O ato de catar conchinhas na praia é um costume humano, mas o que impressiona os pesquisadores é a grande quantidade de restos mortais de moluscos acumulados pelo tempo, que são encontrados em morrinhos, localizados no litoral brasileiro, denominados de sambaquis. Em 2005, arqueólogos, coordenados por Levy Figuti, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo – USP, estudaram sambaquis e encontraram um sítio arqueológico denominado de Capelinha, na cidade de Jacupiranga, no vale do rio Ribeira de Iguape, litoral de São Paulo.
Em Capelinha, os pesquisadores descobriram amostras de ossos humanos em um dos 30 sambaquis do local. O material foi analisado com apoio de Walter Neves (o cientista que vem estudando os ossos de Luzia e seu povo) e foi constatado que os ossos eram de um homem com idade entre 25 e 30 anos, medindo 1,60 m e fisicamente ativo (LOPES, p. 65-66). Os restos mortais desse homem estavam depositados sobre as conchas e recoberto com terra, contendo “alguns artefatos de osso polido e uma ponta de projétil de pedra” (LOPES, p. 69).
Com base nas análises da presença de carbono-14, que determina a idade do achado arqueológico, os ossos foram datados com 9.000 anos, podendo até ser mais idoso, com 10.000 anos. Por ter a forma semelhante à de Luzia, encontrada em Minas Gerais, esse homem passou a ser denominado com o nome de Luzio, pelos pesquisadores, porque suas características se assemelham às dela.
Lopes explica que há diferentes métodos para a análise dos achados arqueológicos, investigando-se elementos que perduram nos restos mortais por longos anos. Por isso, a partir dessas análises, é possível reconstruir o tipo de alimentação e de vida que a pessoa levava no tempo em que viveu: a presença de resquícios de vegetais, carne e peixe (carbono-13, nitrogênio-14 e 15). Essas análises possibilitam fazer inferências sobre como a pessoa se alimentava e vivia no passado (LOPES, p. 67-8). A partir dos testes realizados nos restos de Luzio, os pesquisadores constataram que ele não comia peixe: nem do rio nem do mar (LOPES, p. 69).
Com base nesses dados, Lopes levanta a possibilidade de que, no final da Era do Gelo, devido à grande quantidade de água derretida que foi levada para o oceano, os habitantes que viviam no litoral precisaram se deslocar para o interior. O território de Capelinha, onde foi encontrado Luzio, pode ter sido uma recriação dos tradicionais sambaquis, construídos pelo seu grupo, e que haviam sido engolidos pelas águas. Mas o fato de Luzio não ter se alimentado de moluscos durante sua vida, fez com que sua morfologia craniana (forma dos ossos da cabeça) fosse paleoamericana, isto é, semelhante à dos habitantes que viviam no interior, assim como vivia o povo de Luzia. Os demais achados humanos tinham a forma mongoloide, com idade de 6.000 anos. Por isso, mesmo sendo encontrado próximo ao litoral, Luzio foi associado como pertencendo ao grupo de Luzia, que viveu em Minas Gerais, devido às suas características paleoamericanas. A hipótese, então, é de que Luzio estivesse se deslocando do interior para o litoral e não vice-versa.
Turista visita exposição do crânio de Luzio no Parque Estadual do Rio Turvo, em São Paulo (Foto: Divulgação/PERT)
No Brasil, é a costa sul do estado de Santa Catarina o local onde existe grande quantidade de sambaquis que vêm sendo investigados desde 1990, pelos pesquisadores Maria Dulce Barcellos Gaspar, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e por Paulo DeBlasis, da Universidade de São Paulo – USP. Com base no que eles vêm descobrindo, Lopes comenta que a construção dos sambaquis está associada aos locais onde há lagunas, e onde a água é doce e salobra, e que, anteriormente, tiveram ligação com o mar. Os sambaquis também aparecem em zonas de restinga, próximas ao mar e manguezais, onde o solo é arenoso, e onde há dunas e faixas de mata, com várias espécies aquáticas. Esses sambaquis estão localizados em locais chamados de ecótonos, e fazem parte de dois tipos de ambientes: da mata e do cerrado. Eles estão presentes em locais próximos onde viviam caçadores-coletores, e que sobreviviam alternando a busca dos alimentos nesses dois ambientes próximos (LOPES, p. 75-6.)
De acordo com os achados arqueológicos encontrados nos sambaquis, os pesquisadores supõem que esses lugares tenham sido uma versão primitiva dos cemitérios da atualidade, onde também foi constatada a presença próxima de instrumentos de pedra e artefatos. Os sambaquis que são encontrados na atualidade têm diferentes alturas, que vão de alguns metros a 50 metros, o que corresponde a um prédio de 15 andares, com 3 metros de altura cada um. Não se sabe qual o tamanho dos outros sambaquis que ficaram submersos, quando houve a subida do mar, no final da Era do Gelo, nem o que as intempéries destruíram do que resta nos atuais sambaquis, com o passar dos tempos. A abertura de estradas e a exploração da mineração expuseram muitas laterais desses sítios arqueológicos e possibilitaram a descoberta de fósseis que são muito valiosos para o estudo dos habitantes primitivos de nosso país (LOPES, p. 77). Contudo, há muito para ser investigado ainda sobre os sambaquis.
Em Jaguaruna também foi encontrado o sambaqui Jaboticabeira II, próximo à lagoa do Camacho, com a altura de 8 metros, abrangendo um território com 90.000 m2, e datado de 2.500 anos. Os pesquisadores estimam que ali estejam enterrados 40.000 corpos, colocados durante 8 séculos de história (LOPES, p. 77). Assim como em outros sambaquis, em que foram encontrados restos funerais humanos, no Jaboticabeira II foi constatada a presença de corpos enterrados na posição fetal, num espaço de depressão ovalada. Eles estavam recobertos com conchas e outros restos de fauna e peixes.
Tais achados deram uma ideia sobre a fartura de alimentação que estava disponível para os habitantes da pré-história naquela região. No local, foram encontrados: “restos de baleias, aves marinhas, golfinhos, pinguins […] e espécies puramente terrestres, como tatus e antas” (LOPES, p. 78). A hipótese é de que esses alimentos estejam relacionados com banquetes que eram realizados durante festins funerários, realizados em honra aos mortos, já que junto aos corpos também foram encontradas ofertas de objetos não comestíveis que podem ter sido utilizados nos rituais.
Muitas peças encontradas nos sambaquis impressionam os pesquisadores pelo “grau impressionante de delicadeza, atenção ao detalhe a apuro artístico” (LOPES, p. 79). Produzidos com ossos e pedras, essas peças são denominadas de zoólitos, por terem a forma de animais como peixes e mamíferos como “jabutis, tamanduás e cutias, além de uma série de aves” (LOPES, p. 79). As pequenas estatuetas apresentam uma pequena depressão no ventre, e os pesquisadores questionam se isso está relacionado com a mitologia da fertilidade.
Também foram encontradas “pontas de lança ou de flecha, arpões ou mesmo anzóis” nesses lugares (LOPES, p. 80), sendo que há sambaquis em que as oferendas são em maior quantidade e melhor qualidade. Esse tipo de distinção faz os pesquisadores suporem que eram ofertadas a alguém com status elevado. Mas há especulação, também, de haver setores dentro de um mesmo sambaqui que era reservado para diferentes linhagens familiares.
Devido à altura dos sambaquis, os pesquisadores supõem, ainda, que tais espaços também tenham servido como local privilegiado de visão para sinalização e coordenação espacial do território para organização de expedições e defesa contra invasores. Essa prática milenar de construir sambaquis foi abandonada com a chegada de grupos que praticavam a agricultura. Por isso, é importante a investigação de como se deu a domesticação dos vegetais no contexto primitivo do Brasil pré-cabralino.
O presente texto é uma releitura do livro “1499: O Brasil antes de Cabral”, de autoria do jornalista Reinaldo José Lopes, formado pela Universidade de São Paulo, mestre e doutor em literatura inglesa, colunista e blogueiro da editoria de Ciência da Folha de São Paulo. Ele produz reportagens sobre o trabalho de cientistas que investigam o passado remoto e por isso seu livro apresenta informações sobre várias áreas de conhecimento, dentre elas arqueologia, paleontologia e biologia evolutiva.
Fontes:
AZEVEDO, Ana Lúcia. O crânio de Luzia, a mais antiga habitante das Américas, pode ter desaparecido no incêndio do Museu Nacional.
BETTIM, Felipe. Como Luzia, a mulher mais antiga do Brasil, renasceu das cinzas.
HECKENBERGER, Michael J.; KUIKURO, Afukaka; KUIKURO, Urissapá Tabata; RUSSELL, J. Christian; SCHMIDT, Morgan; FAUSTO, Carlos; and FRANCHETTO, Bruna. Amazonia 1492: Pristine Forest or Cultural Parkland?. Sep. 2003, Science 301: p. 1710-1714.
LOPES, Reinaldo José Lopes. Luzia: a vítima mais preciosa do incêndio do Museu Nacional.
WATANABE, Phillipe. Luzia, fóssil humano mais antigo das Américas, faz parte de acervo do Museu Nacional.
PIVETTA, Marcos. A América de Luzia. Boletim Fapesp de maio de 2012.
Leia os artigos da série:
Uma releitura do livro “1499: o Brasil antes de Cabral” – apresentação da série
Uma releitura do livro “1499”: capítulo 1. Ano 13.501 a.C.: Quem é você, Luzia?
Onde encontrar o livro?
LOPES, Reinaldo José
1499: O Brasil antes de Cabral
Rio de Janeiro, Harper Collins, 2017
A fotografia que abre este artigo mostra a Caverna do Diabo em Jacupiranga, no Parque Estadual do Rio Turvo (Foto: Fundação Florestal/SP)
Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educação: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS).
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