Notícia

Jornal do Brasil

Vivandeiro das ciências

Publicado em 19 março 1996

Por MARIA BELTRÃO E FRANCISCO ANTÔNIO DORIA*
Você falaria de um livro que não leu? Claro que não, é leviandade. Você criticaria de modo agressivo e grosseiro um livro que ainda não foi escrito? Com certeza, não; seria no mínimo uma tremenda falta de ética. Pois Eduardo Viveiros de Castro, soi-disant antropólogo que confessadamente não entende nada de paleoantropologia, fez as duas coisas: agrediu leviana e aeticamente, em um artigo publicado na última quinta-feira, no JORNAL DO BRASIL, um livro de nossa autoria comum e que ainda não existe como livro Viagem ao paraíso, a sair, no entanto, pela Editora Revan, até o fim do ano. Este livro parte de artigos científicos já publicados ou no prelo, e de muitos documentos sobre a história dos sertões baianos durante o Brasil Colônia, sendo coligidos agora com a ajuda de Neusa Esteves, uma de nossas principais especialistas no assunto. Mas Viveiros não viu ou leu nada disso; pegou foi uma desastrada carona num fato jornalístico, uma reportagem (Caderno B, 12.3.1996) sobre nossos projetos. Aproveitou-se como tanta gente se aproveita de Ayrton Senna ou dos Mamonas Assassinas... Nosso livro pretende mostrar a beleza das pinturas rupestres da Chapada Diamantina; as fotografias vão ser acompanhadas por dois textos, um sobre a história, os mitos e as lendas da região, e o outro resumindo o que Maria Beltrão descobriu sobre sua arqueologia. Vamos primeiro aos fatos, que as lendas ficam para depois. Entre 1985 e 1987, Maria Beltrão descobriu, num sítio arqueológico próximo à cidade de Central (BA), evidências conclusivas da presença humana na área há pelo menos 300 mil anos antes do presente. Como a data é muito antiga, o carbono 14 não chega lá e foi necessário usar técnicas de datação absoluta mais refinadas. A datação foi efetuada pelo método urano-tório em três dos maiores laboratórios do mundo. As conclusões e todo o detalhamento técnico apareceram em dois artigos, publicados na revista L'Anthropologie (volume 95, pp. 917-942, em 1987), no Comptes Rendus (vol. 306, série 2, 241-247, em 1988). Os artigos são co-autorados por Beltrão e diversos especialistas da Europa, do Japão e dos Estados Unidos; vale citar entre eles Henry de Lumley, principal paleoantropólogo europeu, descobridor do mais antigo sítio arqueológico da Europa, diretor de todos os museus científicos da França, e que assina juntamente com Maria Beltrão a comunicação à Academia de Ciências de Paris. Como conseqüência, Maria Beltrão foi eleita para o comitê permanente da Association Internationale de Paléontologie Humaine, ao lado de Lumley, Richard Leakey e de Donald Johannson, o descobridor da Lucy na Etiópia. É a única representante do Brasil, claro. Caroneiros de noticias lá não chegam. Vamos agora ao caso dos tukanos, cavalo-de-batalha deste nosso vivandeiro da ciência. A presença dos Tukanos na Chapada Diamantina e sua provável autoria das pinturas rupestres de Central foi uma sugestão formulada como simples hipótese. Hipótese, enfatiza-se, muito plausível, mas sujeita a confirmação. Expliquemos. Desde 1987, como conseqüência dos trabalhos de Cavalli-Sforza, sabe-se que três populações povoaram as Américas antes de 1492: o maior destes grupos é o dos ameríndios, que se fixaram dos Estados Unidos para o sul. O grupo ameríndio, pega os Pueblos, a liga iroquesa, olmecas, astecas, maias, a população Karib, as altas culturas dos Andes, os primeiros habitantes do Brasil tudo isso. Vastíssima diversidade cultural, e maior ainda nas línguas (mas o lingüista Joseph Greenberg, de Stanford como Cavalli-Sforza, tem convincentemente afirmado que tudo isso vem de uma protolíngua só). Não há surpresa nesta variedade: pois os hititas eram uma alta cultura indo-européia, próximos parentes dos quase nômades germânicos. Quem eram esses ameríndios originais? Um possível candidato estaria no "homem da Lagoa Santa", cujos remanescentes pontilham muito do Brasil, e foram identificados por Ten Kate, ainda no século 19, na Califórnia. E haveria dos ameríndios uma população (ainda que fisicamente diversa do Homem da Lagoa Santa, como somos, com certeza, diferentes dos primeiros Homines Sapientes), culturalmente estável, sugerindo uma continuidade ao longo de milênios? Cautelosamente sugere-se aqui os tukanos como sendo uma destas populações. Uma futura tipagem genética das populações ameríndias pode provar ou desaprovar, ou detalhar - esta bela hipótese. Mais um detalhe a seu favor Barbosa Leal, quando no fim do século 17 descreve o roteiro das míticas minas de prata baianas, fala diversas vezes na "planície dos tukanos", no meio da Chapada. Lá estiveram, portanto, goste disso ou não o nosso trêfego caroneiro Viveiros. (Aqui entra Doria, que, devido a seus estudos sobre a sociedade colonial baiana, recebeu em 1995 o Prêmio Caumont-La Force. Muito longe do qual está o nosso Viveiros.) Qual a moral de tudo isso? Vivandeiras eram as mulheres que acompanhavam os exércitos vendendo comida aos soldados e prestando-lhes serviços de outras e variegadas ordens. O caroneiro Viveiros, que pega carona em coisas que não conhece, é um vivandeiro das ciências. * Professores titulares da UFRJ