Tecnologia é desenvolvida por Centro de Pesquisa financiado pela FAPESP e pela Shell do Brasil
Hidrogênio verde: certamente você tem ouvido muito sobre isso nos últimos tempos né?
A mídia, principalmente a técnica e ligada ao meio ambiente, tem turbinado conteúdos que destacam essas duas palavras principalmente nestes tempos de corrida pela descarbonização. Aqui, vale indicar, que por descarbonização entenda-se ações para exterminar qualquer emissão de dióxido de carbono (CO2), um dos geradores dos gases de efeito estufa, os GEEs, responsáveis diretos pelo aquecimento global.
Aí é que entra o hidrogênio verde: por ser obtido a partir de fontes renováveis, como as energias solar e eólica, tem emissão zero de carbono. No caso, chega-se ao hidrogênio por meio da eletrólise, que usa corrente elétrica para separar a água em oxigênio e hidrogênio.
Meio complicado, né? Até porque existe também o hidrogênio azul. Esse também emprega a eletrólise, só que as matérias-primas são combustíveis fósseis como gás natural e carvão mineral, ambos emissores dos hoje inimigos GEEs.
Pois o hidrogênio azul e o verde ganharam destaque na mídia nestes tempos de guerra aos GEEs. Porém, ambos são produtos de longa data.
Mas tem novidade vindo aí!
Trata-se do desenvolvimento de tecnologia que transforma resíduo da cana-de-açúcar em hidrogênio verde.
Como?
Em síntese, a proposta é desenvolver um reator eletrolítico voltado para a realidade da indústria sucroenergética nacional.
Esse reator trabalharia o resíduo de cana chamado vinhaça, composto em 95% por água. Através da eletrólise, o equipamento quebra as moléculas de água para gerar oxigênio e hidrogênio verde.
É preciso destacar que esse reator é tema em desenvolvimento por pesquisadores vinculados ao Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI), um Centro de Pesquisa em Engenharia financiado pela FAPESP e pela Shell do Brasil.
Antes de seguir adiante, convém comentar um pouco sobre a vinhaça. Também conhecida por vinhoto, e que possui farta produção: cada litro de etanol produz em média 10 a 12 litros do subproduto (leia mais aqui).
Levando em conta que, conforme levantamento da UNICA, as usinas de cana do Centro-Sul produziram 27 bilhões de litros de etanol até o dia 16 de janeiro, por baixo esse volume serviu para gerar 270 bilhões de litros de vinhaça.
Tem aí um detalhe: resíduo ou subproduto, a vinhaça é rica em potássio. E boa parte dela é utilizada como adubo na fertirrigação de lavouras, mesmo assim, existe muita sobra.
Bem que poderia ser transportada para fertirrigar mais lavouras. Mas esse transporte é caro e trabalhoso.
“Sem contar que, se mal aplicada, a vinhaça pode danificar a plantação e o solo, além de atingir os lençóis freáticos”, diz Thiago Lopes, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) e integrante do RCGI, à Agência FAPESP (leia aqui).
E vem daí o “pulo do gato” em gerar hidrogênio verde com a vinhaça.
À frente do novo Laboratório de Células a Combustível, situado na Poli-USP, Lopes pretende desenvolver o reator eletrolítico voltado para a realidade da indústria sucroalcooleira nacional.
E o que fazer com o hidrogênio verde?
Ele tem ampla aplicação. Pode ser utilizado, por exemplo, na produção da amônia que entra na composição de fertilizantes. “Hoje a amônia é sintetizada com hidrogênio proveniente de gás natural, o que gera uma pegada de CO2”, conta o professor. Já o oxigênio puro pode ser utilizado para a combustão do bagaço da cana-de-açúcar. “Ao condensar a água, pode-se obter de forma fácil e econômica um CO2 puro para estocagem ou então para ser convertido em produtos.”
Vale ir um pouco além.
Um desses produtos é o ácido oxálico, elemento que junto a um biomonômero (açúcar e aminoácido produzido a partir do metabolismo de microorganismos) vai entrar na composição do hidrogel.
Hidrogel? De que se trata? De forma resumida, é um material capaz de sequestrar carbono do meio ambiente e fixá-lo no solo a fim de reduzir o efeito estufa.
Pois esse material já é desenvolvido no âmbito do Programa de Hidrogel, financiado pela Shell Brasil, com recursos da Cláusula de Investimento em P&D dos Contratos de Concessão da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
O projeto envolve várias instituições de pesquisa da USP, sob a liderança do RCGI, bem como da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Leia aqui mais sobre esse Programa.
O hidrogel gerado ao final de todo o processo de pesquisa será aplicado no processo de plantio em formato de grânulos, que vão se degradar e liberar o carbono para ser armazenado no solo.
De volta ao reator em desenvolvimento: outra de suas vantagens é fazer com que a vinhaça fique mais concentrada – lembre-se que a cada litro de etanol são produzidos aproximadamente 10 litros de vinhaça.
“É um volume gigantesco para armazenar e transportar. Se estiver mais concentrada, livre de uma fração de água, a vinhaça vai ocupar menos espaço e demandar menos transporte. Vale dizer que esse transporte, em geral, é feito por caminhões movidos a óleo diesel, e isso adiciona pegadas de CO2 ao etanol brasileiro”, aponta Lopes.
Menos adubo sintético
Segundo o pesquisador, a vinhaça concentrada também minimizaria a adição de adubo sintético à lavoura.
“A mistura de vinhaça e adubo sintético provoca maior emissão de CO2. Sem contar que, ao reduzir o volume de água, evitamos que o excesso de líquido chegue ao lençol freático e polua os rios.”
Alimento para célula a combustível
O hidrogênio verde também pode alimentar veículos com célula a combustível, uma das modalidades de veículos totalmente elétricos que hoje circulam pelo mundo, sobretudo no Japão. Essa tecnologia já é desenvolvida também no Brasil (leia aqui)
“Em veículo com célula a combustível o hidrogênio reage com o oxigênio que vem do ambiente. A energia elétrica liberada alimenta o veículo e o processo gera como resíduos apenas calor e água pura”, explica Lopes.
“Atualmente, esse hidrogênio é obtido em nível mundial por meio de gás natural, o que gera pegadas de CO2. Daí a importância de se descobrir formas de produzir hidrogênio verde. É o que pretendemos fazer no laboratório por meio do concentrador eletrolítico de vinhaça. Tudo está interligado.”
De acordo com o pesquisador, estima-se que por volta de 2040 a produção desse tipo de veículo deslanche no Brasil.
“Isso deve acontecer, sobretudo, em relação às frotas de ônibus e caminhões, porque a célula a combustível é mais leve do que as baterias de um veículo elétrico, em particular para veículos que rodam mais de 450 quilômetros diários”, informa.
Entretanto, para que isso ocorra a tecnologia precisa ser aperfeiçoada em termos de desempenho e custo. Segundo Lopes, outro objetivo do laboratório é justamente desenvolver peças mais eficientes e baratas para veículos com célula a combustível.
“As camadas da célula a combustível podem ser otimizadas por meio de modelos numéricos avançados e otimização topológica, por exemplo. O catalisador, da camada catalítica, é feito de platina, metal raro que vale mais do que o ouro e não existe no Brasil, e o desafio é encontrar opções mais acessíveis”, explica.
Técnica desenvolvida no Reino Unido
Para buscar essas soluções, o laboratório vai utilizar uma técnica desenvolvida por Lopes durante temporada como pesquisador associado do Imperial College London, no Reino Unido, entre 2012 e 2014.
“O veículo com célula a combustível é alimentado de um lado por oxigênio e de outro, por hidrogênio. No lado que passa o ar colocamos uma mistura com cerca de 1.000 ppm [partes por milhão] de ozônio. Já na camada catalítica, onde acontece a reação da célula a combustível, colocamos um pigmento que ao interagir com o ozônio emite luz. Isso nos ajuda a visualizar, por meio de uma câmera, e comparar como o comburente é distribuído na célula a combustível feitos com vários tipos de materiais, com diferentes propriedades e sob diferentes condições, promovendo assim o desenvolvimento de modelos numéricos avançados de célula a combustível e otimização topológica das mesmas”, prossegue.
A equipe transdisciplinar do laboratório, que conta com pesquisadores da Poli, do Instituto de Física (IF), do Instituto de Química (IQ) e do Instituto de Meio Ambiente (IEE) da USP, vai trabalhar em conjunto com o Imperial College London no desenvolvimento das diversas camadas que compõem as células a combustível, como descrito acima, e pretende avançar.
“Na camada catalítica a ideia é descobrir se materiais mais acessíveis, como uma mistura à base de ferro, carbono e nitrogênio, podem substituir a platina e ser utilizados pela indústria automotiva”, diz Lopes.
“Trata-se de uma demanda mundial. Hoje há nos Estados Unidos um consórcio de pesquisa, nos moldes do RCGI, voltado ao desenvolvimento desses materiais. Mesmo porque não existe platina suficiente para trocarmos toda a frota mundial de veículos para célula a combustível. Nós, cientistas, temos muito trabalho pela frente”, conclui Lopes à Agência FAPESP.