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Gazeta Mercantil

Zé Kovács, o fazedor de aviões (1 notícias)

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Por José Roberto de Alencar - de São José dos Campos
Húngaro naturalizado, ele projetou, sozinho ou em equipe, 56 aviões e planadores. Ao alistar-se, na Legião Estrangeira do exército francês em Salzburgo, na Áustria, em 1948, o fugitivo húngaro foi informado de que podia ter nova identidade legal, com a idade e a nacionalidade e o nome que escolhesse. Declinou. Preferiu continuar Kovács József Gábor. Nos -15°C da madrugada de 14 de dezembro daquele ano. Gábor tintava entre os refugiados embarcados no navio militar americano General Stuart em Briner Haven para o Brasil. Ao descer nos 40°C do verão carioca, quinze dias depois, Kovács József Gábor descobriu que aqui a troca de identidade é compulsória: ganhou documentos de Joseph Kovács, invertido, com ph e sem Gábor. Daí a Zé Kovács foi um pulo. Meio século depois, já erram seu nome em tudo quanto é língua. Até de Kova'cs é chamado em importantes revistas estrangeiras, como a Falco Bullders Let-ter. Não liga. O nome é o de menos diante do renome universal do fazedor de aviões, que já foi comparado a Reginald Mitchell, o projetista do Spitfire, e a sir Sydney Camm, do Hurricane, considerados os salvadores da Inglaterra na Segunda Guerra Mundial. Tímido, ruboriza quando o lembram da comparação: "Um exagero absurdo", diz. "Não acho", rebate Roberto Pereira de Andrade, o mais dedicado pesquisador da indústria aeronáutica do Brasil. "Kovács, como Osires Silva, Ozílio Carlos da Silva e Guido Fontegalante Pessoti, seus colegas na equipe fundadora da Embraer, estão entre os maiores projetistas de aeronaves de todos os tempos". Se outro mérito não tivesse, Kovács mereceria o espaço que recebe das publicações especializadas do mundo inteiro por ter concebido e desenvolvido o Universal T-25. Os 150 exemplares desse avião vendidos pela Neiva substituem com vantagens, no treinamento avançado de pilotos, o North American T-6, o lendário Te-meia, da Esquadrilha da Fumaça, dono de tropa dobrada: 600 cavalos. "Com metade da potência, 300 HP, é mais ágil, mais rápido, mais macio e mais eficiente", diz Andrade. Kovács concebeu e projetou, sozinho ou em equipe, nada menos do que 56 aviões e planadores. Onze deles saíram da prancheta e do chão, como o primeiro planador popular do Brasil - o Periquito, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, IPT (oito exemplares). E pelo menos seis emplacaram sucesso comercial, como o Regente, da Neiva (125 exemplares), e o Tucano da Embraer, que já vendeu mais de 700. Na verdade, vê-se o dedo de Kovács em boa pane dos mais criativos aviões brasileiros de 1950 para cá. ZÉ KOVÁCS, O FAZEDOR DE AVIÕES José Roberto de Alencar - de São José dos Campos Desembarcado no forno carioca em 29 de dezembro de 1948, em poucos dias arrumou emprego numa fábrica de implementos agrícolas. Em semanas, entrava como desenhista de pista de pouso, oficinas e hangares na Real Transportes Aéreos (que mais tarde incorporaria a Aerovias na prática e no nome). Lá também parou pouco: em agosto de 1949, já trabalhava no IPT, ao lado da antiga Politécnica da Tiradentes, em São Paulo. Enturmado, entrou de sócio em um planador e usava a pista paralela à raia de remo do Tietê mantida na Cidade Universitária pelo Politécnico, primeiro clube brasileiro de planadores. No IPT, Kovács participou do projeto do Marreco, biplace (dois assentos) de treinamento, e da reconstrução do venenoso planador Caboré, que acabaria por matar o piloto Mauro Cupertino antes de ser doado ao Club de Vôo à Vela de São José dos Campos, de onde voltou em 1972, para um lugar de honra que ainda é seu no Museu Aeronáutico do Ibirapuera. Do IPT, Kovács foi em 1952 para o CTA. Centro Técnico de Aeronáutica que o governo brasileiro montava em São José dos Campos. Foi o primeiro assistente do alemão Henrich Focke, o chefe do CTA (que fundara a Focke Wulf Flugzeugbau Gmb em 1924, uma das mais bem sucedidas fábricas alemãs de aviões, e em 1938 a Focke Achgelis, fábrica de autogiros e helicópteros. Focke, com Kovács e equipe, só não fizeram no Brasil o primeiro avião de decolagem vertical do mundo, 30 anos antes dos EUA, porque a Inglaterra roeu a corda e não forneceu a turbina prometida para o Convertiplano - avião com duas hélices na cauda e duas nas asas, que na decolagem giravam na horizontal, como a do helicóptero, e lá em cima mudavam para a vertical. Em 1960, Kovács saiu do CTA para a Sociedade Construtora Aeronáutica Neiva, resultante da associação, promovida pelo coronel aviador Aldo Weber Vieira da Rosa, entre o CTA, a Cia. Aeronáutica Paulista (a CAP, de Francisco Baby Pignatari) e José Carlos de Barros Neiva. Uma associação muito interessante. O CTA tinha a melhor tecnologia e os melhores cérebros, inclusive tirados do PT; o dinâmico Neiva era simplesmente brilhante e Baby, o playboy brasileiro que namorava as musas mais famosas do mundo, além de milionário era também do ramo: desde 1941 fabricava em Utinga (bairro de Santo André, no ABC paulista, onde o grupo Pignatari dava 5 mil empregos), planadores como o Alcatraz (cópia do alemão Grunau Baby) e o Saracura (sob licença comprada do IPT) e aviões como o Ypiranga (comprado da Empresa Aeronáutica Ypiranga). Sem falar nos CAP-3 e CAP-4, o teco-teco Paulistinha, que a Campanha Nacional da Aviação, lançada pelo presidente Getúlio Vargas e apoiada pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand transformaria num dos maiores sucessos comerciais da indústria aeronáutica brasileira. Monomotor de asa alta e linha clássica (imitação, como o HL-1 de Henrique Lage, do Pipper J-3 ou do Taylor Cub), o Pau-listinha abasteceu a FAB e os aeroclubes e ainda era exportado para Uruguai, Paraguai, Argentina, Chile, Estados Unidos, Portugal, Itália. Kováçs criou em São José uma divisão de projetos para a Neiva e ali idealizou, projetou, desenvolveu e construiu o Universal. O Regente também foi projetado e construído por ele, que sempre faz questão de testar suas criações, sozinho, antes de liberá-las para outros pilotos acrobáticos - "não seria justo arriscar a vida alheia numa criação não testada pelo autor", diz. Por isso, acordou todo feliz no dia 25 de agosto de 1961, data marcada para o vôo inaugural do Regente. Mas Jânio Quadros renunciou justamente naquele dia a Presidência da República, e a evolução de avião desconhecido nos céus de um país fervilhado de tropas em prontidão poderia parecer provocação. Em 1973, a Neiva perdeu Kovács para a Embraer (que acabaria engolindo a Neiva toda). E foi na Embraer que ele se aposentou em 1990. Aposentado, não pára quieto. Aos 72 anos, feitos na semana passada, dá aulas e cursos no CTA de São José e procura sarna para se cocar na Força Aérea Brasileira que, talvez por falta de verba, não diz "sim" à sua oferta de reconstruir a frota de 150 Universal T-25 ainda em operação nas bases aéreas. "Esses aviões estão fatigados, já não têm o antigo desempenho. Necessitam de renovação urgente". Enquanto espera pelo ok da FAB, Kovács cuida de uma boa idéia, o K-51: monoplano biplace de madeira apelidado Tucaninho para treinamento básico. Começou a fazê-lo em casa. Esta ficou pequena e ele o levou para um hangar do aeroclube de São José, que também ficou pequeno e ganhou um puxado. Prazos, não há., Depende da disponibilidade de dinheiro e tempo dos filhos, o engenheiro mecânico André, de 40 anos, e o engenheiro civil Otávio, de 38, comandante da Varig. (O mais velho, Marcos, morreu em 1958 num acidente de planador). Não tentarão homologar o K-51. A idéia é vender a planta para amadores construírem em casa - negócio fraco no Brasil, mas quente nos EUA. Ninguém duvida do sucesso do empreendimento ou da qualidade do aviãozinho, embora nem pai nem filhos sejam engenheiros aeronáuticos. É. Ele não tem diploma de engenheiro aeronáutico. É só um gênio que veio dar com os costados no Brasil por obra e graça da União Soviética. Essa o Brasil ficou devendo aos comunistas. Nascido em 1926, em Mezötúr, na planície central da Hungria (a Puszta), 140 km ao Sul de Budapeste, o filho do meio de Ferenc e Eszter Kovács - adorava avião. Velho funcionário dos correios, Ferenc - herói da guerra contra a Sérvia, corajoso e valente -jamais entrou numa carlinga e detestava ver o filho metido numa. Mas nada fez para evitar que ele tirasse o breve de volovelista (para planadores) aos 16 anos. Ferenc não podia reprimir o eterno primeiro da classe, que agora brilhava no curso de engenharia industrial e mecânica em Budapeste -equivalente ao de engenharia operacional no Brasil. Aí estourou a Segunda Guerra, os bombardeios de 1943 e 1944 arrasaram Budapeste, o exército soviético ocupou a Hungria e os vôos civis de qualquer natureza foram proibidos. A guerra, a sangueira, o barulhão, o sumiço do irmão mais velho (que só reveria em 1982), tudo dava para suportar. Mas voar era fundamental demais para um Kovács József Gábor de 22 anos. Revoltado, juntou-se a outros dois rapazes que com ele faziam vôos clandestinos nas madrugadas mais claras - Ferenc Kecsméthy e Lazslo Mandl -, tomaram o trem de Györ, saltaram na aldeia adequada e, à noite, cruzaram a pé a fronteira da Áustria. As autoridades inglesas de ocupação lhes deram salvo-condutos e, em Salzburgo, os três se alistaram na Legião Estrangeira. Agora documentados, agasalhados e bem alimentados, foram até Bregenz, a última cidade, na ponta da botinha da Áustria, no lago Constança. Do outro lado, a Suíça Kovács, que não era besta, pediu baixa da Legião e se asilou no campo de Vorkloster-Lager de refugiados. Ferenc e Lazslo foram para a Indochina, apanhar dos vietnamitas até a batalha final, de Dhiem Bien Phu, quando o pessoal do general Nguyen Vo Giap botou franceses com Legião e tudo dali para fora, em 1954. Como se vê, se os soviéticos não fossem tão implicantes, o Brasil não teria herdado o mais profícuo engenheiro operacional da Hungria: Zézinho Kovács. SP FEZ A PRIMEIRA AERONAVE SUL-AMERICANA Enquanto Paris se encantava com o avião do brasileiro, paulistas aplaudiam o do francês. Na mesma época em que o brasileiro Santos Dumont encantava Paris com seus Demoiselle - aviões que ele construía na França, com técnicos e materiais franceses -, o francês Demetre Sensaud de Lavaud fazia em São Paulo, com mecânicos e marceneiros brasileiros, o primeiro avião da América do Sul. E para construir o seu S. Paulo, Demetre não usou um único grampo que fosse importado. Como conta o jornalista Roberto Pereira de Andrade, maior pesquisador do ramo, em livros como A Construção Aeronáutica no Brasil (Brasiliense, 302 páginas, esgotado) e Enciclopédia de Aviões Brasileiros (Globo, 405 páginas, R$ 60), até o motor foi fundido, usinado e montado em São Paulo, com pistões, bielas, tudo saído da indústria paulistana, que também forneceu o cretone envernizado das asas (que se moviam com o leme) as rodas de bicicleta com raias reforçadas e demais peças metálicas. Aliás, poucas. A coisa projetada e bancada desde 1908 por Demetre se resumia a um emaranhado de cabos e um engradado de sarrafos de pinho e peroba de 102 m de comprimento por 1 de largura e outro de altura. Atrás, em baixo, a bequilha era uma roda igual às duas lá da frente, sob o par de asas enteladas: 10m de envergadura garantiam uma superfície alar de 18 m2, fora os 4 m2 do leme horizontal. De metal, só o tanque, as rodas no eixo dotado de criativo estabilizador fixo os maneies e o motor rotativo de seis cilindros e 45 HP. Construído pelo mecânico Lourenço Pelegati, o motor girava com a hélice - o eixo é que era fixo - e isso resolvia o nó da refrigeração. Já a hélice (o hélice, para os dicionários) foi desenhada por Lavaud e esculpida em jequitibá pelo carpinteiro Antônio Damosso. O giro dava 2.1 m de diâmetro e o passo, 30 cm. Às 5h50 de 7 de janeiro de 1910, o 5. Paulo percorreu 10 metros num descampado de Osasco, decolou e voou 103 metros, entre 2 e 4 metros de altura, a quase 60 km/h, para delírio da multidão atraída pelos jornais. Após essa glória de pouco mais de seis segundos e o pouso pouco elogiável voou mais algumas vezes, ficou exposto na sala de espera do luxuoso cine Polytheama, foi vendido e virou graveto quando o comprador tentou imitar Lavaud - quis voar, veja só! Isso dá a Lavaud o título de pioneiro da indústria aeronáutica sul-americana? O historiador Andrade não é tão categórico. Ele conta que no dia 8 de agosto de 1709, o padre Bartolomeu de Gusmão se exibiu para o rei D. João V, diante da corte portuguesa em peso e de embaixadores europeus, voando direitinho em seu balão de ar quente batizado Passarola. Balão não vale? Então estão desclassificados o dirigível patenteado em 1890 pelo paulista Gastão Galhardo Madeira e os construídos pelo paraense Júlio César Ribeiro de Souza; o registrado no mesmo ano na Alemanha pelo mineiro Leopoldo Corrêa da Silva; o patenteado pouco depois no Rio, Paris e São Petersburgo por Carlos Rostaing Lisboa; o de alumínio e tela do jornalista e abolicionista José do Patrocínio; e os do potiguar Augusto Severo de Albuquerque Maranhão - que, por sinal, se estatelou cora seu mecânico francês George Sachet em plena Avenue du Maine, na manhã de 12 de maio de 1901, quando uma fagulha do motor explodiu o hidrogênio do Fax, o dirigível que testavam em céus parisienses. Tudo bem que balão não valha. Mas e as asas de pau e tela do paraibano Marcos Barbosa? Com elas às costas, Marcos voou muito (e se machucou pouco), bem antes de o alemão Otto Lilienthal registrar seu planador, em 1894. Já o planador do alferes Paulino Júlio de Almeida Nuro, o Jaburu Voador registrado em 1899, jamais foi construído: o exército brasileiro o considerou carente de "fundamentos científicos". Devia ser. Paris também esnobou o Jaburu Voador, em 1901, cinco anos antes de se embasbacar com o 14-Bis do outro brasileiro, Alberto Santos Dumont. O PROGRESSO CHEGOU DE AEROPLANO São José dos Campos tem hoje meio milhão de habitantes e é sede do maior complexo industrial da eixo Rio-São Paulo. De 1950 para cá, sua população foi multiplicada por dezoito e sua importância econômica, sabe Deus por quanto. Nos anos 50, a imensa sesmaria dos Clemente só exibia a Tecelagem Parahyba (de 1925) na Fazenda do mesmo nome, que abrangia meia dúzia de municípios - e pertencia aos Clemente, claro -, a Rhodia, que em 1946 instalou a fábrica de rayon na fazenda comprada de Pedro Rachid e umas tantas cerâmicas. Em 1950, cidade ganhou a via Dutra asfalto e, melhor, o Instituto Tecnológico de Aeronáutica e o Centro Tecnológico de Aeronáutica. Desembestou. Atrás do CTA desandaram a chegar fábricas de aviões como a da Neiva e de tudo o mais, como a da Johnson & Johnson, inaugurada em 1953 na antiga fazenda do Tão, a da Ericsson de telefonia em 1954, a Tecelagem Kanebo em 1956, a Eaton em 1957, a General Motors de camionetas em 1959, a Alpargatas em 1960, a tecelagem da Matarazzo e a Amplimatic em 1964, a Avibrás em 1965, a Embraer em 1969, a National (que hoje só faz pilhas) e a Bundy Tubing (fábrica de flexíveis de cobre da Philco e da Ford) em 1970, a Refinaria Henrique Lage (uma das maiores da Petrobrás, por sinal batizada em, homenagem a um dos pioneiros da indústria aeronáutica brasileira), a Kodak e a Fuji Film (de fotografia), a Phillips (eletrônica), a Orion (que faz borrachas para vedação automobilística), a Hitachi (fábrica de condicionadores de ar), a GMC Caminhões... E tanto progresso e tantas indústrias chegaram que a cidade nem se lembra mais de como se impressionava com as acrobracias aéreas do legendário Berteli, ou com o alemão que sempre ia lá visitar sua fundição, a Fiel. O alemão impressionava porque chegava de avião. Hoje, avião continua quase sinônimo do progresso de São José dos Campos. Mas não impressiona a mais ninguém por lá.