O significado das manifestações de 2013 segue desafiando o nosso entendimento, seja pelo volume, seja pelo impacto que causaram, ou ainda pelo mistério que é entender o que afinal de contas motivou as pessoas. Mas um elemento era universal, a percepção clara de que o nosso modelo de Estado era incompatível com o "Brasil" que queríamos. Naquele momento havia uma grande convergência e percepção de que era necessário mudar.
Mas a necessidade de mudança implica uma nova questão, mudar para o quê? Nesse momento começou uma profunda divisão da sociedade brasileira sob que rumo tomar. Ainda que obviamente existam matizes, a divisão essencial se deu entre aqueles que preferem um Estado menor e aqueles que preferem um Estado mais forte.
O capitalismo brasileiro, desde Vargas, sempre incluiu a forte participação do Estado, que para o bem ou para o mal, foi elemento chave para o crescimento econômico brasileiro. Essa situação oscilou, obviamente, ao longo do tempo, com privatizações que foram seguidas de novos avanços da máquina pública. Como resultado, temos que uma boa parte do PIB depende intrinsecamente de empresas estatais ou de empresas que já foram estatais, e mesmo no caso de empresas privadas, existe um forte componente de intervenção estatal.
As eleições de 2016 responderam as manifestações de 2013 de forma enigmática.Mudaram substancialmente o congresso nacional, tornado-o mais conservador nos costumes e mais liberal na economia, e mantiveram por pequena margem, uma presidente de esquerda. Essa contingência histórica fez surgir poderosas forças de cisalhamento que nos arrastaram para uma perigosa imobilidade e que culminaram com dois momentos de tentativa de deposição presidencial, uma bem sucedida e outra que fracassou. Em minha opinião, a luta contra a corrupção que afetava os dois lados na disputa não foi causa, mas essencialmente um elemento tático na disputa política.
Ainda que Temer e o PMDB tenham sido aliados constantes do PT ao longo de quase todo o período petista, esses souberam capturar as insatisfações das camadas médias e dos setores empresariais e se apresentar como uma saída liberalizante para o país. Infelizmente, o poder do PMDB decorre exatamente de sua capacidade de alugar a máquina pública para que essa se preste a interesses privados e, assim, seu modelo de capitalismo liberal é longe do ideal da economia de mercado idealizada por Adam Smith. E após um ano de governo Temer, ficou evidente que o ajuste fiscal se localizou exatamente nos serviços que a sociedade brasileira queria melhorar e manteve intacto os maiores privilégios do setor público e os generosos incentivos fiscais característicos da política econômica da era petista.
A Ciência no Brasil foi ao longo de sua história um empreendimento essencialmente governamental. CNPq, Capes, as agências de fomento estaduais (FAPESP...) e as empresas estatais, como a Embrapa, sempre foram responsáveis pela maior parte do investimento em pesquisa nacional. As universidades públicas e os laboratórios dessas empresas abrigaram a imensa maioria dos cientistas brasileiros e do desenvolvimento tecnológico.
O governo Temer e a aprovação da PEC 275, que limita o crescimento dos gastos públicos, parecem implicar (é sempre importante lembrar que no Brasil, leis raramente "pegam") que o Estado não será responsável pelo próximo ciclo de crescimento brasileiro. Se voltarmos a crescer, não importa sobre que base econômica, o papel do Estado estará circunscrito: ao pagamento do aparato repressor-judicial, a classe política, dívida pública e previdência. Mesmo as áreas de Saúde e Educação devem ser severamente atingidas.
O rebaixamento do CNPq à um órgão de 4o. escalão no Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações mostra a importância da pesquisa científica no Brasil de hoje. Sociedade que é muito parecida ao velho Brasil colônia: com uma base econômica centrada na exportação de bens agropecuários e comodities, com uma forte concentração de renda e com uma massa trabalhadora mal remunerada, mal educada e com baixa produção. Nessa simultaneamente nova e velha sociedade é importante nos perguntarmos que Ciência é possível.
Mas antes cabe ressaltar que hoje, mais do que nunca, uma Ciência brasileira é essencial, ainda que seu papel esteja sob fogo cerrado no mundo inteiro e em especial, aqui. Os setores que venceram a disputa política, a tradicional Bancada BBB: Boi, Bala e Bíblia encaram a Ciência como uma força política adversária. A parte Boi, porque se opõe ao veredito de que vivemos uma crise climática, a parte Bala porque prefere ver cada cidadão com uma arma da mão do que construir alternativas civilizadas às nossas mazelas sociais e a da Bíblia, por preferir uma população sem acesso ao conhecimento científico, que é considerado por eles como antagônico aos preceitos bíblicos. Sem uma ciência atuante corremos o risco de construir uma sociedade sob essas bases. Mas o mais preocupante é que os argumentos científicos perderam sua capacidade de balizar a discussão e se tornaram apenas mais um elemento nas disputas ideológicas nas arenas políticas mundiais.
Apesar dos pesares, o Brasil ainda possui uma das melhores infraestruturas universitárias do mundo. Ao longo da era petista, ela se capilarizou Brasil afora e hoje está espalhada não apenas em grandes centros, mas em cidades de médio e pequeno porte. Esse sistema depende, para funcionar, de recursos e pode prover capital humano capaz de gerar desenvolvimento e empregos.
Entretanto, a academia brasileira sofre de suas mazelas. A adoção de um modelo de avaliação que premia exclusivamente a produção de papers e a formação de novos doutores, gerou, por um lado, uma maior inserção brasileira no cenário internacional. Não apenas representado pelo aumento do número de artigos, mas também pela sua qualidade (ainda que a quantidade seja muito mais evidente). Por outro lado, esse avanço veio com um crescente distanciamento da sociedade brasileira e em especial, do setor privado.
Esse distanciamento é grave para ambos os lados, pois por um lado implica que a nossa indústria e agricultura sigam dependentes de inovações externas que, além de serem caras, muitas vezes não são adequadas à nossa realidade. A classe empresarial brasileira sabe que é muito mais lucrativo investir em corromper políticos, e assim ter acesso às benesses do Estado, do que investir em complexos e longos ciclos de desenvolvimento tecnológico.
A falência do modelo estatal de desenvolvimento científico e tecnológico e a falta de apetite das forças de mercado estão gerando um fenômeno novo no Brasil, temos um grande contingente de jovens titulados sem perspectivas de emprego. Essencialmente inviabilizando a forma como a pesquisa é realizada no Brasil, a saber, composta essencialmente por pós-graduandos trabalhando com bolsas de agências de fomento.
Assim, a severa crise do CNPq, que não possui hoje recursos para pagar as bolsas até o final do ano é mais grave que possa parecer. Sem perspectivas, os nossos melhores cérebros estão saindo do Brasil e novos recursos humanos não estão entrando no sistema. Durante a votação pela autorização da abertura de processo contra Temer, o governo cedeu para basicamente todos os setores da sociedade brasileira. A Ciência foi a mais clara exceção. Mostra que não formos nem mesmo capazes de exercer pressão sobre um governo claudicante, evidência mais dramática do descolamento entre a comunidade científica e a sociedade civil.
Sem acesso a recursos públicos e com a clara perspectiva de que não haverá mais crescimento substancial nas verbas futuras, cabe à Ciência brasileira se reinventar ou morrer. A reinvenção passa pela capacidade de captar recursos de fontes diversas e de tornar a pesquisa um vetor explícito de geração de empregos e de crescimento. A ABC e a SBPC estão plenamente conscientes dos desafios que temos pela frente e, durante anos, lutaram bravamente por aprovar o Marco Regulatório da Ciência Brasileira. Essa legislação tinha por objetivo normatizar e esclarecer como o setor público e os interesses privados deveriam agir em prol do desenvolvimento tecnológico. Após um longo e complexo processo de negociação os Congresso aprovou o Marco mas, infelizmente, ele acabou sendo desfigurado pela presidente Dilma, em grande parte por pressões de setores do Estado, como a Receita Federal. Como resultado, temos uma legislação que segue sendo inadequada e pouco impacto trouxe ao nosso desenvolvimento.
A situação hoje segue sendo a de grande complexidade jurídica na regulação da interação entre comunidade científica e setor produtivo. A legislação que existe é interpretada de formas variadas pelos diferentes órgãos dos governos, gerando discrepâncias, processos judiciais, em suma: insegurança jurídica e perda de eficiência. Essa situação deve se tornar ainda mais incerta com a aprovação da Reforma trabalhista que é mais uma peça legislativa confusa e que, de acordo com vários especialistas, é inconstitucional. Sem nos esquecermos da Lei da Terceirização, que estimula a precarização das relações de trabalho em prol de uma incerta redução de custos. A única certeza é que as grandes empresas que atuam na área saíram vencedoras nessa disputa, especialmente aquelas que atuam junto ao poder público.
Como em qualquer momento de crise, existe uma janela de oportunidades. O Instituto Serrapilheira é o exemplo mais marcante de uma iniciativa privada para promover o desenvolvimento científico, mas, obviamente, existem várias outras. Grandes complexos hospitalares estão mantendo equipes de pesquisa cada vez mais competitivas, visando o mercado de saúde de maior complexidade. O SEBRAE e a FAPESP têm várias iniciativas estimulando a criação de startups de base tecnológica, já a EMPRAPII, Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial, surgiu para fomentar a inovação em nossa indústria em todo Brasil.
Ainda que nobres e meritórias, essas iniciativas precisam de um horizonte político de médio prazo para poderem se estabelecer. É essencial que haja um nível mínimo de coordenação para que investimentos de longo prazo possam ser feitos, para que os cientistas adaptem suas carreiras para atuarem mais diretamente em prol do desenvolvimento econômico do Brasil, para que a academia implemente políticas que premiem quem atua nessa interface e, finalmente, para que de fato exista uma clareza institucional de como a interação entre a academia e o setor produtivo possa se estabelecer.
Sobre o Autor: Ney Lemke é físico, mestre e doutor em física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é professor adjunto da Unesp de Botucatu.