco de o planeta voltar a viver os dias difíceis da crise internacional de 2008, da qual o Brasil escapou incólume. "Uma crise desta dimensão pode acentuar o viés de alta e obrigar o mundo a rever as taxas de crescimento da economia mundial, inclusive a brasileira", observa. A Líbia exporta 3% de seu petróleo para o Brasil. A especulação, porém, começou antes, com a explosão dos protestos no Cairo e em outras cidades egípcias, que resultaram na queda do presidente Hosni Mubarak. O Egito não é grande produtor de petróleo, mas o Canal de Suez cumpre papel central como corredor de abastecimento para a Europa. O caldeirão no mundo árabe pode também repercutir no aumento do preço das commodities, sobretudo as agrícolas.
Os rebatimentos no Ocidente, no entanto, não são só econômicos. Implicações geopolíticas podem emergir. A mudança de governo no Egito, com a renúncia de Mubarak, aliado histórico dos EUA, pode fazer com que os americanos percam influência na região. Tudo vai depender de como será feita a transição política, salienta o professor de relações internacionais Márcio Scalercio, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). "Ninguém pode dizer que tipo de governo vai surgir, que tipo de situação política vai brotar. Se tudo ocorrer da forma mais otimista e o Egito tiver um sistema político aberto, independência de poderes e eleições diretas, necessariamente o governo vai ser menos alinhado ao Ocidente do que era com Mubarak, apesar de ainda dependente do investimento internacional", considera. E, mesmo que as transformações desencadeiem uma maior independência em relação aos Estados Unidos, o governo Barack Obama deve adotar postura cuidadosa, na opinião do professor carioca. "Um dos pilares da política externa americana é tentar ter relações amistosas com esses governos para eles continuarem contribuindo no combate a grupos radicais islâmicos", explica.
No Iêmen, a população tem ido às ruas de Sanaa e de outras cidades para pedir a derrubada do presidente Ali Abdullah Saleh, há 21 anos no comando do país. Aliado estratégico dos EUA no combate ao terrorismo, uma eventual queda do governo poderia lançar dúvidas sobre o futuro. O governo americano também tem bases militares no Bahrein, outro foco de protestos.
Outra grave implicação que o Ocidente já enfrenta ante as revoltas no norte da África e no Oriente Médio é a fuga massiva de imigrantes, sobretudo para a Europa. Em torno de 6.300 imigrantes tunisianos chegaram à Itália desde o início dos levantes. A Tunísia foi o nascedouro da Revolução de Jasmim. As manifestações começaram em Túnis após um homem atear fogo ao próprio corpo ao ter as frutas e verduras que vendia confiscadas pelo governo, em 17 de dezembro. O presidente Zine el-Abidine Ben Ali foi derrubado em 14 de janeiro, em protestos que deixaram mais de 200 mortos. A repressão ainda mais violenta na Líbia pode forçar uma migração ainda maior para o continente. "A migração pode ocorrer em volume maior, por estarem fugindo da instabilidade, mas é um fenômeno antigo. O que pode acontecer em médio prazo é uma situação inversa. Caso haja regimes democráticos na região, é possível que essas pessoas retornem", vislumbra Scalercio.
O vizinho da revolução egípcia
O mundo árabe sempre fez parte de sua vida. Filho de imigrantes libaneses, é um brasileiro com sangue oriental. Ficou famoso por traduzir para o português a obra As mil e uma noites, clássico da literatura do Oriente Médio. Dedica sua vida a estudos sobre a literatura árabe clássica. Há pouco mais de um mês, sua ligação com a região ficou ainda mais fortalecida. O paulista Mamede Mustafa Jarouche foi vizinho da história. Ela aconteceu bem ali, do seu lado, a menos de 10 minutos a pé da casa onde está morando, na região central do Cairo. Jarouche está, desde 22 de janeiro, vivendo na capital egípcia, a poucas quadras da Praça Tahrir, símbolo da luta de um povo que derrubou o presidente Hosni Mubarak, que ficou 30 anos no poder.
Em discurso na TV estatal, o ditador renunciou, em 11 de fevereiro, após 18 dias de intensos protestos e mais de 300 mortos. Uma multidão embevecida entre civis e militares, todos um só foi à Tahrir festejar. Jarouche também.
"Pude acompanhar a primavera do mundo árabe de perto. Foi uma feliz coincidência estar aqui. Foi impossível não acompanhar, não participar. Estive na Praça Tahrir. O povo tomou conta da cidade toda, do país inteiro. Embora muita gente tenha achado isso surpreendente, uma hora tinha que acontecer", afirma, por telefone, do Cairo, o professor do Departamento de Letras Orientais (DLO) da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
CULTURA
O bacharel em letras acredita que as implicações pós-revolta no mundo árabe para o Ocidente serão, também, culturais. Muda, segundo ele, o olhar ocidental sobre o Oriente. "As manifestações servirão para quebrar preconceitos do Ocidente, deslocar certas ideias, como a respeito da imobilidade. Tivemos aqui no Egito uma revolução pacífica. A violência praticada foi do Estado, não dos cidadãos. As massas saíam marchando nas ruas e se concentravam na praça. O Ocidente se entusiasmou com isso", pondera.