Inaugurada em 1914, a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil foi crucial para a ocupação econômica de regiões de fronteira agrícola em São Paulo e Mato Grosso. Na Primeira República, seus trilhos escoaram a produção do café paulista e da erva-mate mato-grossense até o porto de Santos.
A ferrovia se estendia por 1.622 quilômetros ao longo do Rio Tietê, cruzava o Rio Paraná e margeava o Pantanal até Corumbá, em Mato Grosso. Em Bauru, seu ponto inicial, a estrada deixou um complexo de estações, oficinas, escritórios e vilas de funcionários, além de móveis, vagões, locomotivas, documentos, fotos, mapas e projetos.
“Algumas dessas construções estão entre as mais importantes do país, por suas dimensões, linguagem arquitetônica e tecnologia”, afirma Nilson Ghirardello, professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (Faac) da Unesp em Bauru. Ele é o coordenador do projeto Estrada de Ferro Noroeste do Brasil/Bauru Km 0, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) no âmbito de um convênio com o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat).
Esse patrimônio arquitetônico e urbanístico começou a se formar no início da construção da estrada, em 1905, em torno da qual surgiram cidades como Lins e Araçatuba. Em 1917, a ferrovia, até então privada, foi estatizada e a administração central transferida do Rio de Janeiro para Bauru. “Toda a infraestrutura I da ferrovia foi reconstruída, as curvas retificadas e as estações reformadas. Isso exigiu a edificação de grandes oficinas para a construção de vagões, envolvendo metalurgia, fundição, carpintaria e estofamento”, conta Ghirardello.
Quando inaugurada, em 1939, a estação em Bauru possuía uma escala monumental – mais de 10 mil metros quadrados distribuídos em três andares –, arquitetura clara e simples, utilizando a linguagem “oficial” que já expressava a normatização da arquitetura pelo governo central. As grandes oficinas eram formadas por uma rotunda semicircular e por diversos galpões onde estavam instaladas a metalurgia, a calderaria, a solda, a usinagem etc.
Em 1996, no âmbito da privatização da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), a Noroeste foi arrematada pela Novoeste S.A. e fundida com a Ferronorte e a Ferroban por meio do consórcio Brasil Ferrovias S.A. Atualmente, a malha da velha Noroeste integra a rede da América Latina Logística.
Os trens de passageiros foram substituídos por vagões de cargas e as estações e oficinas foram abandonadas. “Há espaço que pode ser utilizado para iniciativas culturais e de entretenimento, mas ainda está sem uso efetivo”, diz o pesquisador.
O principal objetivo do projeto Bauru Km 0 foi estudar esse conjunto arquitetônico, inventariar os bens importantes para a memória ferroviária e auxiliar no seu processo de tombamento, trazer à luz material iconográfico e documental sobre esses edifícios e sua história e analisar a organização administrativa do trabalho.
Desenvolvido entre 2011 e 2014, o projeto envolveu seis pesquisadores, dois alunos de mestrado e 22 de iniciação científica na coleta de dados no Centro de Memória Regional RFFSA/Unesp, no Museu Ferroviário Regional de Bauru, na inventariança da RFFSA e em seu antigo arquivo operacional, que guardava plantas, fotos, mapas, relatórios, entre outros. O projeto incluiu o estudo da arquitetura das casas dos engenheiros e de quatro vilas dos funcionários, além da organização administrativa do trabalho nos escritórios da ferrovia.
MEMÓRIA PRESERVADA
Um dos objetivos do projeto coordenado por Ghirardello foi criar um Centro de Memória Virtual, uma rede digital que garante o armazenamento e a recuperação das bases bibliográficas, cartográficas e fontes documentais do projeto.
O centro também hospeda o projeto Memória Ferroviária, igualmente realizado por pesquisadores da Unesp com o apoio da Fapesp, e que, até 2015, deverá concluir um inventário do patrimônio industrial em complexos ferroviários paulistas.
“O projeto contribuiu para que o Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo [da FAAC] conquistasse, em 2012, um programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, que tem a ferrovia entre suas linhas de pesquisa”, diz Ghirardello.
Os resultados atraíram também a atenção para a preservação de outro patrimônio histórico: a convite da Empresa Pateo Bauru Empreendimentos Imobiliários e com a interveniência da Fundação para o Desenvolvimento de Bauru, o grupo de pesquisadores foi contratado para elaborar o projeto de restauração da antiga estação da Estrada de Ferro Sorocabana, em Bauru.