O sociólogo Octavio Ianni, professor da Unicamp, tornou-se a figura mais popular do 20° Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs) que se encerra hoje em Caxambu. Por onde andasse recebia cumprimentos. A discussão que Ianni teve com o professor de filosofia José Arthur Giannotti, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), sobre o modelo de universidade é que lhe rendeu tal solidariedade. Pode haver um pouco de acaso e uma boa dose de intolerância na discussão entre os dois professores, mas o fato é que a briga expressou a divisão da classe acadêmica diante do governo e da política do governo Fernando Henrique para a universidade brasileira. Ianni ficou surpreso com a repercussão da contenda. Na noite de quarta-feira, assistia a um debate sobre a política de bolsas de estudo para estudantes de pós-graduação e se irritou com as opiniões do físico José Fernando Perez, diretor-científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Perez disse que os estudantes de mestrado e de doutorado brasileiros são muito velhos (32 anos, em média, para ingresso no mestrado, 37 anos par o doutorado). "Pesquisador velho é pesquisador morto", disse. Afirmou, ainda, que a Fapesp só não dá mais bolsas de estudo porque não aparece gente qualificada e disse que muitos estudantes usam a bolsa sem compromisso com pesquisa. Ianni, da platéia, pediu a palavra e passou uma reprimenda em todos os debatedores da mesa-redonda, à exceção de Giannotti, que fizera um discurso mais moderado, "com exceção do que disse o Giannotti, eu não entendi nada do que se falou", disse o sociólogo. "Antes de mais nada, é preciso saber de que universidade vocês estão falando. Acho que é de uma universidade tecnocrática. A universidade que eu quero é uma universidade com ethos acadêmico, uma universidade humanista, em que o professor tenha liberdade para fazer pesquisa e ganhe pelo menos o suficiente para comprar livros todo mês, não de século em século. O que está por trás desta discussão é a privatização da universidade brasileira", afirmou. Foi fartamente aplaudido pelas 150 pessoas que estavam no auditório.
Giannotti, que ficara de fora da crítica, tomou as dores dos companheiros de mesa-redonda. "Isso que o Ianni está fazendo é uma operação ideológica. Ele quer desqualificar o debate sobre as bolsas querendo resolver primeiro o problema da universidade. E essas coisas não precisam ser discutidas juntas", disse, sob vaias. "Isso é demagogia. É um insulto para uma reunião de nível de pós-graduação", atacou. Da platéia, Ianni não se conteve: "Giannotti, você entendeu bem o que eu disse e está sofismando. Não faça isso. Giannotti."
O resto do debate foi tenso. Muitos pesquisadores pediram a palavra e elogiaram Ianni. Outros atacavam Giannotti e José Fernando Perez. O mediador, o sociólogo Flávio Pierucci, resolveu encerrar a discussão quando uma pesquisadora perguntou a José Fernando Perez se "burocrata velho era burocrata morto" e ameaçou processá-lo por discriminação.
"Ninguém esperava que esse debate fosse pegar fogo", diz o antropólogo Gilberto Velho, presidente da Anpocs. "Achamos que fosse haver confusão na mesa-redonda sobre reforma do Estado de que participou o ministro Bresser Pereira. Mas esse correu sem nenhum problema", afirma. O ministro Bresser, ao se encontrar com Giannotti na manhã seguinte à briga, também se mostrava surpreso: "Logo o Ianni, que não é de nos dar problemas?", dizia.
O que Octavio Ianni de fato criticava era o modelo que o ministério da Educação está impondo às universidades. O governo quer que as universidades tenham autonomia para gerenciar seus recursos. A idéia é fazê-las gastar bem, sem os desperdícios de hoje. Na teoria, ninguém critica isso. Acontece que o ministro Paulo Renato Souza já disse que não aumentará um centavo sequer no orçamento das universidades federais. Elas que aproveitem melhor o dinheiro disponível e, se forem competentes, que busquem recursos de fora, com a iniciativa privada.
Muita gente nas universidades combate isso por corporativismo ou por falta de vontade de pegar no pesado. Não é este o caso de Ianni, um dos mais produtivos sociólogos brasileiros, autor de uma vasta bibliografia de referência sobre o populismo e a questão racial no Brasil. O que Ianni acha um absurdo, e deixou claro no debate, é que os pesquisadores precisem mendigar dinheiro privado para trabalhar. Vindo de um intelectual com a sua estatura, a argumentação ganhou força, dai os aplausos que recebeu. "É uma pena que o ministro da Educação seja o Paulo Renato e não o senhor", solidarizou-se com Ianni a economista Inês Patrício, do Iuperj.
Não é esse o modelo que o governo acalenta. Há uma explicação para a agressividade de Giannotti: além de amigo do presidente Fernando Henrique, ele ajudou a formular certas políticas do ministério para a universidade. Seu discurso crítico aos pesquisadores "improdutivos" é antigo. Seus argumentos contra a opinião de Ianni são também respeitáveis. "Há espaço para vários tipos de universidades no Brasil, acadêmicas, tecnocráticas ou o que seja. E é muito bom que a USP e a PUC do Rio tenham perfis completamente diferentes", afirmou. O problema é que Giannotti, um polemista vigoroso e algo arrogante, não usa meias palavras para dizer o que pensa. Ianni é o contrário: adora um debate mas é doce e atencioso até com calouros. Por isso, pegou mal quando Giannotti chamou Ianni de demagogo.
Ianni, diga-se, está longe de ser a primeira vítima de Giannotti depois que o amigo Fernando Henrique chegou ao poder. O sociólogo Francisco de Oliveira, que presidiu o Cebrap em 1994 quando Fernando Henrique se elegeu, afastou-se do instituto no ano passado. Oliveira é filiado ao PT e fez campanha para Luiz Inácio Lula da Silva. "Os vencedores da eleição parece que não se conformavam com o fato de eu não ter ficado alegre com a vitória de Fernando Henrique. O vaso quebrou", afirma Oliveira, sobre o desentendimento que teve com Giannotti, seu sucessor.
Professor nega sofisma
JOSÉ MARIA MAYRINK
SÃO PAULO - O presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), professor José Arthur Giannotti, reafirmou ontem que a pressão da ideologia está dificultando a busca de solução para os verdadeiros problemas da universidade. "Opiniões ideológicas jogam os que defendem, por exemplo, o reestudo da pós-graduação contra os que fazem a apologia da universidade tecnocrática", disse Giannotti, ao comentar a discussão que manteve, na quarta-feira, com o sociólogo Octávio Ianni, da Universidade Estadual de Campinas, na reunião de Caxambu (MG).
Giannotti disse que, independentemente de sua ligação com Ianni, não podia deixar de discordar do rumo dado ao debate, com a "desqualificação da discussão da reengenharia da pós-graduação". Amigo pessoal do presidente Fernando Henrique Cardoso, de quem foi colega na Universidade de São Paulo (USP) e no Cebrap, o professor Giannotti observou que a pós-graduação "foi montada como um sistema vigoroso, cujos defeitos precisam ser sanados"'. Os problemas, advertiu o professor, existem e precisam ser enfrentados independentemente de quem ganhou a eleição,. "Se o Lula tivesse sido eleito, seria a mesma coisa", afirmou.
Referindo-se à sua intervenção no encontro de Caxambu, Giannotti reiterou o protesto contra o que considerou um desvio da discussão. "Não fazia parte da pauta discutir que tipo de universidade nós queremos", insistiu o professor, justificando sua discordância em relação a Ianni. "Minha amizade com o Octávio continua a mesma, mas isso não significa que eu não discorde de sua posição política", disse Giannotti, acrescentando que entendeu perfeitamente o que Ianni falou no plenário. "Por que eu haveria de sofismar numa reunião de caráter acadêmico?", protestou o professor de filosofia. Era uma resposta a Ianni, segundo o qual ele estava sofismando ao denunciar um suposto desvirtuamento ideológico do debate.
Giannotti não concorda que, como alegou o sociólogo, por trás da discussão esteja a proposta de privatizar a universidade. "O clima está de tal forma aquecido que as pessoas não estão conseguindo tratar dos problemas efetivos da universidade", advertiu o presidente do Cebrap, lembrando que o presidente da mesa foi obrigado a encerrar a sessão, por causa das agressões de alguns participantes ao físico José Fernandes Perez, diretor-científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Notícia
Jornal do Brasil