O governo federal, desde anos, tem anunciado que não lhe compete fabricar aço, cuidar das florestas tropicais e da rica biodiversidade, explorar minas de materiais estratégicos raros, como o nióbio, e outros serviços relativos às nossas riquezas e nosso patrimônio. Antes, deve se dedicar a atividades como educação e saúde.
Entretanto, o corte de dotações para universidades federais, a diminuição do número de bolsas de formação e de aperfeiçoamento no setor científico, o terrorismo propagado pelas autoridades federais propondo uma redução de 30% nos vencimentos dos professores e pesquisadores ao se aposentarem, segundo projeto em estudo no Congresso, constituem ameaças ao florescimento das universidades públicas e ao futuro da ciência no Brasil, e até à sua sobrevivência. Para se livrar do fator de redução em suas pensões, centenas, senão milhares, de professores universitários e de cientistas nas instituições públicas tomam antecipadamente sua aposentadoria, empobrecendo gravemente e até anulando programas de pesquisa e cursos de excelência construídos e oferecidos desde anos nestas instituições. Sou testemunha na área de Física dos avanços realizados em diversas áreas do país por esses homens de ciência e sei dos trabalhos magníficos com que pesquisadores em outras áreas, da matemática à biofísica e à biotecnologia, têm contribuído para o avanço da ciência universal no Brasil.
E, no entanto, o governo que cuida de nossos destinos é constituído por homens tais que um marciano, em visita à terra, diria serem excepcionais para favorecer a universidade e a investigação científica. Pois encontraria ele, em seus castelos de marfim, Brasília, um governo chefiado por um presidente da República que teve sua formação universitária custeada pelos cofres públicos e que é ex-professor de universidade pública, auxiliado por um ministro da Educação ex-reitor e ex-professor em uma tal universidade e um ministro da Ciência e Tecnologia que está nas mesmas condições. E quem é o ministro da Cultura senão um ex-professor e colega do presidente em universidade pública e que foi militante de partido político que prega um Estado que proteja a ciência, a universidade, a cultura e a educação?
Engana-se a opinião pública com iniciativas ambíguas e destinadas a dividir o corpo dos professores ao prometer bolsas a uns e ao negá-las a outros. Pois é difícil acreditar que professores universitários experientes, pesquisadores de alto gabarito, se recusem a oferecer cursos de graduação. Ora, se estão sempre absorvidos por seus problemas de pesquisa — como devem estar — sabem muito bem que ensino e pesquisa são inseparáveis em uma boa universidade, e seu trabalho é, em geral, acompanhado de aulas, sejam estas em cursos de pós-graduação, sejam em cursos de graduação.
A acusação de abandono de cursos de graduação pelos professores é talvez mais um pretexto do governo federal para desmoralizar a universidade pública, pois, segundo o ministro da educação, em entrevista ao jornal O Globo, de 5 de abril de 1998, "o atual modelo de universidade está falido". E quais são as universidades privadas que — além da oferta de altos salários a seus reitores — baseiam suas atividades em criação de conhecimento novo? Pois é isto que os economistas em exercício no ministério da Educação, e provavelmente nos demais órgãos do governo, menosprezam: o trabalho permanente de investigação científica, de descoberta de novas idéias, de novas substâncias, de novos mecanismos e de novas técnicas que fizeram crescer a ciência no Brasil desde os tempos de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, de Álvaro e Miguel Osório de Almeida, de Manuel Amoroso Costa e de Maurício Rocha e Silva. E que fez se firmar hoje no cenário internacional a ciência brasileira com a descoberta de teoremas matemáticos sobre sistemas dinâmicos, com a descoberta do méson pi e com contribuições à descoberta do quark top, com os trabalhos pioneiros sobre a unificação das forças físicas, com a descoberta da bradicinina, de antibióticos, de tecnologias de ponta para a pesquisa de petróleo em águas profundas.
Fundada tardiamente no Brasil, a universidade pública abriga notáveis homens de ciência e cultura. Mas, quem diria que, sob o atual governo federal, corremos o risco de regressar ao fim do século passado, quando os positivistas eram contrários à criação da universidade em nosso país, uma vez que para eles isto seria um atentado à liberdade espiritual.
Enquanto isto aqui se passa, nos Estados Unidos, potência maior no mundo contemporâneo e modelo sagrado dos nossos estadistas, o presidente Bill Clinton pronunciava discurso sobre o Estado da Nação, no mês de janeiro de 1998, e nele prometia aumentar os orçamentos dos Institutos Nacionais de Saúde (National Institutes of Health) de 8,4% e de 10% àqueles da Fundação Nacional da Ciência (National Science Foundation), os maiores aumentos de recursos em sua história. A pesquisa fundamental nos Estados Unidos voltou a ter, pois, apoio espetacular de financiamento federal. Em contraste, no Brasil, ao invés de ajudar a ciência básica a amparar a universidade pública, empenha-se o governo federal em pregar a suposta falência dessas atividades básicas. Como afirmou, em editorial do dia 5 de abril de 1998, o jornal Folha de S. Paulo: "As escolas privadas, além de serem, na maior parte dos casos, fábricas de diplomas, não vão substituir o Estado numa atividade como a pesquisa que raramente é rentável e cuja finalidade não pode ser o lucro. É ilusório pensar que o país se modernizará sem um sistema de pesquisa".
J. Leite Lopes é professor emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da ULP de Strasbourg.
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DCI