Dispersas por álbuns de família, por acervos particulares de colecionadores e por arquivos públicos de documentação, os retratos de negros realizados durante o século 19 no Brasil resistem como testemunhas de uma história marcada pela escravidão e submissão. Em sua pesquisa de doutorado, defendida em 2006 no Instituto de Artes da Universidade de Campinas (Unicamp), Sandra Sofia Machado Koutsoukos trouxe uma significativa contribuição à leitura dessas imagens. Ela mergulhou fundo em diversos acervos para levantar e ordenar retratos de negros feitos em estúdio na segunda metade do século 19.
Após o trabalho de garimpagem, a pesquisadora partiu para a tarefa mais intrincada: a interpretação daquelas fotos, que atravessam o tempo como testemunhas mudas. Aos interessados em desvendar o que as imagens podem nos "dizer", é necessário não se contentar com o que está impresso na superfície fotossensível.
Nessa busca, Sandra Koutsoukos conseguiu levantar importantes ligações entre os retratos de negros e a situação social reinante no Brasil oitocentista. A pesquisa, orientada por Iara Lis Schiavinatto, teve tantos méritos que acabou entre as escolhidas para serem publicadas no formato de livro. Negros no Estúdio do Fotógrafo foi lançado em 2010 pela Editora da Unicamp, em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), que financiou a pesquisa. Conheça um pouco dessa história.
Descoberta do tema
O que despertou Sandra Koutsoukos para o tema de pesquisa que escolheu foi a descoberta de fotos de amas negras com os filhos de senhoras brancas. Inseridas nos álbuns de famílias aristocráticas, estas fotos destoavam justamente por introduzirem no cenário um indivíduo de pele escura. "A minha ideia era estudar as figuras infantis, brancas e negras, retratadas nas fotos antigas, quando percebi, em alguns daqueles retratos, as amas de leite e as amas-secas negras que seguravam as crianças. A indumentária daquelas amas, muitas vezes de um luxo europeizado, não condizia com a sua situação social", conta Sandra, na apresentação do livro.
Para delimitar o tema de estudo, a pesquisadora escolheu analisar apenas os retratos feitos em estúdio. O levantamento do material se deu em diversos arquivos, dentre eles a Biblioteca Nacional, o Arquivo Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro, o Museu Paulista, em São Paulo, e a Fundação Joaquim Nabuco, no Recife.
No decorrer do trabalho de pesquisa nos arquivos, bibliotecas e coleções, a maior surpresa foi quando ela encontrou dois álbuns da "Galeria dos Condenados", com fotos de presos que estavam na Casa de Correção da Corte na década de 1870, constantes na Coleção Dona Theresa Christina, da Biblioteca Nacional, no Rio. "Fiquei surpresa pela riqueza, qualidade e quantidade de fotos", relata a autora. Sandra ainda passou um semestre nos Estados Unidos, pesquisando nas bibliotecas da Universidade de Michigan. O intercâmbio permitiu que ela entrasse em contato com farta documentação sobre manuais de fotografia da época estudada.
Inspirada nos trabalhos das pesquisadoras norte-americanas
Jasmine Alinder, Deborah Willis e Carla Willians, a brasileira abriu uma nova perspectiva para o estudo dos retratos de negros no contexto nacional. "Pesquisadores nacionais importantes como Bóris Kossoy, Ana Maria Mauad, Pedro Karp Vasquez e George Ermakoff, para citar alguns, publicaram trabalhos nos quais trataram as imagens fotográficas de pessoas negras no Brasil. Como eles, eu tinha a proposta de olhar as diferentes categorias de fotos como documentos históricos. Em dado momento, me veio a ideia de olhá-las também como retratos pessoais, e encontrar indícios da contribuição dos sujeitos, junto aos fotógrafos, na construção do seu retrato", argumenta.
Embora grande parte dos retratos de negros tenham sido encomendados por outras pessoas, sobretudo no caso dos escravos, Sandra defende que os retratados também tiveram sua parcela de contribuição e conseguiram imprimir parte da personalidade e da historia deles nas fotos. Seguindo esse princípio, a autora desfia inúmeras historias particulares, relacionando-as ao contexto histórico do País.
Álbuns imaginados
Todas as fotos encontradas por Sandra, exceto as da "Galeria dos Condenados", estavam dispersas. Não foi possível achar nenhum álbum de famílias negras nos arquivos, bibliotecas e instituições pesquisados. Diante dessa ausência, a pesquisadora teve que montar para si mesma seus "álbuns imaginados". O material levantado foi dividido em três grandes "álbuns": um com retratos de pessoas negras livres ou forras e de escravos domésticos; outro com fotos que podem ser classificadas como "exóticas" ou "etnográficas"; e um terceiro com imagens de amas de leite e amas-secas.
A escravidão só foi efetivamente abolida em 1888, tendo sido o Brasil o último país do continente a adotar tal medida. Contudo, leis anteriores à Abolição já permitiam a alguns negros e mestiços nascerem livres ou serem alforriados. Os negros livres e forros precisavam do reconhecimento de uma sociedade majoritariamente branca e, para tanto, buscavam copiar a forma dela de se vestir e de se portar.
"O momento histórico exigia que, além de ser livre, a pessoa nascida livre ou a alforriada parecesse livre para os outros. Ela tinha que fazer uso de símbolos que indicassem a sua condição. Essa era uma forma de tentar se esquivar dos estigmas da escravidão. Não se trata de um caso de "aculturação", mas de uma estratégia de aceitação, ascensão e sobrevivência", explica Sandra, em seu trabalho.
Em retratos de negros livres ou forros, feitos em estúdio com os próprios recursos do retratado, a intenção era seguir a norma predominante, por isso a importância de ornamentos e sinais de nobreza, tais como uma roupa elegante, sapatos novos, anéis, cabelos penteados, barba e bigode aparados.
Um dos sinais da condição do fotografado era exatamente o fato de estar ou não usando sapatos. Os escravos geralmente eram fotografados descalços, acompanhados de seus proprietários, brancos e calçados. Essas imagens deixavam clara a diferença de situação social dos retratados e a relação de posse existente entre senhores e escravos. "A posse do retrato do escravo, sobretudo se o escravo posava junto ao senhor, era também mais uma forma de autorrepresentação da família senhorial, uma exibição de seu poder", conta Sandra.
Pose e participação
Mesmo nessa condição, os negros levados aos estúdios por senhores brancos se permitiam participar, por meio de sua pose. Uma das imagens mais marcantes recolhidas por Sandra mostra o retrato de uma senhora da família Costa Carvalho acompanhada de dois escravos que deviam carregar a liteira, uma espécie de cadeira coberta. Enquanto a pose de um dos escravos é de comportada submissão, a do outro revela um relaxamento. Recostado no braço da cadeirinha com as pernas cruzadas folgadamente, ele encara diretamente a câmera, assim como a senhora. Os pés de ambos os escravos estão descalços, indicando a condição deles.
Outra imagem surpreendente foi a de dois negros vestidos à moda da corte, que se cumprimentavam fingindo um encontro casual na rua. Eles estão completamente paramentados, mas também estão descalços. A foto foi realizada no estúdio de Christiano Júnior, no Rio de Janeiro, em 1865. Ela faz parte de uma série de fotos posadas de negros vendidas como cartão-postal a estrangeiros, negócio lucrativo nos idos do século 19.
Sandra abre debate com outros pesquisadores, como Manuela Carneiro da Cunha, que viu no trabalho de Christiano Júnior uma forma de "coisificação" do escravo, usado como modelo exótico para aumentar os ganhos do fotógrafo. "Sorte a nossa que Christiano Júnior e outros se ocuparam em fazer esses registros, usados como souvenir, como itens de coleções, muitas vezes como objetos de estudos e comparações. Mas que poderiam também ter sido usados como retratos pessoais. Hoje, são preciosos documentos históricos", afirma ela.
Ainda dentro desse contexto, Sandra conta a história de fotos de negros feitas no Rio de Janeiro na década de 1860 por Augusto Stahl, por encomenda do naturalista suíço Louis Agassiz, que trabalhava nos Estados Unidos. As imagens seriam usadas para tentar legitimar pseudoteorias que pregavam a superioridade da "raça" branca sobre a negra, uma arma na justificação do modelo escravagista.
Amas e presos
Um dos pontos altos do trabalho de Sandra Koutsoukos está na origem de seu projeto de pesquisa: as fotos de amas de leite e amas-secas. A autora fez um extenso levantamento sobre a condição social dessas mulheres e chegou a descobrir histórias pessoais de algumas delas.
Nos retratos, as amas são vestidas de maneira nobre e, na maioria dos casos, posam ao lado das crianças brancas das quais tomam conta, explorando um laço de afeto quase maternal. Embora partilhe da intimidade da família senhorial, a criada negra entra no álbum da família branca, na maioria dos casos, como mais um episódio na vida da criança.
O terceiro capítulo do livro é dedicado à analise da "Galeria dos Condenados", que consta de dois álbuns produzidos na Casa de Correção da Corte, que ainda não haviam sido objeto de estudo detalhado. Analisando os relatórios e pareceres emitidos pelo administrador do presídio, Sandra descobriu que o fotógrafo havia sido escolhido entre os próprios detentos, talvez como uma forma de economizar.
Depois de um óbvio início desastroso, com enorme perda de material, o desconhecido fotógrafo da Casa de Correção foi aprendendo a técnica e chegou a resultados surpreendentes. Esses retratos de alta qualidade foram tirados antes da criação de uma padronização para fotos de presos, desenvolvida pelo francês Alphonse Bertillon no decorrer das últimas décadas do século 19.
Diversamente do que se poderia imaginar, os presos não parecem contrariados ou forçados a posar. Muitos fizeram a pose com tranquilidade e conseguiram transmitir dignidade aos retratos pessoais. Para Sandra, se não constassem em fichas de detentos, esses retratos poderiam facilmente passar por uma encomenda pessoal.
"O que mais impressiona é que, apesar do uso e da finalidade que tiveram as fotos do álbum, todos os condenados se encontram distintos uns dos outros. Apesar da construção e da ordenação da foto de preso, cada um dos detentos também conseguiu se mostrar, posar como sujeito do retrato, com dignidade, como acontecia nos estúdios particulares de fotografia", analisa.
A pesquisadora atualmente realiza pós-doutorado na Unicamp. Seu tema de estudo são fotos de freaks, termo em inglês que se refere a pessoas consideradas bizarras, por terem nascido com algum defeito físico ou por terem algum tipo de doença deformadora. Sandra encontra-se atualmente em Palo Alto, nos Estados Unidos, onde realiza um semestre de pesquisa na Universidade de Stanford.
Pedaço de história
Envolvidos em uma complexa teia de relações sociais e simbólicas, os retratos de negros realizados durante o século 19 oferecem ainda uma farta fonte para novas pesquisas. É o que aposta a autora de Negros no Estúdio do Fotógrafo.
"Se hoje, infelizmente, esses retratos se encontram espalhados por diferentes arquivos, bibliotecas e nas praticamente inacessíveis coleções particulares, além de não existirem em tão grande número quanto os retratos da parcela branca da sociedade, ainda sim, eles existem em quantidade suficiente para que deles não nos esqueçamos, para que, com eles, e para eles, ou por causa deles, possamos tentar desvendar aquele pedaço de nossa história", conclui Sandra Koutsoukos, no epílogo da pesquisa.