Notícia

Jornal do Brasil

Um novo ensino técnico (1 notícias)

Publicado em 28 de setembro de 1996

Por ROGÉRIO VALLE
Nestes tempos em que as sociedades se dizem tão mais modernas quanto mais se virem submetidas ao determinismo econômico, a única coisa que se indaga das iniciativas de educação tecnológica — formação profissional, ensino técnico ou terceiro grau — é se "correspondem às necessidades do mercado de trabalho", ou se podem "contribuir para a redução do desemprego". Questões que estão longe de serem irrelevantes. Mas há algo mais, ou pelo menos deveria haver. A cultura de um país não está apenas na vida de seus símbolos, de seus ritos, de suas crenças: objetos técnicos não são menos culturais do que uma canção ou escultura. Vá lá que aquilo que nos chega pela produção em massa não tenha o encanto de 'ser único e inigualável, muito pelo contrário, vá lá ainda que a concentração da criatividade no projetista e conseqüente espoliação intelectual do operário fordista não correspondam bem à nossa melhor noção de criação cultural. Mesmo assim, não é preciso ser designer ou californiano para reconhecer que os objetos técnicos à nossa volta se transformaram — pobres de nós — em foco do desejo e da admiração, quando não do culto antes reservado ao religioso. Vivemos todos um sentimento ambivalente de sedução e horror diante da forma consumista como somos levados a lidar com esses objetos técnicos mas, por outro lado, simplesmente maldizer nossa civilização também já não surpreende nem convence. Não basta mais a Escola de Frankfurt, pelo menos sem algumas atualizações. Além disso, a fabricação em massa e seu fordismo já vão sendo substituídos pela produção flexível e pela variedade na oferta, atendendo às exigências de consumidores cada vez mais interessados em sua subjetividade e, notável coincidência histórica, cada vez mais bajulados devido à saturação dos principais mercados. Mais ainda: por objeto técnico, não se deve entender apenas coisas materiais, mas igualmente as soluções que encontramos, ou que nos propõem, ou até que nos impõem, para organizar nossa existência. Nada mais ridículo do que nossas elites que se sentem cidadãs, do Primeiro Mundo porque possuem um Mercedes, mas que são incapazes de importar também o respeito europeu aos sinais de trânsito: modernos na posse, bárbaros na conduta. A técnica está tanto nos artefatos quanto nas normas e códigos, deles, indissociáveis. Eis então o ponto: se a técnica é parte da cultura, a educação de um povo — a transmissão e difusão de sua cultura — não pode prescindir dos aspectos tecnológicos. Tecnologia que está tanto na fabricação quanto no uso dos"artefatos e normas. Usamos com grande confiança o fogão a gás, tentamos aprender a usar o microondas, desaprendemos a usar o fogão a lenha: a aprendizagem para o uso é, geralmente, fruto de uma educação espontânea, alimentada pela experiência (dos amigos, geralmente) e por um ou outro manual mal redigido, que as mulheres repudiam ainda mais que os homens. Quanto à aprendizagem para o trabalho, durante décadas orgulhamo-nos de tê-la reduzido a um adestramento do corpo dos operários e a um entulhamento da cabeça dos estudantes. Nada disto funciona mais. Pior: nada disso faz mais sentido. Hoje, a aprendizagem tecnológica para a criação, para a produção, para o uso e para o reaproveitamento do que foi usado precisa ser parte de uma educação planejada, consciente. O tal movimento pela qualidade total é um modo — freqüentemente insuficiente e doutrinador— de fazer esta mudança de Cultura Técnica. E é aí que o desafio nos é lançado. Durante anos, muitos educadores brasileiros excomungaram a formação profissional como uma mera preparação para a exploração e colocaram' toda a ênfase na educação básica. Hoje parece clara que opor as duas coisas é tolice; temos que avançar em ambas, e rápido. Na cidade virtual, muito mais do que na sociedade industrial, quem não tiver Cultura Técnica suficiente para ser consumidor e produtor terá dificuldades para exercer verdadeiramente sua cidadania. A coisa é tão séria que, em pleno retraimento do Estado por ordem dos restauradores da ortodoxia liberal, o Ministério do Trabalho de FHC se mete numa atividade até então chasse gardée do setor privado: a formação profissional. Melhor assim, que ideologia é algo ainda mais nocivo quando se entra na esfera da cultura. Educação humanística e tecnológica, básica ou avançada, devem ser promovidas não apenas porque a razão econômica que antes "a vetava passou a exigi-las, mas porque constroem nossa cultura. Isso é o bastante. Rogério Valle é professor do Programa de Engenharia de Produção da Coppe/UFRJ e coordena a unidade de Economia da Escola de Políticas Públicas e Governo/ UFRJ