« Começou. » A mensagem de texto enviada há um ano a Mikola Chmatkov, 28, ainda desestabiliza o ucraniano que havia viajado ao Brasil para fugir do inverno rigoroso de seu país e curtir o Carnaval no Rio.
O alerta seco na madrugada de 24 de fevereiro de 2022 veio de um amigo que o surpreendeu com a notícia do início do ataques russos à Ucrânia. Chmatkov entrou em pânico e não conseguiu dormir naquela noite.
« Foram as horas mais assustadoras da minha vida. Percebi que o meu mundo nunca mais seria o mesmo », diz o ucraniano, que passou horas ligado no noticiário e no celular buscando falar com parentes e amigos.
Foi a segunda vez que os efeitos de uma guerra o atingiram. Nascido em um vilarejo no leste ucraniano, Chmatkov se mudou para a capital, Kiev, e também sofreu à distância quando as forças ucranianas e separatistas pró-Rússia iniciaram o conflito na região do Donbass, onde mora parte de sua família. Os confrontos foram deflagrados em 2014 após a anexação da Crimeia por Moscou.
Mas no ano passado, sozinho num país que pouco conhecia, conta que a agonia foi muito maior. « Estava a milhares de quilômetros de casa e via as pessoas celebrando com músicas e danças que eu não entendia. De repente, tudo entristeceu, e eu não conseguia mais ficar em lugares que antes me faziam bem. »
O que era para ser uma viagem de poucos dias se tornou uma saga sem data para acabar. Atendendo aos apelos da família, permaneceu no Brasil. Embora a decisão tenha sido pela preservação da própria vida, ele agora convive com o que descreve como sentimento de vergonha. « Minha família tem de lidar com a guerra enquanto estou no Brasil em segurança. »
Ele hoje tenta se adaptar ao cotidiano brasileiro e encontra dificuldades principalmente em relação à língua. Faz aulas de português três vezes por semana, mas lamenta o avanço lento do aprendizado.
Chmatkov tem status de refugiado, mas não recebe ajuda financeira do governo brasileiro. Ele sobrevive com o que ganha por trabalhos remotos de marketing digital para empresas de seu país. Com poucos amigos no Brasil, ainda tem dificuldade de falar com familiares na Ucrânia. « Minha irmã está em Berdiansk, cidade ocupada pelos russos e com comunicação restrita. Cortaram a internet do celular na região, então, a gente só pode conversar quando ela está em casa no computador. »
Para afastar a solidão, busca entender a cultura brasileira. Mais recentemente, descobriu Clarice Lispector (1920-1977), escritora que nasceu na Ucrânia, mas que cresceu e desenvolveu suas obras no Brasil.
Desde o início da guerra, aproximadamente 8 milhões de ucranianos fugiram do conflito, segundo dados do Acnur, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados. A Polônia é o destino mais procurado, com 1,5 milhão de refugiados, seguida pela Alemanha (1 milhão), República Tcheca (490 mil), Itália (169 mil), Espanha (167 mil) e Reino Unido (162 mil).
Poucos ucranianos buscaram asilo no Brasil. De acordo com o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública responsável por deliberar os pedidos de refúgio no país, apenas 24 solicitações foram protocoladas desde o início da guerra. Já o Itamaraty informou que 187 vistos humanitários foram concedidos.
Conhecida como a Ucrânia brasileira, Prudentópolis se mobilizou para acolher refugiados da guerra. No município paranaense, 75% da população de 52 mil habitantes têm ascendência no país do Leste Europeu.
Só a igreja do missionário ucraniano Vitalii Archulik, que mora na cidade há cinco anos, recebeu 27 compatriotas. O grupo formado na maioria por mulheres e crianças foi instalado em condomínios do município e durante todo esse período se mantém com auxílio das igrejas. A maior parte do grupo, porém, já planeja voltar à Ucrânia. Alguns cogitam procurar abrigo em nações vizinhas ao país invadido.
Archulik diz que a falta de assistência do Estado brasileiro e de perspectivas econômicas desestimulam a permanência no país. Apenas cinco pessoas do grupo conseguiram emprego, nas áreas de limpeza, corte de carnes e comércio. « O salário mínimo no Brasil é menor que R$ 1.500, insuficiente para sustentar uma família. Na Polônia, por exemplo, esse valor é pelo menos três vezes maior », afirma o missionário.
Projetando o retorno à Europa, a maior parte do grupo já interrompeu as aulas de português, e as crianças voltaram a ser matriculadas em instituições ucranianas que oferecem aulas online.
O Brasil também foi porta de entrada para o russo Alexandr Cherstobitov, que temia represália do governo de Vladimir Putin.
Pesquisador independente e ex-professor universitário de ciência política em São Petersburgo, ele mantém um canal no Telegram com conteúdos políticos muitas vezes críticos à invasão russa e já assinou petições contra a guerra. Cherstobitov escolheu morar em São Paulo para dar aulas sobre o Parlamento russo como professor convidado pelo programa Pesquisadores em Risco, da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Mais de 19,5 mil pessoas já foram detidas na Rússia em protestos contra a guerra e a mobilização de reservistas ordenada por Putin, segundo o grupo independente de monitoramento de protestos OVD-Info.
« Ao menos 20 amigos e colegas saíram da Rússia ainda nos primeiros meses. Outros deixaram o país quando Putin anunciou a mobilização », diz ele. « Muitas pessoas não mostram o que pensam sobre a guerra e não respondem a pesquisas com medo de que as informações sejam usadas contra elas. »
(Renan Marra/ Folhapress)