Pisar em terreno pedregoso sem prestar atenção ao soar dos guizos é arriscar um encontro fatal com a famosa cascavel (Crotalus durissus). Se pegar de jeito, o bote da dita cuja começa por causar sensação de formigamento e dificuldade em manter os olhos abertos. Depois o quadro evolui para visão turva ou dupla, dores musculares generalizadas e escurecimento da urina, podendo chegar à morte por insuficiência respiratória, devido à paralisação dos músculos do tórax, e/ou insuficiência renal aguda. Assim nos informa o Hospital Vital Brazil, de São Paulo, referência no atendimento a acidentes com animais peçonhentos.
Mas bem ali vizinho ao hospital, o veneno da cascavel é considerado um potencial aliado na luta contra a progressão de tumores cancerígenos e contra inflamações agudas e crônicas. Quer dizer, o veneno todo não, mas uma substância equivalente a 60% do total, que é responsável por sua ação neurotóxica. O nome da substância é crotoxina, ou CTX para os íntimos, como os pesquisadores do Laboratório de Fisiopatologia do Instituto Butantan.
Em linhas gerais, a crotoxina age direto sobre o câncer e ainda estimula algumas células de defesa do organismo (macrófagos) a produzir uma quantidade maior de substâncias importantes no controle do crescimento de tumores (peróxido de hidrogênio e óxido nítrico). Ou, nas palavras da doutora em Farmacologia, Sandra Coccuzzo Sampaio Vessoni: “temos uma toxina com um potencial antitumoral, não apenas por agir diretamente sobre as células tumorais, mas também por induzir a resposta do sistema imune”.
Sandra coordena a pesquisa com o veneno da cascavel contra o câncer no Laboratório de Fisiopatologia. Outra pesquisa investiga a atividade da mesma crotoxina contra inflamações agudas, sob a batuta da pesquisadora especialistas em Hematologia, Coagulação e Inflamação, Maria Cristina Cirillo. E uma terceira pesquisa, sob responsabilidade do especialista em Toxinologia e Biologia Estrutural e Funcional, Luís Roberto de Camargo Gonçalves, avalia a ação inibitória da CTX em casos de inflamações crônicas, como as relacionadas a doenças igualmente crônicas (caso da tuberculose).
Os resultados ainda são preliminares. Ainda faltam diversos testes e várias etapas até chegar aos medicamentos de verdade. Porém, a boa promessa dos experimentos realizados com células (in vitro) já se repetiu nos primeiros estudos com ratos (in vivo). O que é um bom sinal, motivo para comemorações. “A CTX também é um modelo, uma ferramenta científica importante para entender como podemos interferir com processos fisiopatológicos e de que maneira modulá-los”, continua Sandra, ressalvando que a crotoxina é utilizada em concentrações extremamente baixas.
De acordo com a pesquisadora, “a CTX é uma molécula grande, portanto não é uma estrutura viável para síntese. Estamos verificando se existem partes menores nesta molécula que seriam responsáveis pelas ações caracterizadas”. Ou, em outras palavras, paralelamente aos estudos com as células e os modelos animais, avalia-se a possibilidade de quebrar a molécula e ainda assim obter a mesma ação. Isso poderia reduzir eventuais efeitos colaterais ou tóxicos (por ora não testados) e também viabilizar a fabricação da substância ativa em laboratório, sem depender da “ordenha” (digamos assim) de cascaveis vivas.
Essa equipe de referência do Butantan ainda inclui as pesquisadoras Yara Cury e Patricia Brigatte e envolve 5 alunos, além de colaboradores valiosos de outras instituições, como a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Os recursos são da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), relacionados ao programa Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Toxinologia (INCTTOX).
A união de tão bons esforços em torno dessa tal crotoxina pode demonstrar mais uma utilidade para o veneno das cascaveis, a par de seu efeito analgésico (Veja o post Cascavel na veia ou em cápsulas?). Não seria motivo, evidentemente, para os frequentadores dos caminhos das pedras deixarem de prestar atenção ao soar dos guizos. Mas talvez ajude a garantir um lugarzinho ao sol também para as mal-amadas serpentes peçonhentas. E sem pauladas na cabeça!
Fonte: Planeta Sustentável