Notícia

Amazônia Real

Uma releitura do livro “1499”: capítulo 4. Ano 2.001 a.C. – Os filhos da serpente

Publicado em 13 fevereiro 2019

Por Elvira Eliza França

O tesos e os achados arqueológicos da ilha de Marajó que ajudam a esclarecer as formas de sobrevivência e organização social dos povos pré-cabralinos que viveram na Amazônia

O jornalista Reinaldo José Lopes inicia o capítulo falando sobre os búfalos da ilha de Marajó, de origem asiática, que chegaram recentemente e se adaptaram facilmente ao clima e aos campos alagáveis. Durante o período das cheias, as águas ocupam 40% da ilha em alagações, o correspondente a 23.000 km2. O solo argiloso, impermeável e pobre em nutrientes, acumula água da chuva com inundação de 1 a 2 m de profundidade, porque a parte central da ilha fica abaixo do nível do mar. Contudo, quando chega o período da seca, a água escoa, o solo fica ressequido e racha, formando torroadas que impedem a produção agrícola, da mesma forma que impedia com o alagamento.

No lado oeste da ilha, no entanto, devido ao suprimento de sedimentos de matéria orgânica, que são depositados no solo pelo rio Amazonas, a fertilidade é maior. Estudos realizados no solo indicam a possibilidade de os primeiros moradores da ilha de Marajó terem produzido e se alimentado da mandioca (Manihot esculenta), das palmeiras do buriti (Mauritia Flexuosa) e do açaí (Euterpe oleracea) ali plantados. Contudo, nos campos onde há alternância entre o período da cheia e da seca, eram os peixes e as tartarugas com seus ovos que serviam de alimento à população. No período da vazante, quando esses animais ficavam ilhados, havia muita fartura de alimentos e grande ingestão de proteína (LOPES, p. 111-3).

Estudos arqueológicos realizados na ilha de Marajó, estimaram que a data do início da ocupação pelos primeiros habitantes ocorreu há 3.500 atrás, com a provável formação de pequenas aldeias. Ali, os sítios arqueológicos dos tesos, pequenos morrinhos de terra, marcam a presença dos primeiros habitantes do lugar. Os tesos eram construídos com a lama do leito das lagoas que esvaziavam no período da vazante, de forma que eles ficavam acima da linha da água, protegendo o local quando a cheia voltava. Na Europa, foi constatado que os tesos, construídos em diferentes épocas, abrigavam cadáveres da elite, com suas armas e joias, formando uma plataforma funeral protegida da enchente (LOPES, p. 114).

A antropóloga Denise Pahl Schaan, da Universidade Federal do Pará (UFPA), pesquisou o Igarapé dos Camutins, afluente do rio Inajá, e constatou grande quantidade de peixe retida nos lagos, no final da cheia, quando grande parte das águas retornam para o leito do rio. Nos estudos da arqueóloga americana Ana Roosevelt, que analisou os restos aquáticos do local, foram encontrados restos de diferentes peixes como:

“traíras (Hoplias malabaricus), piranhas (Serrasalmus sp.) e bagres conhecidos como tamoatás (Hoplosternum littorale), além de pequenas tartarugas, as muçuãs ou jurarás (Kinosternon scorpioides) – as quais ainda são utilizadas na culinária amazônica. Peixes grandalhões, como o saboroso pirarucu (Arapaima gigas), também estavam presentes, mas em quantidade menor” (LOPES, p. 115).

Desenhos de 1901 do acervo do Smithsonian Institution Bureau of American Ethnology dos perfis de borda e formas de vasos de taças simples encontrados em Camutins no Pará.

Nos estudos realizados sobre a construção dos tesos, foi constatado haver gerenciamento hídrico e construção de represas, para reter os peixes que entravam nos lagos artificiais durante a cheia. Assim, com os tesos, eles permaneciam nos lagos, mesmo após a vazante, suprindo a população de peixes para a alimentação durante todo o ano. Por isso, a profundidade da escavação dos açudes está relacionada com o tamanho e a altura do tesos, sendo que há os que chegam até 10 m de altura. Certamente, no passado, os ocupantes do teso maior eram os que tinham mais suprimento de proteína, devido à maior profundidade do lago. Então, podiam estabelecer controle estratégico sobre os demais habitantes do local.

Os pesquisadores também supõem que havia moradias no topo dos tesos e ali eram produzidos utensílios de cerâmica. Na região de Camutins, há probabilidade de ter havido uma população com até 3.000 pessoas, comparável à de uma cidade europeia medieval de médio a pequeno porte (LOPES, p. 116). Nos tesos maiores, também denominados de “tesos cerimoniais”, foram encontradas sepulturas e bens funerários, assim como resquícios de habitações, fazendo os pesquisadores supor que pertenceram aos clãs de pessoas nobres.

Nas datações dos achados arqueológicos de cerâmica marajoara clássicos, foi constatada variação de idade entre 1.000 a 1.400 d.C., dependendo do local em que foram encontrados. As técnicas para sua produção também são variadas, chegando a quase 20, sendo que a tradição tupi-guarani, presente no litoral, possui um número de até quatro. Dentre as técnicas para a produção de cerâmica foram identificadas: a colocação de verniz, incisões, excisões, apliques, desenho e polimento. Os desenhos apresentam “padrões geométricos simples (zigue-zagues, raios, cruzes) até representações surreais da anatomia humana e figuras que evocam animais amazônicos, como tartarugas, jacarés e serpentes” (LOPES, p. 118).

As urnas funerárias encontradas chamaram mais a atenção dos pesquisadores, pois apresentam um metro ou mais de altura, podendo abrigar o corpo inteiro ou partes do corpo. O formato estilizado delas é de um útero ou do órgão sexual feminino, que indica a possibilidade da linhagem materna ter tido relevância para os primeiros habitantes da ilha. Os desenhos de cobras inteiras ou de suas partes nessas urnas (cabeça e ponta do rabo), lembram o mito amazônico, presente em vários grupos amazônicos (LOPES, p. 118). Segundo esse mito, os primeiros habitantes humanos chegaram ao mundo dentro da barriga de uma cobra primordial, e à medida que saíam foram construindo as comunidades.

Os desenhos de escamas estilizadas e as tangas de cerâmica, encontrados entre os achados arqueológicos, também deixam supor que a diferença no tamanho e no detalhes da decoração pode estar relacionada com os rituais de iniciação na puberdade da menina, depois que ela menstrua e se torna mulher. Isso pode explicar porque os adereços das meninas-moças eram mais decorados do que os das mulheres. Os pesquisadores também constataram que as estatuetas das figuras femininas tinham a cabeça semelhante à glande (a cabeça do pênis), sendo ocas e com uma pedrinha dentro. Isso pode indicar que elas eram utilizadas como chocalho durante os rituais e reforça essa hipótese o fato do pescoço das estatuetas estar sempre quebrado. Nos rituais de cura e exorcismo recentes ocorre intencionalmente essa quebra (LOPES, p.119).

Muiraquitãs esculpidos pelos índios e vasos de cerâmica marajoara em exposição no Museu do Forte do Presépio em maio de 2017 (Foto: Thiago Gomes/Ag. Pará)

De acordo com a datação dos achados arqueológicos, a cultura marajoara – com a construção de tesos e rituais de diferentes tipos – estava desaparecida, quando da chegada dos europeus. A ilha, no entanto, possuía habitação e há sinais da presença dos grupos de fala Aruak no local, da mesma maneira que há em outros locais da América do Sul e do Caribe, na fase que antecedeu a chegada dos colonizadores.

Lopes apresenta explicações técnicas de termos como “bandos” (família ampliada de caçadores-coletores em busca de alimento), “tribo” (constituída por membros sedentários ligados à agricultura e criação de animais), “liderança”, (ato que requeria coragem e bom senso). Diz que o uso do termo “cacique” foi emprestado do Caribe, e se distingue de chefatura, que está voltada para a direção de grande população, envolvendo nobres e plebeus. Ele também faz a divisão entre artesãos e burocratas e explicita o papel da religião no controle e contato com estranhos. Na construção dos estados, diz que está implicada a formalização, a burocratização e a centralização. Explicita que a antropóloga Denise Schaan utiliza a expressão “chefatura simples” para identificar o tipo de autoridade que era exercida na ilha de Marajó nos tempos pré-cabralinos, pois lá já havia um embrião de Estado, contendo interações políticas e sociais, com uma elite que, habilmente, lançava mão dos aspectos religiosos e cerimoniais no ato de exercer sua autoridade perante o grupo (LOPES, p. 121-125).

O presente texto é uma releitura do livro “1499: O Brasil antes de Cabral”, de autoria do jornalista Reinaldo José Lopes, formado pela Universidade de São Paulo, mestre e doutor em literatura inglesa, colunista e blogueiro da editoria de Ciência do jornal Folha de São Paulo. Ele produz reportagens sobre o trabalho de cientistas que investigam o passado remoto e por isso seu livro apresenta informações sobre várias áreas de conhecimento, dentre elas arqueologia, paleontologia e biologia evolutiva.

Fontes:

AZEVEDO, Ana Lúcia. O crânio de Luzia, a mais antiga habitante das Américas, pode ter desaparecido no incêndio do Museu Nacional.

BETTIM, Felipe. Como Luzia, a mulher mais antiga do Brasil, renasceu das cinzas.

HECKENBERGER, Michael J.; KUIKURO, Afukaka; KUIKURO, Urissapá Tabata; RUSSELL, J. Christian; SCHMIDT, Morgan; FAUSTO, Carlos; and FRANCHETTO, Bruna. Amazonia 1492: Pristine Forest or Cultural Parkland?. Sep. 2003, Science 301: p. 1710-1714.

LOPES, Reinaldo José Lopes. Luzia: a vítima mais preciosa do incêndio do Museu Nacional.

WATANABE, Phillipe. Luzia, fóssil humano mais antigo das Américas, faz parte de acervo do Museu Nacional.

PIVETTA, Marcos. A América de Luzia. Boletim [Revista Pesquisa] Fapesp de maio de 2012.

Leia os artigos da série:

Uma releitura do livro “1499: o Brasil antes de Cabral” – apresentação da série

Uma releitura do livro “1499”: capítulo 1. Ano 13.501 a.C.: Quem é você, Luzia?

Uma releitura do livro “1499”: capítulo 2. Ano 8.501.a.C.: As conchas e os mortos

Uma releitura do livro “1499”: capítulo 3. Ano 6.501 a.C – Revolução agrícola “made in Brazil”

Onde encontrar o livro?

LOPES, Reinaldo José

1499: O Brasil antes de Cabral

Rio de Janeiro, Harper Collins, 2017

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educação: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS).

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