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Amazônia Real

Uma releitura do livro 1499: capítulo 7. Ano 1499 d.C: Epílogo

Publicado em 27 maio 2019

Por Elvira Eliza França

Por que o Brasil pré-histórico foi derrotado?

Nesse capítulo, Reinaldo José Lopes, o autor, questiona a visão enganosa que se tem de que as sociedades nativas brasileiras entraram em colapso após o processo de colonização europeia. Segundo ele, a destruição dos povos indígenas já havia acontecido antes da presença dos europeus no continente. O que aconteceu é que, nos séculos XVI e XVII, os povos que viviam aqui não estabeleceram relações de subserviência aos portugueses, mesmo motivados pelos objetos sem valor que lhes eram oferecidos de presente, como: colares, espelhos, machados etc. (LOPES, 2017, p. 202). Cada grupo de nativos reagia de maneira própria à presença do invasor europeu, procurando tirar proveito para a sua sobrevivência. Contudo, as doenças infecciosas trazidas pelos colonizadores tiveram um papel significativo na exterminação dos diferentes grupos indígenas que viviam neste território.

Para a compreensão sobre essas doenças, Lopes aborda sobre os animais pertencentes aos povos desbravadores que povoaram a América do Sul. Diz que no Brasil o animal domesticado foi o pato bravo, enquanto que na América do Norte e Central havia outros como o porquinho-da-índia, camelo, lhama, alpaca, além dos cães (p. 204). Os mamíferos de grande porte como as vacas (gado europeu e zebu da Índia), cabras, ovelhas, porcos, cavalos, galinhas, jumentos, camelos, búfalos, iaques, vieram para a América no início da revolução agrícola, além dos cães, gatos e coelhos.

Fóssil de toxodonte em exposição no Museu de Ciências Naturais Bernardino Rivadavia em Buenos Aires (Foto: Were Spiel Chequers – CC BY-SA 3.0)

No território brasileiro da pré-história havia animais de grande porte como cavalos, lhamas, preguiças gigantes, toxodontes, restando deles, nos dias atuais, somente a anta e a onça (p. 205). Já na América do Norte havia animais com grandes chifres como os mamutes-lanosos e os bisões (p.206). Segundo Lopes, não se sabe se o desaparecimento dos animais de grande porte ocorreu devido às mudanças climáticas radicais, ou à ação humana.

Com relação à domesticação, o autor diz que domesticar plantas era muito mais fácil do que domesticar animais, trazidos para o convívio humano e que comiam restos de alimentos humanos – como porcos e cães –, além dos herbívoros e onívoros. Contudo, era muito arriscado domesticar animais de grande porte e comedores de carne. Os animais maiores que eram utilizados no arado, eram os que podiam ser laçados e montados, como os cavalos e os camelos. Estes ofereciam vantagens porque cresciam mais rapidamente e podiam ser utilizados no trabalho. Mas esses animais também tinham que ter o temperamento mais amigável, sendo que o cavalo, por ter essa característica, também era utilizado nos movimentos de guerra entre os grupos.

As pessoas que possuíam genes que digeriam a lactose do leite, tirado dos animais, se tornaram mais resistentes e sobreviveram com mais facilidade, deixando descendentes com tal predisposição também (p. 211). Mas havia o peso das doenças infecciosas, causadas por vírus ou bactérias que se hospedavam nos animais, afetando os humanos. Por isso, tais patógenos podiam produzir surtos, quando atingiam um número maior de pessoas, em populações numerosas. Não é por acaso que os patógenos que infectam os animais domésticos mamíferos, também afetam os seres humanos, como ratos e suas pulgas, assim como o porco (gripe suína). Isso assusta as pessoas até hoje. As crianças, com o sistema imunológico mais imaturo, são as mais afetadas, mas quando se tornam imunes elas sobrevivem melhor.

Yanomami em fotografia de Cláudia Andujar

Quando os europeus chegaram ao território das Américas, eles eram mais resistentes a várias doenças, e traziam essa predisposição em seu DNA. Por outro lado, os indígenas não tinham resistência às doenças da Europa, porque não haviam tido contato com elas, para se tornarem imunes. Eles viviam isolados há 10.000 anos. Essa fragilidade imunológica pode explicar o fato de muitas populações indígenas não terem resistido a certos patógenos trazidos pelos europeus e terem morrido em grande número. Isso também acontece até os dias atuais, como relata o xamã indígena Davi Kopenawa Yanomami e o antropólogo Bruce Albert, no livro “A queda do céu” (2015), ao relatarem o alto índice de mortalidade dos Yanomami, após o contato com garimpeiros.

As epidemias que atacavam os indígenas, no período histórico relatado por Lopes, diminuíam o número de braços para o plantio. Nos lugares onde havia grandes aglomerados de pessoas, que viviam em situações insalubres, o contágio era maior (p. 218). Esse contágio não ocorria necessariamente no contato direto com os europeus, mas também por meio da troca de objetos dados por eles aos indígenas, e que eram utilizados nas relações de comércio entre os grupos nativos que viviam próximos ao litoral com aqueles que estavam no interior. Além disso, posteriormente, quando da vinda dos negros escravos da África, outras doenças começaram a ser transmitidas por mosquitos africanos, como a febre amarela, malária e outras enfermidades, que exterminaram muitos grupos de nativos.

Além das doenças, havia os equipamentos bélicos dos europeus: armas metálicas e armaduras, que se sobrepunham tecnologicamente aos armamentos indígenas (p. 220). Os europeus também levavam vantagens sobre os nativos, por terem domínio da escrita e assim poderem trocar informações entre si, de modo rápido e fidedigno. As sociedades ameríndias que viviam no litoral eram as que sofriam mais com as epidemias, conversão religiosa e trabalho servil prestado aos colonizadores. Assim, o contato com os colonizadores que obrigavam os indígenas ao trabalho forçado, somado ao aumento da mortalidade indígena, foi o que fez com que aqueles grupos nativos que viviam no litoral se embrenhassem para o interior, com o objetivo de se proteger da ação dos invasores. Ali, mais isolados, ele também protegiam mais facilmente as suas terras.

Essa estratégia foi adotada pelos Botocudo (Aimoré e Goitacá), assim como aqueles que falavam o idioma macro-jê e que viviam em lugares onde atualmente estão os estados de Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia. Os indígenas mais resistentes, no entanto, foram atacados quando Dom João se instalou no Rio de Janeiro e declarou guerra contra os indígenas, alegando que eles viviam “como animais, sem aldeias permanentes, lavouras, casas ou mesmo uso do fogo, comendo carne crua (e ou humana)” (p. 228).

No território próximo ao Paraguai e Bolívia, os grupos de fala Guiakurú eram conhecidos por serem astutos e belicosos e atacavam agricultores e outros indígenas com o objetivo de saquear roças e obter escravos. Eram indígenas especialistas em navegação veloz, utilizando canoas construídas por eles mesmos. Animais como cavalos eram levados e se espalharam por áreas como Mato Grosso e Buenos Aires, onde a vegetação era mais aberta. Na região do Pantanal, os cavalos aprenderam a sobreviver no pasto semissubmerso. A domesticação dos cavalos pelos Guiakurú se deu na montagem no pelo dos animais, pois eles não faziam o uso de selas ou estribos, e utilizavam os animais no combate na bacia do Paraguai. Aterrorizavam os bandeirantes e garimpeiros que viviam pela região, porque deitavam o corpo e se escondiam ao lado do cavalo, mesmo enquanto cavalgavam. Nos ataques, esses indígenas capturavam índios de outras tribos, assim como europeus e negros para realizarem trabalhos braçais, mas deixavam livres seus filhos (p. 230).

Dada a força dos Guaikurú, foi estabelecido um acordo de paz pela Coroa Portuguesa com eles, em 1871. O ramo da etnia Kadiwéu, que vivia na região onde está hoje Mato Grosso do Sul, também prestou serviços militares durante a Guerra do Paraguai, na cavalaria real (1864-1870). O uso dos cavalos, trazidos pelos europeus, transformou as sociedades indígenas, e fortaleceu a resistência contra os europeus, principalmente nas regiões do Pantanal e pampas argentinos e gaúchos (p. 231-2).

Encerramos, assim, a releitura do livro: 1499: o Brasil antes de Cabral, de Reinaldo José Lopes (2017), deixando a motivação para aqueles leitores que quiserem ter maior aprofundamento nos temas dos capítulos, para que busquem ler a obra original. Certamente, por meio das palavras do autor, poderão encontrar mais detalhes sobre todos os temas tratados, desde os primórdios do povo de Luzia, até a chegada dos europeus. No decorrer dos capítulos, o leitor terá a oportunidade de complementar seus conhecimentos científicos, por meio de uma conversa com o autor, que apresenta nomes de instituições, de pesquisadores e obras de referência, que vêm desvendando a história do Brasil, por meio dos achados arqueológicos, paleontológicos e da biologia evolutiva.

O presente texto é uma releitura do livro “1499: O Brasil antes de Cabral” (2017), de autoria do jornalista Reinaldo José Lopes, formado pela Universidade de São Paulo, mestre e doutor em literatura inglesa, colunista e blogueiro da editoria de Ciência do jornal Folha de São Paulo. Ele produz reportagens sobre o trabalho de cientistas que investigam o passado remoto e por isso seu livro apresenta informações sobre várias áreas de conhecimento, dentre elas arqueologia, paleontologia e biologia evolutiva.

Fontes:

AZEVEDO, Ana Lúcia. O crânio de Luzia, a mais antiga habitante das Américas, pode ter desaparecido no incêndio do Museu Nacional.

BETTIM, Felipe. Como Luzia, a mulher mais antiga do Brasil, renasceu das cinzas.

HECKENBERGER, Michael J.; KUIKURO, Afukaka; KUIKURO, Urissapá Tabata; RUSSELL, J. Christian; SCHMIDT, Morgan; FAUSTO, Carlos; and FRANCHETTO, Bruna. Amazonia 1492: Pristine Forest or Cultural Parkland?. Sep. 2003, Science 301: p. 1710-1714.

LOPES, Reinaldo José Lopes. Luzia: a vítima mais preciosa do incêndio do Museu Nacional.

WATANABE, Phillipe. Luzia, fóssil humano mais antigo das Américas, faz parte de acervo do Museu Nacional.

PIVETTA, Marcos. A América de Luzia. Boletim Fapesp de maio de 2012.

Livro mencionado no artigo: KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Leia os artigos da série:

Uma releitura do livro “1499: o Brasil antes de Cabral” – apresentação da série

Uma releitura do livro “1499”: capítulo 1. Ano 13.501 a.C.: Quem é você, Luzia?

Uma releitura do livro “1499”: capítulo 2. Ano 8.501.a.C.: As conchas e os mortos

Uma releitura do livro “1499”: capítulo 3. Ano 6.501 a.C – Revolução agrícola “made in Brazil”

Uma releitura do livro “1499”: capítulo 4. Ano 2.001 a.C.: Os filhos da serpente

Uma releitura do livro 1499: capítulo 5. Ano 2.001 a.C.: No reino das Amazonas

Uma releitura do livro 1499: capítulo 6. Ano 100 d.C.: Tupi or not Tupi

Onde encontrar o livro?

LOPES, Reinaldo José

1499: O Brasil antes de Cabral

Rio de Janeiro, Harper Collins, 2017

A imagem que abre este artigo é Duelo de Botocudos na obra Viagem pelo Brasil (1820-21), do príncipe Maximilian Alexander Philipp de Wied-Neuwied [1782-1867]. (Acervo Biblioteca Nacional)

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, pós-graduanda em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educação: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS).