Ao comentar com ironia a drástica ruptura estabelecida por Descartes (1596-1650) entre o corpo (a "coisa extensa") e a mente (a "coisa pensante"), Shaftesbury (1671-1713) escreveu que o filósofo francês "não contemplou o homem como um verdadeiro homem", mas como "um relógio ou máquina comum". Essa breve afirmação bem poderia ser considerada o resumo de todo um itinerário filosófico.
De fato, os escritos de Shaftesbury definem o roteiro de um pensamento moderno em tudo diferente do mecanicismo cartesiano. Não foi por acaso que Leibniz (1646-1716) reconheceu o quanto as ideias shaftesburianas haviam antecipado suas próprias concepções, formuladas independentemente.
Nota dissonante na sinfonia da modernidade, Shaftesbury ficou, em certa medida, à margem do leito principal por onde fluiu o pensamento filosófico. E, a partir do século XIX, caiu em relativo esquecimento.
Recentemente, como mais uma expressão do pluralismo que caracteriza a cultura contemporânea, seus escritos voltaram a ser examinados pelos estudiosos da história da filosofia.
O livro Shaftesbury e a ideia de formação de um caráter moderno, de Luís Fernandes dos Santos Nascimento, professor do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da Universidade Federal de São Carlos, insere-se nesse oportuno processo de releitura.
Apresentado originalmente como tese de doutoramento no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, em 2006, e publicado agora com apoio da FAPESP, o texto de Nascimento tem, antes de tudo, o mérito de apresentar aos leitores brasileiros esse pensador que, por circunstâncias que não fizeram justiça ao valor de sua obra, tornou-se quase desconhecido fora do ambiente intelectual britânico.
"Apesar de pouco conhecido hoje, Shaftesbury foi bastante lido em sua época. Diderot o traduziu para o francês. E ele manteve um intercâmbio à distância com Leibniz, intermediado pelo tradutor francês da obra de Locke. Mais tarde, na Alemanha, ecos de suas ideias fizeram-se ouvir nos escritos de Kant, Goethe e Hegel, entre outros", disse Nascimento.
Anthony Ashley Cooper, o terceiro conde de Shaftesbury, teve uma vida breve, mesmo para os padrões da época: viveu apenas 42 anos, vitimado precocemente por uma doença respiratória que o acometeu por anos a fio. Educado por John Locke (1632-1704), que era secretário de seu avô, sentia grande afeto por esse tutor ilustre. Mas isso não impediu que se tornasse um crítico radical do empirismo de Locke, tanto quanto do mecanicismo de Descartes e do egoísmo de Hobbes (1588-1679).
Em oposição a esse trio, que definiu a corrente hegemônica da modernidade, Shaftesbury retomou algumas linhas mestras do pensamento antigo, concebendo todas as coisas como partes de uma grande e harmoniosa ordem cósmica. Para ele, a filosofia não era uma árida atividade intelectual, de caráter especulativo, mas uma disciplina prática, destinada a tornar as pessoas mais virtuosas, sociáveis e felizes.
"Shaftesbury foi um leitor assíduo dos antigos, especialmente dos três grandes discípulos de Sócrates (Platão, Xenofonte e Aristófanes) e dos estoicos (Epiteto e Marco Aurélio). Mas estava perfeitamente consciente de viver em outra época e chamava a si mesmo de moderno", disse Nascimento.
Avesso à exposição sistemática, que, a seu ver, limitava a liberdade de pensamento, Shaftesbury considerava o diálogo a melhor forma de apresentar as ideias filosóficas.
"Porém, sabia da dificuldade de escrever de forma dialógica no mundo moderno, caracterizado pela clivagem entre a discussão erudita e a conversação trivial do dia a dia. Por isso, empenhou-se ao máximo na elaboração estilística, aproximando o texto filosófico da narrativa literária", disse Nascimento.
Paradoxalmente, a estrutura dialogal, em contraste com o viés totalitário do discurso moderno hegemônico, foi um dos fatores que levaram Shaftesbury ao relativo ostracismo intelectual. É um auspicioso sinal dos tempos que possamos voltar a nos interessar por esse tipo de leitura. Shaftesbury e a ideia de formação de um caráter moderno
Autor: Luís Fernandes dos Santos Nascimento
Lançamento: 2012
Preço: R$ 40
Páginas: 288
Mais informações: http://alamedaeditorial.webstorelw.com.br/products/shaftesbury-e-a-ideia-de-formacao-de-um-carater-moderno
Fonte: Agência FAPESP