Notícia

Gazeta Mercantil

Vale construiu êxito sobre fatores virtuais

Publicado em 06 abril 1997

Por John Micklethwait - The Economist
A disposição para correr riscos e o entusiasmo por mudanças são alguns dos fatores que ajudam a explicar por que o Vale do Silício gerou tantas empresas de alta tecnologia, como mostra o segundo artigo, de uma série de seis, do relatório da The Economist, que publicamos hoje. Imagine-se como um daqueles muitos burocratas estrangeiros agora encarregados de instalar Vales do Silício próprios - digamos, um membro da delegação do primeiro-ministro da Malásia, Mahathir Mohammad, que visitou recentemente a região, ou um dos inúmeros funcionários da Organização de Comércio Exterior do Japão (JETRO) que foram ao vale. À medida que seguia seu tedioso caminho de Sand Hill Road até a Universidade de Stanford e San José, você se perguntava: "Por que aconteceu aqui?" Os dois pontos de partida óbvios -história e geografia - oferecem apenas umas poucas pistas. Até recentemente, economistas e políticos atribuíam o sucesso do Vale do Silício unicamente a um punhado de boas e sólidas razões: o tamanho e a flexibilidade da oferta de trabalho, a amplitude da rede de fornecedores da região, seu acesso a capital de risco e a excelência de suas instalações de educação e instituições de pesquisa - sobretudo as universidades de Stanford e Berkeley, e o Centro de Pesquisa Palo Alto (PARC), da Xerox. Tudo isso realmente ajudou a pôr o vale no mapa do comércio. Por exemplo, de um modo ou de outro, cerca de mil empresas surgiram da Universidade de Stanford. Mas é cada vez mais claro que esses fatores firmes e seguros contam apenas parte da história. No livro "Regional Advantage: Culture and Competition in Silicon Valley and Route 128" ("Vantagem Regional: Cultura e Competição no Vale do Silício e na Rota 128", Harvard University Press, 1994), AnnaLee Saxenian, professora em Berkeley, destaca que a Rota 128 (rodovia federal), de Boston, foi um páreo duro para o Vale do Silício, tanto em termos de capital de risco quanto de acesso à pesquisa. Mas, no final dos anos 70, o Vale do Silício criara criado mais empregos de alta tecnologia do que a Rota 128, e quando os dois distritos caíram em desgraça em meados dos anos 80, o vale provou ter maior capacidade de recuperação. O motivo, de acordo com Saxenian, tinha relação com a cultura e a estrutura das organizações envolvidas. Grandes empresas da Costa Leste, tais como a Digital Equipment Corporation e a Data General, eram impérios contidos em si mesmos e concentrados num único produto, semicondutores. No Vale do Silício, as empresas também se apoiavam muito num só produto, semicondutores, mas eram mais descentralizadas e tinham maior probabilidade de gerar outras companhias. Essa economia interligada tinha uma capacidade muito maior de mudança. A economia do Vale do Silício se apóia, numa proporção extraordinária, no que o economista austríaco Joseph Schumpeter chamou de "destruição criativa". Alguns autores modernos rebatizaram o fenômeno de "reciclagem flexível" ("Flexible Recycling", Homa Bahrami e Stuart Evans, Califórnia Management Review, 1995), mas a idéia básica é a mesma: empresas antigas morrem e outras nascem, permitindo que capital, idéias e pessoas sejam realocados. Um ingrediente essencial é a presença de empreendedores, e uma cultura que os atraia. Sucesso A pesquisa se concentra cada vez mais em agrupamentos - lugares (tais como Hollywood ou o Vale do Silício) ou comunidades (como as chinesas de ultramar) - onde há "alguma coisa no ar", que os encoraja a correr riscos. Embora possa soar irritantemente vago, isso sugere que a cultura é mais importante para o sucesso do Vale do Silício do que fatores econômicos ou tecnológicos. Eis uma lista do que é necessário: - Tolerância à falência - Na Europa, a falência é estigmatizada; em alguns países, desqualifica pessoas que queiram criar uma nova empresa. Os EUA, que nunca tiveram prisão para devedores, sempre foram mais tolerantes. Os dois primeiros empreendimentos automobilísticos de Henry Ford faliram. No Vale do Silício, a falência é vista como uma cicatriz de um duelo entre oficiais prussianos. Muitas das novas empresas de serviços para a Internet são dirigidas exatamente pelos mesmos empreendedores cujas indústrias de "pen computing" (computação portátil com equipamentos de leitura óptica) faliram. De modo geral, o Vale do Silício esquece erros rapidamente. - Tolerância à deslealdade - Segredos e funcionários são, ambos, difíceis de manter no Vale do Silício. Em 1957, os assim chamados "oito traiçoeiros" saíram dos Laboratórios Shockley para fundar a Fairchild Semiconductor. Um deles foi Gordon Moore, que se tornou famoso a seguir com a Intel. Com o tempo, a Fairchild Semiconductor gerou 37 empresas diferentes, inclusive a Intel. Depois, a Intel passou hipocritamente a se queixar dos "capitalistas abutres" que seduzem e levam embora os talentos que a empresa treina, mas a maior parte dos cidadãos do vale adota uma postura mais liberal. "Eu mesmo saí de uma empresa", diz Scott McNealy, o dono da Sun Microsystems. "Não quero perder funcionários, mas não quero empregar pessoas que não queiram trabalhar aqui, quando tenho 20 mil excelentes profissionais dispostos a fazê-lo." - Correr riscos - Fale com um executivo do Vale do Silício sobre um problema tecnológico, e ele lhe dirá que é uma oportunidade para alguém. Noutros lugares dos EUA, e na Europa, investidores ficam obcecados com as minúcias de planos de negócios, embora seus produtos finais sejam nebulosos. Em contrapartida, Arthur Rock, um empreendedor veterano do Vale do Silício, diz simplesmente: "Sempre dei apoio a pessoas e oportunidades." Buscar riscos ativamente faz sentido para capitalistas de risco. Muitas de suas apostas não compensam, mas algumas delas dão recompensas enormes. No setor de tecnologia, uma empresa que estabeleça uma liderança inicial pode impor um padrão e terminar controlando a maior parte do mercado. Tim Draper, um importante capitalista de risco do Vale do Silício, divide um típico portfólio de 20 empresas em cinco porções. Quatro irão à falência, seis permanecerão nos negócios mas perderão dinheiro, seis conseguirão um retorno modesto, três irão bem e uma ficará com o grande prêmio. - Reinvestimento na comunidade - Howard Stevenson, professor da Escola de Economia de Harvard, diz que muitos agrupamentos industriais morrem porque seus fundadores, ou os filhos de seus fundadores, reinvestem suas fortunas em outros lugares. Às vezes, isso ocorre porque eles desprezam a origem de seu dinheiro. Com mais freqüência, isso ocorre porque é razoável, do ponto de vista financeiro, que um empreendimento familiar se diversifique. Até o momento, a maior parte do dinheiro gerado pelo setor de tecnologia no Vale do Silício voltou diretamente para ele, seja por meio de pessoas que criaram suas próprias empresas, seja por investidores "business angel", protetores dos negócios. - Entusiasmo por mudanças - Segundo um dito popular no Vale do Silício, "ou nós provocamos nossa própria obsolescência, ou a concorrência o fará". Mesmo a antiga e venerável Hewlett-Packard se metamorfoseou inúmeras vezes, produzindo, entre outras coisas, osciladores, equipamentos médicos, calculadoras e impressoras a laser. A nova geração de pequenas empresas fornecedoras de produtos e serviços ligados à Internet muda seus focos com mais freqüência ainda. Jim Breyer, de Accel Partners, que participa do conselho de várias dessas organizações, diz que "uma grande decisão estratégica" é tomada em quase toda reunião. Essa agilidade é provocada pelo medo. O mercado de tecnologia muda tão rapidamente que qualquer empresa que não consiga se ajustar será expulsa dele. Bill Gates, inicialmente, considerou a Internet um produto interessante, mas com pouca relevância para a Microsoft; quando percebeu que tinha se enganado, organizou uma das mais dramáticas reviravoltas já ocorridas numa grande organização na histórica corporativa americana. - Promoção por mérito - Uma das armas secretas do Vale do Silício é a abertura a imigrantes e mulheres. Idade e experiência, que promovem pessoas em outros lugares, não ajudam no vale; pelo contrário, há uma tendência distinta a favor dos jovens. Atualmente, a qualificação média em engenharia de, software torna-se obsoleta em cerca de cinco anos; logo, um estudante recém-saído da faculdade pode ser mais valioso para uma companhia do que um profissional com 40 anos de idade. Muitas das novas empresas relacionadas à Internet são dirigidas por pessoas na faixa dos 20 anos. Alguns dos forasteiros que compram empresas no Vale do Silício fracassam porque tentam importar suas próprias hierarquias. - Obsessão com o produto - O Vale do Silício foi fundado por engenheiros que se sentiam fascinados pela tecnologia, mas também tinham certeza de que a vida era mais do que ganhar dinheiro. Na Hewlett-Packard, esse espírito sobrevive pela "via HP", uma vigorosa cultura corporativa. Na Sun Microsystems, a prioridade cabe claramente à tecnologia. Como diz Bill Raduchel, diretor de informação: "Em uma modesta comparação, se você não entende o ambiente onde ocorrem multiprocessamentos graduais, então é melhor você também ir embora". A obsessão do Vale do Silício com "a boa idéia" o mantém à frente na competição. São muitos os consumidores conhecidos como "adeptos de equipamentos digitais sofisticados", que comprarão novos produtos apenas porque eles parecem interessantes. John Seely Brown, diretor do Centro de Pesquisa Palo Alto, da Xerox, explica que grande parte do valor do Vale do Silício está no que ele chama de "conversas na periferia": bate-papos em mesas de restaurantes e nos bares. - Colaboração - Acesse qualquer um dos "sites" de bate-papo onde os criadores da linguagem Java se reúnem para discutir seu setor, e descobrirá uma versão virtual das conversas nos bares do Vale do Silício. Como muitas cidades das redondezas, o "site" é uma mistura estranha de individualismo feroz e de colaboração: funcionários são emprestados, idéias compartilhadas, favores trocados. Tempo é essencial: não vale a pena tentar desenvolver alguma coisa se outra pessoa pode fazê-la para ou com você. - Variedade - A despeito de sua cultura comum, as empresas do Vale do Silício têm todas as formas e tamanhos. Há um bom número de produtoras de software "virtuais", com nomes cheios de números e pontos de exclamação; mas também são muitas as empresas mais convencionais, como a Intel e a Hewlett-Packard, que precisam planejar com antecedência. Qualquer companhia que invista US$ 3 bilhões em cada nova fábrica exige abundância de habilidades administrativas rotineiras. O Projeto Stanford sobre Companhias Emergentes, que desde 1994 vem analisando várias centenas de empresas "high-tech" do vale, dividiu sua amostra em quatro grupos, com base no tratamento dispensado pelas organizações a seus empregados. As "fábricas" formaram a primeira categoria, na qual as recompensas foram sobretudo financeiras. Na segunda, "companhias de compromisso", a própria empresa gerou lealdade significativa. "Estrelas" foram as companhias baseadas na idéia de reunir tantas pessoas talentosas quanto possível, deixando-as à vontade. A maior categoria, responsável por pouco menos de metade do total, foi a dos "engenheiros", empresas nas quais a principal lealdade das pessoas era para com um produto específico. Os pesquisadores de Stanford descobriram que os diversos tipos de empresas se davam bem em áreas diversas (as "estrelas", por exemplo, tinham a tendência de se tornarem empresas com ações negociadas em bolsas mais cedo). A grande variedade de empresas que brotam no Vale do Silício dá ao lugar uma melhor chance de sobrevivência. Se um tipo não conseguir, outro consegue. - Todos podem participar - Paul Turner, consultor da Price Waterhouse, lembra-se de que em Lancashire, onde nasceu, falava-se sobre "pessoas grandes demais para as próprias botas e eram trazidos de volta à terra". No Vale do Silício, o ciúme é raro porque essas pessoas também têm uma chance de ficar ricas. Como em Hollywood, qualquer um que viva no Vale do Silício por algum tempo terá pelo menos um amigo "que faz sucesso". Para possíveis imitadores do Vale do Silício, esta lista pode não parecer útil. Em primeiro lugar, porque alguns dos atributos exigidos parecem um tanto mal-definidos (como se explicaria a importância da "idéia legal" a um autocrata asiático?). Em segundo, a lista como um todo parece indicar que o governo teve pouco papel a desempenhar no desenvolvimento do vale. Essa conclusão é errada, mas por razões que são mais complicadas do poderiam parecer à primeira vista. Poucas pessoas ainda acreditam que o Vale do Silício foi construído pelo governo dos Estados Unidos. Sob um determinado critério, no período entre 1958 e 1974, o Pentágono gastou US$ 1 bilhão em pesquisa de semicondutores. A Internet também começou como projeto governamental. Várias empresas, inclusive a Netscape, emergiram direta ou indiretamente de projetos de pesquisas financiados pelo governo. Ainda hoje, 10% do orçamento do PARC, da Xerox, vem do governo dos EUA. Entretanto, há uma clara diferença entre ser um grande cliente e tomar as decisões. Em apenas uma ocasião, em meados dos anos 80, quando o setor de chips de memória foi ultrapassado por suspeitas e baratas importações do Japão, o Vale do Silício foi a Washington pedir ajuda. A atitude reinante, hoje, é a de que os governos, por mais bem-intencionados que sejam, deveriam se manter à distância. No entanto, é certamente errônea a conclusão de que o Vale do Silício é uma criação livre da influência governamental. No mínimo, o governo americano deu uma poderosa contribuição ao deixar de fazer coisas que poderiam ter atrapalhado. Basta olhar para a Europa, onde uma política gêmea de manutenção de elevadas tarifas sobre semicondutores e socorro a empresas de alta tecnologia ajudou a reduzir a participação da região no mercado mundial para "produtos eletrônicos de dados" (que incluem computadores), de 23%, em 1988, para 18%, em 1996. No Vale do Silício, o sucesso em qualquer área acaba dependendo ou de alguma legislação de liberação ou da ausência de qualquer tipo de legislação. Dois exemplos simples são as leis americanas sobre falências e a estrutura fiscal da Califórnia, que historicamente tratou mais generosamente os ganhos de capital do que a renda. Mas existem outros, menos importantes. Ron Gilson, professor de direito em Stanford e em Columbia, assinala que a lei californiana, ao contrário de sua equivalente de Massachusetts, encara os "acordos que impedem o funcionário de entrar em concorrência com o antigo empregador" como impraticáveis. Ao mesmo tempo, a lei americana sobre patentes é relativamente rígida: se uma empresa tiver uma idéia, pode protegê-la. Nas palavras de Saxenian, "a beleza do Vale do Silício é que a cultura e a estrutura servem de reforço uma à outra". Não se deve encarar isso como uma espécie de máquina econômica, onde várias matérias-primas são despejadas em uma ponta e empresas tais como a Apple e a Cisco saem da outra, mas sim como uma forma de ecossistema que gera empresas: sem o solo correto e o clima adequado, nada vai crescer.