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Uma lição de futuro (1 notícias)

Publicado em 13 de maio de 2017

Por Carlos Rydlewski

O cientista brasileiro é antes de tudo um maluco. Além de lidar com o famigerado minimalismo de verbas, convive com toda sorte de burocracias e limites de meios. Ainda assim, cria coisas inesperadas. Prova disso é um projeto do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco da USP. O trabalho é liderado por Mayana Zatz, com coordenação de Michel Naslavsky. Ela é uma geneticista tarimbadíssima, consagrada por feitos e prêmios acumulados aqui e no estrangeiro. Ele, um jovem pesquisador. Juntos, “endoidaram” na ideia de criar um banco de dados público com genomas de idosos, chamado 80+. Iniciada em 2010, trata-se de uma construção monumental que, a cada ano, recebe novos e promissores tijolinhos. Mas o que move essa dupla para erguer uma obra desse porte em um país no qual a pesquisa científica não é mais do que periférica? A convicção de que seus papéis no mundo, e na ciência global, podem ser mais relevantes – talvez decisivos – se atuarem no Brasil. Sorte a nossa. Mas as dificuldades... “Bem, elas são muitas, mas, no fim das contas, existem em qualquer lugar”, diz Mayana.

Época NEGÓCIOS O que é o 80+?
Michel Naslavsky
Esse é o “nome artístico” do projeto. Nosso objetivo é entender os componentes genéticos que contribuem para o envelhecimento saudável das pessoas. Em 2010, começamos a sequenciar o DNA de idosos saudáveis com mais de 80 anos. Iniciamos também uma parceria com as professoras Maria Lúcia Lebrão, que faleceu em 2016, e Yeda Duarte, da Faculdade de Saúde Pública da USP. Desde 2000, elas acompanhavam um grupo com mais de 60 anos, que vivia em São Paulo, em um trabalho chamado Saúde, Bem-estar e Envelhecimento (Sabe). No total, chegamos a uma amostra de 1,5 mil indivíduos. Em 2011, em conjunto com o professor Edson Amaro, do Hospital Albert Einstein, fizemos a ressonância magnética cerebral de 600 desses idosos.

NEGÓCIOS Como o projeto começou?
Mayana
Foi quando eu fui procurada por um casal com uma filha. Ela tinha um problema, mas ninguém descobria qual era. A garota foi submetida a um estudo do genoma nos Estados Unidos. No exame, foi descoberta uma mutação genética herdada do pai. Ela nunca havia sido descrita antes e causava um tipo de distrofia muscular, uma doença que estudo há tempos, que leva à degeneração dos músculos. O curioso é que o pai, aos 43 anos, embora tivesse a mutação, era saudável. Mas ele queria saber se, com o tempo,  poderia ter algum problema.

NEGÓCIOS Essa era a dúvida?
Mayana
Sim. Foi aí que resolvemos sequenciar o genoma dos parentes mais velhos do pai. Constatamos que eles também tinham a mutação, e eram também saudáveis. Ou seja, o pai tinha grandes chances de não ter nada no futuro. Esse é um dos aspectos relevantes do mapeamento do genoma de idosos. Podemos chegar a conclusões desse tipo: saber o quão grave uma mutação genética pode ser para uma pessoa no futuro. Além do mais, vamos desenvolver novos tratamentos, se conseguirmos entender o que protege essas pessoas dos efeitos das mutações.

NEGÓCIOS Essa é uma abordagem interessante. Em vez de só olhar para o que causa a doença, vocês estudam o que protege as pessoas desses problemas. A ideia é, se possível, replicar essa proteção?
Mayana
Exato. Publicamos uma pesquisa no fim de 2015 nessa linha. Esse tipo de distrofia muscular também existe em cachorros, mas encontramos um animal, um golden retriever chamado Ringo, que tinha a mutação e não a desenvolveu. Um dos filhos dele, o Suflair, também herdou o problema e está tendo uma sobrevida normal. Com uma pesquisa genômica, descobrimos a troca de uma letrinha no DNA, em um gene chamado Jagged1. Acreditamos que ele está protegendo os cães. Esse tipo de constatação pode ser muito promissora.

NEGÓCIOS E por que o 80+ pode fazer a diferença no cenário mundial?
Naslavsky
Entre 2012 e 2013, sequenciamos os exomas, a porção do genoma que contém as “receitas” das proteínas de mais de 600 idosos. A ideia é que, em 2017, tenhamos os genomas completos da quase totalidade das 1,5 mil pessoas do projeto. Ou seja, temos a maior amostra genômica de idosos do país e teremos, com a nova etapa, o maior conjunto de genomas de brasileiros. O importante é que essas pessoas mapeadas são representativas da nossa população, que tem uma história de miscigenação absurda, muito diferente da de outros países. Isso faz toda a diferença, porque é uma base única de dados. Vamos estudar as mutações a partir da ancestralidade das pessoas, o que pode ser muito revelador. E todos esses dados vão estar no que chamamos de ABraOM [de Abraão, o personagem bíblico], o Arquivo Brasileiro Online de Mutações, acessível gratuitamente.
Mayana A amostra expressa as características sociais e étnicas da população. Com ela, também vamos poder entender como variantes ambientais interferem na saúde das pessoas, identificando o que afinal é ou não um fator genético naquele problema. Esse material é único e pode ser muito valioso.

NEGÓCIOS Em 2003, com a conclusão do Projeto Genoma Humano, havia a expectativa de que os segredos da vida seriam revelados e isso traria grandes e breves avanços na medicina. Até aqui, eles não foram tão espetaculares. Por quê?
Mayana
Na verdade, houve avanços e muito importantes, mas as coisas seriam mesmo complicadas. A ideia do Projeto Genoma era localizar os genes que definiam todas as nossas características. Acreditava-se que teríamos uns 150 mil genes. Descobrimos 20 mil. Foi uma decepção. O tomate, por exemplo, tem 37 mil.

NEGÓCIOS Ainda bem que não temos de estudar o tomate.
Mayana
É verdade. E ainda sabemos pouco sobre os nossos genes. Temos 20 mil deles, mas apresentamos perto de 4 milhões de variantes que determinam como os genes vão funcionar.
Naslavsky O mapeamento do primeiro genoma humano custou US$ 3 bilhões [hoje, seriam quase US$ 4 bilhões]. Agora, isso custa pouco mais de US$ 1 mil. O preço caiu uma enormidade, e essa queda foi fantástica. Do ponto de vista clínico, passou a ser interessante recorrer a esse tipo de ferramenta. Foi isso que também permitiu a criação de bancos de dados como o nosso.

NEGÓCIOS Para onde aponta a medicina do futuro?
Mayana
Fala-se muito em P4, uma medicina preventiva, preditiva, personalizada e participativa. Um exemplo, ainda que parcial, dessa tendência aconteceu com a atriz Angelina Jolie. Ela descobriu uma mutação genética, tinha antecedentes na família e decidiu fazer uma cirurgia, uma dupla mastectomia, como forma de prevenção ao câncer de mama. Foi uma decisão que causou polêmica, mas mostra um pouco do que vem por aí. Também teremos drogas mais eficazes. Elas tendem a ser personalizadas. A resposta a um remédio difere muito de uma pessoa para outra. Se você for um metabolizador rápido, por exemplo, a mesma droga que é suficiente para mim pode ser insuficiente para você. Se seu metabolismo for lento, a droga boa para mim pode ser tóxica para você.

NEGÓCIOS Qual a distância que estamos dessas mudanças?
Mayana
Não é fácil definir em anos, mas não estamos longe. Aos poucos, isso já está acontecendo.

NEGÓCIOS Qual a novidade que parece mais promissora?
Mayana
Novas pesquisas em biologia molecular indicam que vamos conseguir editar genes. Para isso, já existe uma tecnologia chamada de CRISPR/Cas. Com ela, poderemos localizar um gene com problema, retirá-lo do DNA e substituí-lo por outro. Essa técnica deve ser usada em primeiro lugar em doenças hematológicas, como a hemofilia, e em cânceres também.

NEGÓCIOS A senhora sempre lutou por condições melhores para a pesquisa no Brasil. Como está a situação agora?
Mayana
Muito difícil. A universidade nunca deu dinheiro para pesquisa. Ela oferece infraestrutura e recursos humanos. Com a crise, houve um processo de demissão voluntária na USP e perdemos bons técnicos. Não temos como substituí-los.
Naslavsky Na reforma do nosso prédio, faltou dinheiro para colocar o elevador e estamos sem ele. Uma estratégia correta para um país em crise seria investir em ciência e educação. Essa seria uma maneira de obter um retorno sólido no futuro. Mas o Brasil nunca a adotou. Aqui, o primeiro corte é sempre nessas áreas.

NEGÓCIOS Qual a saída para esse eterno impasse?
Mayana
Uma maior interação entre empresas e a universidade. Não vejo outra saída. Temos de oferecer retorno para atrair a iniciativa privada.

NEGÓCIOS Que tipo de retorno?
Naslavsky
Desde a propriedade intelectual até produtos e serviços. No MIT e em Stanford, as empresas convivem lado a lado com os laboratórios de pesquisa. O cientista é pesquisador em um e sócio no outro. Isso é possível aqui. A última geração de alunos da Mayana é formada por empreendedores. Já temos projetos que só andam graças à interação com empresas. No momento, por exemplo, mantemos uma parceria com uma companhia da Califórnia. Ela estuda o envelhecimento. Olhou para o nosso banco de dados e o achou supervalioso.

NEGÓCIOS O que motiva um jovem pesquisador como você a permanecer no Brasil, onde é tão difícil fazer ciência?
Naslavsky
É o que minha família sempre me pergunta. A Mayana é muito inspiradora nesse sentido. Quero fazer o que ela fez. Tenho a oportunidade de sair do país, e vou me aprimorar no exterior, mas acredito que aqui posso fazer a diferença.
Mayana Sabe, Michel, as coisas estão até melhores no Brasil. No fim da década de 70, terminei meu pós-doutorado nos Estados Unidos. Eu poderia ficar lá, mas voltei. E trouxe uma mala cheia de reagentes para pesquisa que comprei com o meu dinheiro. Hoje, pelo menos contamos com instituições como a Fapesp. Mas é difícil. O Michel terminou o doutorado e gostaríamos de contratá-lo, mas não temos recursos para isso.

NEGÓCIOS A senhora também está pesquisando a microcefalia. O que constatou?
Mayana
Ninguém sabe qual o risco de uma mulher infectada pelo vírus zika de ter uma criança com microcefalia. Queremos saber se a doença tem um componente genético e estamos estudando casos de gêmeos. A dúvida é se existem genes de risco ou de proteção. Se conseguirmos isso, vamos poder oferecer um teste para as gestantes. A mãe poderá saber se terá uma criança com o problema, e acredito que ela tem o direito de interromper a gravidez. Estive no Nordeste inteiro e o que vi foi chocante. Que futuro, que qualidade de vida essas crianças terão? A maioria delas foi abandonada pelos pais. Nesse caso, não permitir o aborto é uma hipocrisia. Quem tem dinheiro vai para uma clínica particular. No Brasil, mais uma vez, estamos condenando a mulher pobre, ao não permitir a interrupção da gravidez.