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Jornal da USP

Um jeito novo de conhecer cavernas (1 notícias)

Publicado em 13 de dezembro de 1998

Se com um compasso e cinco ou seis retas Toquinho faz um castelo, com uma trena, uma fita e uma caderneta de campo um geólogo pode fazer o levantamento de uma caverna. Depois, com ajuda de um programa de computador, é fácil criar modelos tridimensionais do sistema subterrâneo e gerar mapas para uso de pesquisadores e até de turistas. É esse programa que o pesquisador José Antonio Ferrari, do Instituto Geológico da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, criou e no dia 27 apresentou no Departamento de Geologia Geral do Instituto de Geociências da USP. Ferrari passou um ano no Laboratório Subterrâneo do CNRS - destacado centro de pesquisas da França - trabalhando no projeto com ajuda da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). O software não está totalmente acabado, mas como se trata de um sistema modular será complementado com novas partes e colocado à disposição da comunidade científica e de quem quiser usá-lo para quaisquer finalidades. Romeno saiu na frente A primeira aplicação do programa foi feita por um estudante do Instituto de Espeleologia da Romênia, Horoi Diorelly, amigo de Ferrari, que usou a nova tecnologia para mapear uma caverna de cem quilômetros de extensão na França. Na USP, o programa foi bem recebido por pesquisadores do Instituto de Geociências e pela professora Eleonora Trajano, do Instituto de Biociências, que desde a década de 80 pesquisa a vida em cavernas. "Qualquer metodologia que facilite a confecção de mapas de cavernas é boa, porque no meu estudo os mapas são uma das bases. Não só os mapas em si como toda a base geológica, a localização das cavernas, o estudo dos sistemas, da conexão entre esses sistemas são dados que utilizo. Mas o mapeamento, as atividades de topografia não são a nossa atividade principal. Isso a gente deixa para geólogos ou espeleólogos", disse Eleonora. O programa de Ferrari pressupõe um levantamento minucioso de campo, para definir milimetricamente o relevo e situar tudo que há dentro da caverna - colônias de morcegos, peixes, crustáceos, pássaros etc.. Esses dados são em seguida jogados no sistema de computador e aparecem na tela em forma de mapas. O usuário consegue assim uma visão de conjunto da caverna. As informações armazenadas podem contar um pouco da história não só do que há debaixo da terra, mas também na superfície, pois "uma caverna é o registro menos borrado da evolução do relevo", diz o pesquisador do Instituto Geológico. O território subterrâneo é menos sujeito à erosão, preservando os traços históricos. Também para Eleonora Trajano, as cavernas representam uma simplificação do ambiente externo. Internamente, a temperatura varia pouco, não existe a alternância escuro-claro, o alimento é escasso, há poucas espécies interagindo e a adaptação às condições de escuridão leva milhares e até milhões de anos. Há o caso de um crustáceo minúsculo (Poticoara brasiliensis) encontrado no Mato Grosso do Sul cujo único parente conhecido está na África do Sul e na Austrália. Tudo indica tratar-se de um testemunho vivo do período da História anterior ao desmembramento dos atuais continentes. Entre as cavernas de maior interesse histórico Ferrari cita a de Lascaux, na França, rica em pinturas rupestres pré-históricas. O cuidado na preservação desse espaço subterrâneo é tanto que na caverna verdadeira turista não entra. Uma réplica foi escavada na pedra e só ela é aberta ao público. Também no Brasil existem cavernas, ainda pouco exploradas, que guardam pinturas rupestres de interesse histórico, principalmente na Bahia. É certo que, no Exterior, as cavernas representam fonte de renda para as populações residentes nas imediações, que recebem parte dos dólares gastos pelos turistas. "Aqui falta uma ação política do governo", afirma Ferrari, sem deixar de alertar para a necessidade de uma fiscalização rigorosa, a fim de se evitar danos àquilo que a natureza levou milhões de anos para construir. No Primeiro Mundo, antes de se liberar uma caverna à visitação pública monitorada, fazem-se estudos de impacto ambiental, pois qualquer descuido pode ter conseqüências irreparáveis. Um grupo numeroso de visitantes pode alterar a temperatura ambiente, um escorregão ou uma cabeçada podem destruir partes das estalactites e estalacmites, aqueles fios minerais que pendem do teto ou se levantam do chão das cavernas. Embora não tenha vínculo maior com a Universidade de São Paulo, Ferrari integra um grupo do Instituto de Geociências que faz trabalhos informais na área de sistemas cársticos e dá orientação a alunos. O seu programa de computador está colocado na Internet, podendo ser utilizado sem restrições (ferrari@igeologico.sp.gov.br). Estranhos moradores dos subterrâneos As cavernas escondem vida e atividades que só os pesquisadores são capazes de avaliar. No Instituto de Biociências está uma das especialistas no assunto. Eleonora Trajano se interessou pelo estudo da vida nas cavernas quando era aluna de Biologia. Hoje é uma das mais respeitadas pesquisadoras da área. Suas pesquisas se desenvolvem em vários níveis, começando pelo levantamento dos organismos e das espécies presentes nas cavernas e que vão constituir a base dos estudos seguintes. Segundo ela, é fundamental conhecer primeiro a composição das espécies, levantar as mais abundantes e as mais importantes do ponto de vista do impacto nas comunidades e, entre essas, diferenciar as que só podem habitar ambientes subterrâneos daquelas que também podem viver fora. As restritas às cavernas passaram por um processo de isolamento, provavelmente em conseqüência de um fenômeno geológico, de uma mudança climática radical, por exemplo. As populações assim isoladas durante milhões de anos foram se modificando biologicamente, a ponto de não poderem mais viver do lado de fora da caverna, mesmo que as condições externas voltem a ser favoráveis. As mudanças podem ser tão profundas que o animal perde alguns órgãos, como os olhos, e a pigmentação escura do corpo por causa da falta de luz na caverna. Podem ainda sofrer modificações de comportamento. Por exemplo, quando não enfrentam mais predadores - e é o caso dos peixes - tornam-se meio "bobos" e muito vulneráveis a outros tipos de ataques - dos turistas, freqüentemente. A essas espécies modificadas, incapazes de viver fora das cavernas, os biólogos chamam de troglóbios. Os que vivem tanto em cavernas quanto fora delas são os troglófilos (amigos da caverna). As espécies modificadas são minoria nas cavernas, mas suficientemente numerosas para justificar o esforço de estudá-las e preservá-las. Eleonora avisa que, se alguém pensa que vai entrar na caverna e logo topar com peixes ou moluscos cegos, engana-se. A maioria dos habitantes compõe-se de animais que entram e saem. Dependendo da caverna, pode haver de cinco a seis espécies de troglóbios, ou nenhuma. Tudo depende do ambiente externo, do clima, das condições geológicas. Com o tempo as espécies simplesmente troglófilas poderão se transformar em troglóbias, mas apenas depois de milhares de anos de evolução e sob certas condições. Segundo Eleonora, o estudo dos seres viventes em cavernas deve levar em conta duas etapas. Primeiro, a da colonização, ou da entrada na caverna de qualquer tipo de animal que já tenha condições de sobreviver em ambiente subterrâneo. Não há gafanhotos em cavernas porque eles dependem de vegetação verde para sobreviver, nem peixes que comam algas, pois não há algas. Espécies com hábitos noturnos têm boas condições de colonizar cavernas, porque já tem recursos sensoriais próprios para sobreviver no escuro. Portanto, há indivíduos que nunca vão sair das cavernas, outros que nunca vão entrar nelas e, ainda, os que podem entrar e sair à vontade. Os morcegos são bom exemplo da última espécie. O segundo passo, que não acontece necessariamente, é estudar os animais que, não podendo mais sair do ambiente subterrâneo, sobrevivem nele, se reproduzem e se modificam morfologicamente. O ritmo biológico nas cavernas Mas, qual é o interesse em estudar os seres das cavernas? Eleonora cita pelo menos um bom motivo. Na cronobiologia estudam-se os relógios biológicos. Todos os organismos têm o seu, que é endógeno e independe do claro-escuro do dia e da noite. Se se deixar uma pessoa trancada sempre no escuro e não permitir que tenha contato com o dia, à noite ela continua tendo um ritmo que não é exatamente igual ao das 24 horas do dia, mas próximo disso. Por que então existe o ritmo endógeno e o que o seleciona? Eleonora responde: "Se eu pegar uma espécie, um troglóbio que já evoluiu na ausência do dia e da noite por gerações e gerações, ele vai manter o ritmo; mas qual foi o fator que selecionou esse ritmo de 24 horas? É algo interno ou uma adaptação ao dia-noite? Os troglóbios respondem a isso, pois há casos de muitos que já perderam o ritmo de 24 horas. Sabe-se, portanto, que o ritmo biológico de 24 horas é uma adaptação do animal à atividade diurna e noturna. Os homens são diurnos, outros animais são noturnos. Não existe uma hipótese alternativa ao ritmo de 24 horas, de uma suposta necessidade fisiológica de manter uma ordem interna. Os animais de caverna ajudam, assim, a responder a uma série de perguntas da biologia". Uma das questões mais complexas levantadas pelos estudiosos das cavernas diz respeito à datação das espécies modificadas. Primeiro, diz Eleonora, não adianta muito tentar fazer a datação da caverna, porque a caverna é transitória; os animais podem ter vivido no meio subterrâneo, em outra caverna, muito tempo atrás. Não há como relacionar a idade da caverna com a idade do animal que a habita. No Brasil só são possíveis algumas inferências. "Posso comparar espécies próximas e dizer qual é a mais antiga. As mais antigas estão totalmente modificadas. Existem os troglóbios que se isolaram há menos tempo e que apresentam certa variabilidade. Nas mais antigas há, por exemplo, redução total dos olhos; nas mais recentes, a mudança é parcial; em algumas, a pigmentação desapareceu por completo; em outras, parcialmente." Contudo, acrescenta a pesquisadora, pode haver outros fatores que influenciem as mudanças, acelerando-as ou reduzindo-as. Para conhecer a idade absoluta seria necessário conhecer primeiro e muito bem a filogenia dos animais, as relações de parentesco. De qualquer modo, avalia-se que essas espécies devam ter milhões de anos; na média, entre 500 mil e 2 milhões de anos. Existem estimativas de que certas espécies de troglóbios surgiram há dez mil anos, mas isso é contestado, é muito pouco tempo. A Poticoara brasiliensis, do Mato Grosso do Sul, é uma espécie de grupo maior de crustáceos que ocorre na África do Sul e na Austrália. Tem mais de 70 milhões de anos, idade da separação dos continentes africano, asiático e americano. Além disso, a espécie ocorre em localidades do Mato Grosso do Sul separadas pelo rio Paraguai. Prova de que é muito estável, pois não poderia atravessar o rio. Deve ter aparecido antes que o rio Paraguai tivesse o curso atual. O peixe troglóbio é nosso Na Europa, os estudos da vida nas cavernas começaram no século 18 e continuaram intensivamente. No Brasil são mais recentes e, de forma mais organizada, só na década de 80. Mesmo assim, há um conhecimento bastante razoável do ponto de vista faunístico nas principais regiões cársticas brasileiras, principalmente em termos de animais macroinvertebrados. Eleonora acrescenta que não é só a fauna de cavernas que no Brasil é pouco investigada; a fauna em geral ainda é pouco conhecida. Em algumas regiões, a das cavernas merece atenção até maior. No País existem estudos sobre certos peixes mais avançados que no Exterior. Para começar, na Europa não há peixes troglóbios e os pesquisadores procuram outros continentes. O maior peixe troglóbio do Brasil é um bagre cego, ou mandi-chorão, que a professora Eleonora estuda exaustivamente. A pesquisadora do IB, que tem documentado a vida em cavernas de quase todo o País - do Vale do Ribeira em São Paulo, à Bahia, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Minas Gerais - considera que o Brasil tem uma legislação avançada que deveria garantir a integridade dessa fauna, mas não a garante por falta de fiscalização adequada. Na Chapada Diamantina, por exemplo, o turismo sem controle põe a perder muito tesouro subterrâneo.