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Ucranianos no Brasil sofrem com adaptação e querem voltar à Europa após 1 ano de guerra (21 notícias)

Publicado em 01 de março de 2023

"Começou". A mensagem de texto enviada há um ano a Mikola Chmatkov, 28, ainda desestabiliza o ucraniano que havia viajado ao Brasil para fugir do inverno rigoroso de seu país e curtir o Carnaval no Rio de Janeiro.

O alerta seco e direto na madrugada de 24 de fevereiro de 2022 foi enviado por um amigo que o surpreendeu com a notícia do início dos ataques russos contra a Ucrânia. Chmatkov entrou em pânico e não conseguiu dormir naquela noite.

"Foram as horas mais assustadoras e chocantes da minha vida. Percebi que o meu mundo nunca mais seria o mesmo", afirma o ucraniano, que passou horas ligado no noticiário e grudado no celular buscando comunicação com familiares e amigos.

Foi a segunda vez que os efeitos de uma guerra o atingiram. Nascido em um vilarejo no leste ucraniano, Chmatkov se mudou para a capital, Kiev, e também sofreu à distância quando as forças ucranianas e separatistas pró-Rússia iniciaram o conflito na região do Donbass, onde mora parte de sua família. Os confrontos foram deflagrados em 2014 após a anexação da Crimeia por Moscou.

Mas, no ano passado, sozinho em um país que pouco conhecia, Chmatkov conta que sua agonia foi muito maior. "Eu estava a milhares de quilômetros de casa e via as pessoas nas ruas comemorando o Carnaval com música e passos de danças que eu não entendia. De repente, tudo entristeceu e eu não conseguia mais ficar em lugares que antes me faziam bem", diz.

O que era para ser uma viagem de poucos dias se tornou uma saga sem data para acabar. Atendendo aos apelos da família, ele permaneceu no Brasil. Embora a decisão tenha sido pela preservação da própria vida, ele agora convive com o que descreve como um sentimento de vergonha. "Minha família tem de lidar com a guerra enquanto eu estou no Brasil em segurança".

Ele vem tentando se adaptar ao cotidiano brasileiro e encontra dificuldades principalmente em relação ao idioma. O ucraniano tem aulas de português três vezes por semana, mas lamenta que o aprendizado avança a passos lentos.

Chmatkov tem status de refugiado, mas não recebe ajuda financeira do governo brasileiro. Ele sobrevive com o que ganha por trabalhos remotos de marketing digital para empresas de seu país. Com poucos amigos no Brasil, ainda tem dificuldade de falar com familiares na Ucrânia. "Minha irmã está em Berdiansk, cidade ocupada pelos russos e com comunicação restrita. Cortaram a internet do celular na região, então, a gente só pode conversar quando ela está em casa no computador".

Para afastar a solidão, ele caminha pela cidade buscando entender a cultura brasileira. Mais recentemente, descobriu Clarice Lispector (1920-1977), escritora que nasceu na Ucrânia, mas que cresceu e desenvolveu suas obras no Brasil.

Desde o início da guerra, aproximadamente 8 milhões de ucranianos fugiram do conflito, segundo dados do Acnur, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados A Polônia é o destino mais procurado, com 1,5 milhão de refugiados, seguida pela Alemanha (1 milhão), República Tcheca (490 mil), Itália (169 mil), Espanha (167 mil) e Reino Unido (162 mil).

Poucos ucranianos buscaram asilo no Brasil. De acordo com o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública responsável por deliberar os pedidos de refúgio no Brasil, apenas 24 solicitações foram protocoladas desde o início da guerra. Já o Itamaraty informou que 187 vistos humanitários foram concedidos.

Conhecida como a Ucrânia brasileira, Prudentópolis se mobilizou para acolher parte das pessoas que fugiram da guerra. No município paranaense, 75% da população de 52 mil habitantes têm ascendência no país do Leste Europeu.

Só a igreja do missionário ucraniano Vitalii Archulik, que mora na cidade há cinco anos, recebeu 27 compatriotas. O grupo formado principalmente por mulheres e crianças foi instalado em condomínios da cidade e durante todo esse período se mantém com auxílio financeiro das igrejas. A maior parte do grupo, porém, já planeja voltar à Ucrânia. Alguns cogitam procurar abrigo em nações vizinhas ao país invadido.

Archulik afirma que a falta de assistência do Estado brasileiro e de perspectivas econômicas desestimulam a permanência no país. Apenas cinco pessoas do grupo conseguiram emprego nas áreas de limpeza, corte de carnes e comércio.

"O salário mínimo no Brasil é menor que R$ 1.500, o que é insuficiente para sustentar uma família. Na Polônia, por exemplo, esse valor é pelo menos três vezes maior", diz o missionário.

Projetando o retorno à Europa, a maior parte do grupo já interrompeu as aulas de português, e as crianças voltaram a ser matriculadas em instituições ucranianas que oferecem aulas online.

O Brasil também foi porta de entrada para o russo Alexandr Cherstobitov, que temia represália do governo de Vladimir Putin. Pesquisador independente e ex-professor universitário de ciência política em São Petersburgo, ele mantém um canal no Telegram com conteúdos políticos muitas vezes críticos à invasão russa e já assinou petições contra a guerra.

Cherstobitov escolheu morar em São Paulo para dar aulas sobre o Parlamento russo como professor convidado pelo programa Pesquisadores em Risco, da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

Mais de 19,5 mil pessoas já foram detidas na Rússia em protestos contra a guerra e a mobilização de reservistas ordenada por Putin, segundo o grupo independente de monitoramento de protestos OVD-Info.

"Pelo menos 20 amigos e colegas saíram da Rússia ainda nos primeiros meses. Outros deixaram o país quando Putin anunciou a mobilização", diz Cherstobitov. "Muitas pessoas não mostram o que realmente pensam sobre a guerra e não respondem a pesquisas de opinião com medo de que as informações sejam usadas contra elas".