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Yara Schaeffer Novelli fala sobre ameaça aos manguezais (1 notícias)

Publicado em 16 de junho de 2016

Por Maria Guimarães

Yara Schaeffer Novelli: No atoleiro do manguezal

Transitando entre ecologia, políticas públicas e educação, a aposentadoria não é motivo para repouso

A paixão de Yara Schaeffer Novelli pelos manguezais está longe de ser romantismo diante de uma paisagem bucólica ou de animais peculiares.  Sua visão abrange a paisagem, a flora, a fauna, o mar, a terra, as pessoas, a economia, a legislação.  Para ela, o ecossistema na fronteira entre o continente e o oceano, que funciona como berçário para uma infinidade de organismos marinhos, só pode ser enxergado e trabalhado com uma visão múltipla.

Foi isso que ensinou aos estudantes no Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), onde montou o laboratório batizado como Bioecologia de Manguezais (Bioma), que geriu até a aposentadoria em 1998.

De lá para cá mantém atividades de docência e orientação, tanto no IO como no Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental, também da USP, e no âmbito da entidade não governamental que criou para continuar sua batalha.  Nestes tempos em que o uso desordenado da terra e as mudanças climáticas ameaçam o território dos manguezais, não dá para descansar.

Por que você escolheu os manguezais, que muita gente descreve como um lamaçal malcheiroso?  Começou com uma visão de recursos pesqueiros.  É um berçário, uma área abrigada, protegida, cheia de larvas e animais jovens.  No meio daquelas raízes meio estranhas há jovens de peixes de valor comercial e as primeiras fases de vida de camarões.  Esse crustáceo se reproduz em mar aberto e entra no estuário para comer e crescer.  E tem aquelas árvores muito esquisitas, vivíparas, das quais caem plantas já brotando, prontas para se enterrarem na lama.  Fui cativada depois de adulta.  No mundo da ocea-nografia não se percebiam essas coisas, então me vali da botânica: como funcionam essas árvores?  Como se instalam nesse lugar?  Aí se amplia o horizonte e a complexidade aumenta.  Fui de trás para a frente: do produto do manguezal para o grande cenário.

Por que você escolheu os manguezais, que muita gente descreve como um lamaçal malcheiroso?

Começou com uma visão de recursos pesqueiros.  É um berçário, uma área abrigada, protegida, cheia de larvas e animais jovens.  No meio daquelas raízes meio estranhas há jovens de peixes de valor comercial e as primeiras fases de vida de camarões.  Esse crustáceo se reproduz em mar aberto e entra no estuário para comer e crescer.  E tem aquelas árvores muito esquisitas, vivíparas, das quais caem plantas já brotando, prontas para se enterrarem na lama.  Fui cativada depois de adulta.  No mundo da oceanografia não se percebiam essas coisas, então me vali da botânica: como funcionam essas árvores?  Como se instalam nesse lugar?  Aí se amplia o horizonte e a complexidade aumenta.  Fui de trás para a frente: do produto do manguezal para o grande cenário.

No início você estudava fauna litorânea, não necessariamente de manguezal.  Como foi parar lá dentro?

Em 1976 participei de um simpósio sobre oceanografia biológica em El Salvador, quando a comunidade científica estava alarmada com a perda dos manguezais para a criação de camarão, a carcinocultura.  Eu tinha meu universo “mar, mar, mar” e pensei: “Temos muitos manguezais no Brasil, como estarão?”.  Ao voltar, me propus a ver quanto deles estaria comprometido com essas práticas.  Na oceanografia não tratavam dos manguezais e na botânica terrestre também não, porque se atola para pegar amostras.  Pensei: “Temos manguezal do extremo norte do Brasil até Santa Catarina.  Quantos anos eu tenho de vida pela frente?  Não vai dar para estudar tudo isso sozinha”.

Quantos anos você tinha?

Tinha 33 anos.  Eu tinha trabalhado com vermes marinhos da família dos equiurídeos, na região da Ilha Grande [RJ].  Depois havia monitorado a população de Anomalocardia, o vôngole, numa praia de Ubatuba, litoral paulista.  Estava lidando com dinâmicas costeiras e de repente surge uma dinâmica ainda mais rápida.  Nos dois anos em que medi comprimento, largura e altura das conchas do vôngole os manguezais estavam acabando e ninguém os estudava como ecossistema.

Você se manteve em contato com os pesquisadores que conheceu na América Central?

Eles já estavam envolvidos com o estudo do manguezal, com uma metodologia muito bem estabelecida: Gilberto Cintrón, Samuel Snedaker, Ariel Lugo, entre outros.  Eu teria que aprender muita coisa sozinha e vi que era melhor pegar fiadores fortes.  Eles vieram nos dar cursos, ajudar a estabelecer locais de trabalho.  Começamos a ver o que precisava ser adaptado em termos de Brasil, porque os manguezais daqui não eram iguais aos do Caribe.  Nossas amplitudes de maré são muito maiores, por exemplo.

Havia novidade para eles também?

Sim, houve uma verdadeira simbiose.  Quando comecei tinha um belo trabalho da Feema [Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente], do Rio de Janeiro.  A Norma Crud Maciel estudava os manguezais do recôncavo da baía de Guanabara, um trabalho belíssimo de 1979.  Ela logo se associou a nós, porque não tinha tanto espaço para a pesquisa acadêmica em um órgão da administração pública.  Foi um início que rendeu muito, inclusive porque temos um laboratório em Cananeia, no litoral sul de São Paulo, com estação meteorológica-padrão e uma série de dados privilegiada.  O manguezal é essa mistura de compartimentos: você pode trabalhar nele como arquiteta, médica, engenheira, botânica, geóloga, oceanógrafa.

Sua graduação foi em história natural.  Essa formação ajudou a integrar esses compartimentos?

Muito.  Tanto a graduação em História Natural quanto a pós-graduação em Oceanografia sem limites, não só biológica.  Para ler o manguezal é preciso estar aberto.  Não é só botânica, nem só dinâmica sedimentar ou zoologia.  É um pouco mais.

Você também trabalhou com análise de impacto ambiental.  Se falava disso na época?

Não.  Era visível que alguma coisa estava interferindo no sistema, como quando terminei meu doutorado no Saco da Ribeira, no litoral norte paulista.  A rodovia Rio-Santos estava em construção e ao mesmo tempo iniciavam o primeiro píer, no Saco da Ribeira.  Nessa época tive minha primeira mestranda, a Sônia Lopes, hoje professora do Instituto de Biociências, que foi trabalhar com as alterações na fauna de bivalves nessa praia.  A área já estava sendo alterada pela instalação de mourões com produtos químicos para proteger a madeira contra apodrecimento, pela alteração da granulometria da praia, e começaram a aparecer espécies oportunistas.  Vimos a dinâmica do ambiente respondendo a essas mudanças.  Quando comecei a trabalhar com manguezal, a lei brasileira havia consolidado uma política nacional de meio ambiente, a Lei 6.938/81. Tudo acontecia quase ao mesmo tempo.

Além de todos os aspectos presentes no manguezal, tem mais esse: é preciso conhecer legislação.

Exatamente.  É uma corrida contra o tempo.  Correndo e me valendo de pesquisadores e pós-graduandos do Instituto Oceanográfico.  Eu punha os artigos novos em uma mesa no laboratório.  Cada um pegava um livro ou artigo para ler e apresentar para os outros, era preciso multiplicar os esforços para tentar acertar o passo.  Tudo acontecia muito rápido nesse campo novo, da dinâmica do uso da zona costeira.  Em apenas cinco anos se abre uma estrada, se constrói um píer, se processa uma dragagem, ocorrem derramamentos de óleo.

Quando você se tornou uma perita em análises de impacto ambiental?

Fui a perita em dano ambiental da primeira ação civil pública movida no Brasil.  Foi o rompimento do oleoduto da Petrobras próximo ao rio Iriri, canal de Bertioga, no litoral de São Paulo.  A lei é de 1981 e a regulamentação da lei é de 1983.  Em 14 de outubro de 1983 houve esse rompimento e fui nomeada perita judicial por um juiz da vara de Santos.

Como era o trabalho?

Em primeiro lugar, tinha que descobrir o que medir para monitorar um impacto de óleo sem nunca ter trabalhado com isso.  Minha experiência era com manguezais lindos, limpos, de Cananeia ou de outras áreas do Brasil.  De repente estava num manguezal cheio de óleo.  Chegou a 1 metro de altura no tronco das árvores, o sedimento empapado de óleo.  Nós seguimos até hoje o monitoramento da área mais impactada, um bosque inteiramente morto.  São mais de 30 anos e ainda há óleo enterrado.  Quando colhemos amostra de sedimento a uns 80 centímetros, tiramos o testemunho e ainda saem bolinhas de óleo.  O manguezal ali nunca voltou ao normal, as árvores que nasceram eram de outra espécie, cresceram pouco e estão morrendo.

Foi esse histórico como perita em impacto ambiental que a levou a trabalhar na Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo nos anos 1990?

Eu mantinha contato com o Ministério Público de São Paulo desde 1983, quando o Édis Milaré, um dos promotores que havia participado da petição da ação cível no caso do rompimento do oleoduto, tornou-se secretário do Meio Ambiente.  Ele cumpriu uma representatividade de gênero nas coordenações, escolhendo duas mulheres e dois homens.  Eu tinha sob os meus cuidados três institutos de pesquisa [Botânico, Florestal e Geológico], a área de informática e a biblioteca.  Era um desafio, não se coordena um grupo de instituições centenárias de qualquer maneira.  É preciso entender o ritmo das pesquisas e dos pesquisadores e melhorar, se puder.  A biblioteca da secretaria era no 11º andar.  Consegui passar para o térreo e o número de visitantes aumentou rapidamente.  Biblioteca tem que ser uma coisa chamativa, e no térreo tinha uma sala envidraçada com um jardim lindo fora.  No período em que fiquei na secretaria, meu currículo acadêmico não aumentou uma linha, embora saísse de casa às 6h30 da manhã e voltasse às 10 ou 11 da noite.

Os problemas eram muito diferentes do que você conhecia?

Eram, eu conhecia bem o litoral.  Não tinha conhecimento acerca das Unidades de Produção e de Conservação do interior do estado.  Os limites entre os produtores, o agrossilvipastoril, são muito complicados.  Uma pessoa põe uma cerca e diz que a área está protegida, mas não está porque o vizinho não foi indenizado.  Uma onça-parda come a galinha de alguém, que mata a onça-parda.  Comecei a viajar e fui alertada de que estava muito ausente, então esclareci que nossos problemas estavam fora da capital.  Quando passou o primeiro ano, as coisas começaram a se repetir, já não era novidade.  Aí era a persistência, quanto tempo eu conseguiria seguir.  Cheguei ao final do mandato.

Seu laboratório trabalhou com valoração econômica do manguezal.  Era uma abordagem nova?

Era um dos quesitos das ações civis.  Uma das perguntas versava sobre o valor do dano ambiental.  Fui orientada a dizer que os danos eram de inestimável valor e que seriam alvo de um futuro arbitramento.  Depois de escrever isso muitas vezes, comecei a achar que precisava me preparar para quando chegasse esse futuro.  Nessa época duas Monicas estavam no laboratório Bioma, Tognella e Grasso, que tinham um instinto mais economicista.  Primeiro tinham bolsa de aperfeiçoamento e foram à Faculdade de Economia e Administração [FEA-USP] cursar a disciplina básica de graduação para microeconomia.  Na época, cada pesquisador que fazia valoração econômica usava um método diferente.  No mestrado, cada Monica adotou um conjunto de métodos.  Uma foi trabalhar em Cananeia e outra em Bertioga: um mangue intocado e outro muito comprometido.  Nos primeiros resultados, o manguezal de Bertioga, bastante alterado, valia muito mais que o de Cananeia.  Descobrimos que isso acontecia porque nessa situação se tem um substituto para calcular um valor monetário.  Quando o manguezal é alterado, começa-se a pagar pelos serviços ecossistêmicos que até então eram gratuitos.  Descobri que era essa a charada: os números só ficam aparentes quando os serviços deixam de existir.

E como se faz para pôr uma etiqueta de preço no manguezal?

Sou contra o preço.  Uma coisa é precificação, outra é valoração.  O preço é uma parte muito pequena do valor.  É muito mais correto transformar a pena em ações que o poluidor ou degradador precisa cumprir.  Quanto mais rápido for o processo de condená-lo a cumprir, menos ele pagará.  É um processo educativo, o poluidor aprende que, se empurrar com a barriga a tarefa de recompor, só vai lhe custar mais caro.  Em 2011 o Ministério Público do estado de São Paulo criou um grupo de trabalho para valorar danos ambientais.  Eu era a coordenadora acadêmica dessa equipe mista, Ministério Público e academia, que por mais de dois anos trabalhou toda uma diversidade de impactos ambientais e produziu guias de como responder.  Depois buscamos equações de como representá-los.  O manguezal, por exemplo, leva um número de anos para funcionar como ecossistema.  Não basta plantar.  Antes de 20 ou 30 anos as árvores ainda não constituem um ecossistema.  A mesma coisa ocorre com a Mata Atlântica ou com o Cerrado.

No caso do manguezal é fácil imaginar que os recursos pesqueiros têm um preço.

Mais do que isso, têm um valor.  Das florestas tropicais, o manguezal é a mais eficiente na fixação de carbono.  Isso tem grande importância.  Junte a isso pousio para aves migratórias, área de berçário para espécies comerciais de peixes, crustáceos e moluscos, a função cultural de sincretismo religioso, de atividades artesanais do povo caiçara.  Aquele cenário verde meio estranho é, para eles, uma garantia de vida.  Eu não posso dar preço para esses serviços.  Tive muita dificuldade com essa questão dentro do Ministério Público, até que um dia tomei coragem com um dos procuradores e pedi licença para um exercício rápido.  Eu disse: “Estamos falando de preço e valor.  Veja o senhor, um procurador do estado de São Paulo.  Como ser humano, seu corpo é 70% água.  Quanto custa água?  O senhor tem carbonato de cálcio, tem proteínas (podemos ver quanto custa o ovo), o senhor tem alguns nutrientes, tudo isso tem um preço de mercado.  Posso ir em juízo e depositar esse preço que a gente auferiu e então posso matá-lo.  Agora, qual o valor?  O senhor estudou em quantas escolas?  Teve atendimento médico desde pequeno.  Foi para a faculdade de direito, fez toda a evolução na carreira – advogado, promotor, procurador… Isso é o seu valor, que não está no seu preço”.  Acho que consegui mostrar que o preço não representa nada.

E ao longo dessa trajetória você angariou brigas importantes, como o cultivo de camarão em área de manguezal, que foi o que a levou para essa área.  Quais são as maiores ameaças aos manguezais?

Hoje eu acho que o maior dano é social.  Já perdemos manguezais e nos últimos anos estamos perdendo gente, é isso que me preocupa.  Os pescadores não podem mais chegar no estuário para pescar porque está com cerca elétrica e podem ser mortos por jagunços.  É um problema social e de saúde.  Os pescadores que vão trabalhar na despesca [recolhimento dos adultos nos tanques] da carcinocultura ganham como boia-fria da cana, sem garantias trabalhistas.  Têm que lidar com o metabissulfito, usado para o camarão não ficar preto, e trabalham sem máscara nem luva.  Se vai para o pulmão, essa substância mata.  Um biólogo pode servir a várias fazendas, o veterinário também, por isso gera muito pouco emprego e menos renda ainda.  O Renato de Almeida, à época pós-graduando do Bioma, trabalhou com o Índice de Desenvolvimento Humano [IDH] entre 1990 e 2000 nos municípios principalmente do Ceará com muitas fazendas de carcinocultura.  O IDH não melhorou nada nesse período.  O dinheiro que sai da produção de camarão naquele município não é aplicado ali, é investido em outros mercados.

E em termos de danos ao manguezal, imagino que tenha duas partes: a retirada das árvores para pôr os tanques de criação e os contaminantes químicos.  Exatamente.  E em cinco anos, no máximo sete anos, aquela área já não serve e eles avançam para outro manguezal.  Em fazendas abandonadas, quando se rompem os muros da carcinocultura, nasce mangue outra vez.

E dá para combater isso?

Doenças como as viroses do camarão cultivado dificultam a venda para o mercado externo.  Desde o começo se trabalha com um camarão nativo do Equador, o Litopenaus vannamei.  É uma espécie exótica, o que é proibido, mas trazem em avião especial carregado com larvas, ou são produzidas em laboratórios aqui no Brasil.  Fungos e vírus deixam o sistema menos complexo, mais vulnerável e se começa a perder biodiversidade.

E o mercado começa a rejeitar?

Com a mancha branca, causada por um fungo, é preciso adensar menos as larvas nos tanques.  Também tem que despescar antes, porque chega a um ponto em que os camarões comem muito e não aumentam proporcionalmente de peso, por causa da doença.  Vendem-se então os camarões menores, que o mercado internacional não aceita e essa produção em menor escala fica para o mercado interno.  Estive em uma carcinocultura no Piauí e vi que no canal de entrada da água tem uma diversidade riquíssima de formas de vida estuarina.  Macroalgas, ofiuroides, até cavalo-marinho, uma coisa linda.  O canal de saída para o estuário não tem nada.

Como a nova lei florestal afeta o manguezal?

Eu me inscrevi para ser expositora na audiência pública do dia 18 de abril no Supremo Tribunal Federal, mas não fui habilitada.  Foram 22 expositores, com um peso muito grande para os defensores da lei.  Da área de manguezal da Amazônia Legal, Amapá e Pará, 10% estão disponíveis para a carcinocultura.  Do Maranhão para o sul, a proporção sobe para 35%.  A nova lei florestal concedeu uma porção do manguezal, o apicum, antes considerado de preservação permanente.  O que eu teria contestado nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade é que eles dizem que o manguezal urbano, quando não tem mais função ecológica, pode ser colonizado.  Mas o que é função ecológica?  Se o manguezal está lá, ele tem função ecológica.  Era isso que eu queria explicar.

No resto do mundo o quadro dos manguezais é diferente?

É um ecossistema típico de regiões tropicais e subtropicais.  No mundo, equivale a litorais com alta densidade populacional.  São áreas costeiras, também altamente valorizadas por serem locais de portos e resorts.  No Sudeste Asiático instalaram muitas fazendas de cultivo de camarão em cativeiro.  Na China, no Vietnã, na Malásia e na Indonésia o prejuízo social é impressionante.  Quando começam a grassar as viroses nesses crustáceos, os danos são muito grandes.  Mas nesses países a renda é muito baixa, os prejuízos não chegam a fazer diferença na economia mundial.  O litoral da América Central está arrasado pela carcinocultura, mas tem também tráfico de drogas e guerrilha que comprometem muito mais a sociedade e o meio ambiente do que aqui no Brasil.  Vários colegas pescadores já perderam a vida como resultado desses conflitos.

Como foi a formação do curso de pós-graduação em ciências ambientais, aqui na USP?

Em 1990 o professor José Goldemberg, enquanto reitor, sentiu necessidade desse tipo de pós-graduação interdisciplinar e solicitou ao então pró-reitor de Pós-graduação – o professor Ubríaco Lopes, da Faculdade de Medicina – que formasse esse grupo.  Ele chamou docentes de várias áreas, que formularam um projeto e apresentaram ao Conselho Universitário.  No final de 1991 começou a primeira turma.  É um programa muito interessante, que até uns anos atrás era adido diretamente à Pró-reitoria de Pós-graduação.  Mas a reitora Suely Vilela exigiu que todos os cursos de pós-graduação fossem albergados em unidades.  Com a presença do próprio professor Goldemberg no Instituto de Eletrotécnica e Energia [IEE], fomos bem recebidos.  O IEE manteve a sigla, mas passou a se chamar Instituto de Energia e Ambiente.

Fora da universidade, você sempre teve envolvimento com extensão, com educação ambiental.  Quais foram as melhores experiências?

Participar do Encontro Nacional de Educação Ambiental em Áreas de Manguezal [Eneaam] desde a sua criação em 1993.  As reu-niões são sempre em áreas de manguezal.  Já aconteceram encontros em vários estados do país, sempre em municípios onde tem gente que vive associada ao manguezal.  É muito interessante o tipo de trabalho que dá para fazer com o pescador, a marisqueira, o escritor de cordel, o indígena… O primeiro passo é resgatar a experiência de todos.  Tenho oferecido minicursos nos quais não é preciso formação acadêmica.  Dependendo de onde é feito, o público é completamente diferente.  Em Bragança, no Pará, tem um público diferente de quando estamos no Espírito Santo.  No Sudeste o manguezal é visto como fedido e podre, lá no extremo norte é a riqueza deles.  Tem todo um sincretismo religioso entre os moradores do manguezal, “os operários da maré”, é lindo.

Nos últimos anos você fundou uma ONG, o Instituto BiomaBrasil [IBB].  O que vocês fazem?

O IBB foi um desejo de meus ex-alunos.  Como eu tinha me aposentado e o IO decidiu que não continuaria as pesquisas com manguezais, precisaríamos de uma maneira de manter essa identidade.  Então combinamos que eu participaria com meu nome, meu currículo.  Mas eles que fazem o trabalho: o Clemente Coelho Junior, professor da Universidade Federal de Pernambuco, o Renato de Almeida, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, o Ricardo Menghini, que está no Ministério Público do Estado de São Paulo, a Marília Lignon, da Universidade Estadual Paulista em Registro, e minha filha Claudia, que faz a parte multimídia e de marketing.  Não temos nenhum funcionário, manter uma ONG correta sai muito caro.  O IBB está absolutamente legal e tem tido projetos da Fundação Grupo Boticário e do SOS Mata Atlântica.  Os recursos financeiros vão integralmente para as atividades de campo, com educação e pesquisa, nós não somos remunerados.  Atuamos na área de gestão e conservação de zonas costeiras tropicais com ênfase no manguezal, usando o nome que já era do laboratório.  Trabalhamos com pessoas e com projetos em áreas costeiras como coleta de lixo e melhoria de qualidade de vida.  O carro-chefe tem sido o guia Maravilhosos manguezais do Brasil.  É um guia do Mangrove Action Project [MAP], um projeto internacional, que foi traduzido e aplicado em outros países.  Aqui resolvemos fazer a adequação dessa filosofia para a realidade brasileira.  Porque nossa realidade é diferente da do Caribe, da América Central.  Então foi reescrito: são 40 atividades práticas, sempre com um texto introdutório e os conceitos.  Damos cursos de capacitação usando esse material, com dois dias e meio de atividades teórico-práticas com professores da rede pública estadual e municipal de escolas em áreas com manguezal.  Também montamos uma rede em que os professores que participam depois podem seguir trocando expe-riências.  Tem dado muito certo.

Ao mesmo tempo você participa de um projeto grande que é o da baía do Araçá, financiado pela FAPESP.  Como está?

Vai terminar no ano que vem, tivemos um ano de prorrogação.  Estamos escrevendo os artigos e eu estou plantando mangue nas pedras que enrocam o aterramento do porto.  Temos uma batalha porque o porto queria aterrar a área da baía do Araçá.  Como houve protestos veementes, o porto propôs fazer uma laje a 1 metro de altura.  Mas acaba de ser divulgada a sentença judicial confirmando as duas liminares.  Isto é: manteve as liminares que cassaram a licença dada pelo Ibama.  O órgão concedeu licença para a laje porque a baía do Araçá estaria morta, mas foi comprovada a vitalidade do ambiente.  Nosso projeto é de ciência, não de consultoria sobre o porto, mas como pesquisadores individuais nos unimos ao Centro de Biologia Marinha da USP [Cebimar] para preparar os documentos que embasam a defesa do Ministério Público Federal e Estadual.  Há poucos meses o Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal, decidiu pela não construção da laje.

Enquanto isso você planta manguezal.

É.  Medimos todas as árvores.  São 400 e tantas árvores vivas.  Uma que eu plantei está indo em frente.  A ideia é que seja emblemático, não pretendo instalar um manguezal, é paisagismo.  Mas ajuda a recuperar a autoestima dos pescadores.  Uma amiga me perguntou por que eu vou plantar mangue ali, com o porto atrás.  Eu disse: “Lembra daquele garoto chinês da praça da Paz Celestial, de pé em frente à coluna de tanques?  Eu sou essa”.

Revista Pesquisa FAPESP