Solução pode ajudar estações de tratamento a identificarem resíduos de remédios
Bronquite, sinusite, gonorreia e pneumonia são algumas doenças que podem ser tratadas com o uso de Ciprofloxacina, um antibiótico amplamente receitado e que pode ser facilmente encontrado nas farmácias. No entanto, os pacientes que utilizam o medicamento não conseguem metabolizá-lo totalmente no organismo, eliminando até 72% do remédio pelas fezes ou urina. Esses resíduos do antibiótico, que também é muito utilizado na medicina veterinária, chegam até o esgoto público e podem contaminar rios e águas subterrâneas. As estações de tratamento de água e esgoto (ETARs) não conseguem detectá-los e removê-los, uma vez que não foram projetadas para exercer essas tarefas.
Devido à ausência de uma legislação específica para o seu controle na natureza, os antibióticos presentes no meio ambiente são considerados uma grande ameaça à saúde humana e à flora e fauna aquáticas, mesmo em concentrações extremamente baixas. Isso porque, além de gerar riscos de intoxicação aos seres vivos, podem desencadear o aparecimento de bactérias multirresistentes.
Dessa forma, é fundamental monitorar e identificar a presença de medicamentos em amostras de águas residuárias a fim de auxiliar as ETARs na elaboração de estratégias eficazes para a degradação desses compostos. Para ajudar nesse processo, pesquisadores do Instituto de Química (IQ) da Unesp, em Araraquara, desenvolveram um biossensor rápido, preciso, seletivo e de baixo custo capaz de detectar em alguns minutos a presença de Ciprofloxacina em amostras de esgoto e rios. Os resultados obtidos no trabalho geraram um artigo que foi publicado na RSC Advances, revista científica internacional da Royal Society of Chemistry.
Para produzir o sensor, os cientistas imobilizaram na superfície de um eletrodo de carbono impresso um anticorpo (imunoglobulina G) que, ao entrar em contato com a Ciprofloxacina gera um sinal elétrico, identificando a presença do medicamento. O dispositivo, que deve custar em torno de R$ 12, foi testado em um dos laboratórios da Université Laval, do Canadá, instituição parceira no estudo por meio do convênio de cooperação acadêmica, técnica e científica estabelecido com o IQ, cujo objetivo é promover ações de intercâmbio de docentes, funcionários e estudantes, contribuindo para o avanço científico e formação de recursos humanos.
Na Instituição canadense, os pesquisadores prepararam uma solução que funciona como um “esgoto artificial”, na qual foi adicionada a Ciprofloxacina, além de outros remédios com estruturas químicas semelhantes para verificar se o sensor seria “confundido” ao ser imerso numa mistura com mais de um medicamento. “Como resultado, nós verificamos que o sensor foi altamente seletivo para o fármaco de interesse. Além disso, ele realizou a detecção em um tempo relativamente curto, de aproximadamente dois minutos, e conseguiu identificar o antibiótico em uma concentração muito baixa, na ordem de microgramas”, explica Rafaela Silva Lamarca, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Química do IQ e principal autora do trabalho.
O dispositivo, que apresentou uma precisão de 97% nas análises, foi capaz não só de detectar, mas de quantificar a Ciprofloxacina, que foi colocada em uma concentração bem pequena, justamente para avaliar a sensibilidade do sensor. Rafaela conta que a tecnologia também foi utilizada para avaliar amostras reais de esgoto gerado por moradias estudantis da Université Laval, onde ela realizou estágio de um ano durante seu doutorado, sob supervisão do professor Younès Messaddeq do IQ, docente que representa o Instituto no Canadá. Nos testes, o dispositivo também detectou a presença do antibiótico alvo nas amostras oriundas das residências.
De acordo com os cientistas, o novo sensor pode ser adaptado para detectar outros tipos de remédios, bastando, basicamente, substituir o anticorpo imobilizado na superfície do eletrodo. Atualmente, para a determinação de compostos farmacêuticos em águas residuárias é utilizada uma técnica conhecida como cromatografia (líquida ou gasosa), auxiliada de um outro método chamado espectrometria de massas. No entanto, esses procedimentos possuem várias desvantagens e limitações, de acordo com o professor do IQ e orientador de Rafaela, Paulo Clairmont Lima Gomes: “Além de serem mais caros, demorados e utilizarem equipamentos que não são portáteis, esses métodos demandam profissionais treinados, etapas trabalhosas de preparo das amostras e maior quantidade de solventes”, explica o especialista.
Nesse contexto, o biossensor proposto surge como um método alternativo para a identificação de Ciprofloxacina em rios e esgotos, oferecendo uma detecção rápida, simples, seletiva, sensível, barata e que segue os princípios da química verde. Segundo os pesquisadores do IQ, não há estudos na literatura relacionados ao desenvolvimento de um sensor para o reconhecimento do remédio em amostras de águas residuais. Os cientistas estão abertos ao interesse do mercado para que a tecnologia seja incorporada às estações de tratamento. Outra possibilidade é que, futuramente, esse sensor também possa ser utilizado pelas pessoas dentro de casa, como forma de assegurar aos consumidores a qualidade da água.
Nos últimos anos, tem aumentado a preocupação com a presença na água de produtos utilizados no dia a dia, como os próprios remédios, protetores solares, itens de higiene pessoal, entre outros que podem ser encontrados em rios que abastecem municípios. Batizados de contaminantes emergentes, esses compostos podem ser parcialmente degradados (produzindo subprodutos mais tóxicos) ou permanecerem inalterados durante o tratamento convencional em ETARs.
Não há consenso sobre as quantidades seguras desses poluentes na água. Além das causas naturais que fazem essas substâncias chegarem até os rios, o descuido quanto ao descarte irregular de remédios também é um dos principais motivos do aparecimento desse tipo de contaminante. Despejar produtos vencidos na pia ou em vasos sanitários, por exemplo, colaboram para a contaminação dos recursos hídricos.
A pesquisa desenvolvida pela Unesp, que foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), contou com a participação dos professores Marcelo Nalin, Maria Valnice Boldrin Zanoni e Younès Messaddeq, todos do IQ, além da colaboração de Ricardo Adriano Dorledo de Faria, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O trabalho foi realizado no contexto do INCT-Datrem, sediado no IQ e coordenado pela professora Zanoni. O objetivo dessa rede de pesquisadores é desenvolver tecnologias inovadoras para avaliação de micropoluentes em nível químico, toxicológico e radioativo, bem como soluções mais eficientes para o tratamento de resíduos, esgotos, efluentes e águas de captação, contribuindo para a avaliação de risco, preservação ambiental, saúde humana e controle da segurança e qualidade dos produtos de exportação e importação.
Com informações da Unesp