Notícia

A Tribuna (Santos, SP)

UMA BRASILEIRA DE 11.500 ANOS

Publicado em 10 dezembro 2001

Ela possuía uma face estreita e curta, lábios grossos, queixo proeminente e um nariz largo. Vivia numa região formada, provavelmente, por vegetação típica de cerrado, com dezenas de lagoas e centenas de cavernas. Para os nossos padrões, ela morreu jovem, com cerca de 25 anos. Não deveria ter muito mais do que um metro e meio de altura, e se alimentava de raízes, folhas, frutas e carne. Ela é Luzia, uma jovem que viveu há aproximadamente 11.500 anos, e cuja descoberta simplesmente revolucionou tudo o que se sabia sobre os primeiros seres humanos a ocuparem a América. Luzia é uma história tipicamente brasileira. Pertence àquele Brasil que dá certo, apesar de tudo e de todos. É também um pedacinho da história de Walter Neves, um brasileiro atrás de um sonho. E o sonho de Neves, o bioarqueólogo que estudou o crânio de Luzia, descoberto há 26 anos, é hoje uma realidade, composta de ousadia, coragem, trabalho duro e orgulho. Orgulho de enfrentar e vencer obstáculos de quem vive num país onde fazer Ciência é, acima de tudo, um ato de coragem e abnegação. Essa é a história que vamos contar para vocês. A história dos primeiros habitantes da América e do homem que ousou desenterrar esse passado. PACIENTEMENTE Estamos em Lagoa Santa, uma região do cerrado mineiro, que fica a cerca de 40 km da cidade de Belo Horizonte. É um local semi-árido, com centenas de cavernas e dezenas de lagoas. É também um dos maiores e mais importantes conjuntos de sítios arqueológicos da América. Nesse local, numa manhã de junho, há 26 anos, Annette Emperaire e outros pesquisadores escavavam pacientemente o terreno, cujas riquezas haviam despertado o interesse de um dinamarquês chamado Peter Lund, que há mais de 170 anos descobriu a importância de Lagoa Santa. Num determinado momento das escavações começaram a surgir vestígios de um esqueleto humano, incluindo um crânio quase completo. O crânio que mais tarde Neves batizaria de Luzia. Seu estudo e conclusões o levariam ao centro de uma grande controvérsia, colocando-o em rota direta de colisão com diversos cientistas, muitos dos quais hoje reconhecem o mérito desse brasileiro. Neves percebeu que o crânio de Luzia tinha traços similares aos dos aborígenes australianos e de negros africanos. E mais, ao datá-lo,descobriu que Luzia teria vivido entre 11.000 e 11.500 anos. ESTREITO DE BERING Até então, meados da década de 80, era fato para a Ciência que os primeiros homens entraram no continente americano por volta de 11.500 anos no passado, vindos da Ásia pelo estreito de Bering (veja mapa) e alcançando a América do Norte. Essa tese tinha como fundamento o sítio arqueológico de Clovis, encontrado por volta de 1930 no Novo México (EUA). Esse local, onde nenhum osso foi encontrado, somente lascas de pedras e ferramentas rudimentares, passou então a ser taxado como a mais antiga ocupação humana da América. E era uma verdadeira heresia discordar dessa idéia, que afirmava, ainda, que esses primeiros americanos tinham traços orientais. Ora, se Luzia viveu no Brasil há 11.500 anos, seus antecessores teriam que ter atravessado o estreito de Bering milhares de anos antes, descendo, posteriormente, rumo ao sul da América até chegarem a região de Lagoa Santa. Começava uma das maiores polêmicas da arqueologia moderna. Neves enfrentou uma enxurrada de críticas por parte dos norte-americanos, algumas bem ácidas, maldosas até. Mas Neves prosperou. Seu trabalho não iria ser ridicularizado. Muito pelo contrário. "Não abro mão de meus sonhos", disse ele ao Ciência, em sua sala no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Sua tese é hoje uma quase unanimidade. Ela afirma que os primeiros americanos realmente atravessaram o estreito de Bering, porém, há mais de 12 mil anos, quando o mar da região estava congelado por uma Era Glacial. E mais: esses primeiros aventureiros não tinham traços orientais (como afirmavam os cientistas norte-americanos), e sim de negros africanos e aborígenes australianos. Os orientais, segundo Neves, cujos traços foram herdados por diversas populações de índios americanos, vieram depois, numa segunda leva migratória. Hoje, enquanto a fama de Luzia corre mundo, Neves continua a sua luta, descobrindo novos e fascinantes detalhes que fizeram dessa brasileira, a mais antiga evidência de um ser humano na América.