Dois mil brasileiros participarão dos testes para vacina contra a Covid-19 desenvolvida pela Universidade de Oxford. A estratégia faz parte de um plano de desenvolvimento global, e o Brasil será o primeiro país fora do Reino Unido a começar a testar a eficácia da imunização contra o Sars CoV-2.
Em entrevista exclusiva na quinta-feira (28), a cientista brasileira Daniela Ferreira, que participa do projeto, já tinha adiantado ao G1 o dilema da prova de eficácia: os responsáveis pela pesquisa em Oxford viam com preocupação o impacto da diminuição da curva de casos no Reino Unido na pesquisa (veja o vídeo abaixo). Já naquela época o grupo se organizava para ampliar os testes em uma região com altas taxas de circulação do Sars-Cov-2 para poder acelerar a comprovação da possível eficácia da vacina.
“É uma situação um pouco bizarra, porque você quer que o coronavírus desapareça, não quer que as infecções continuem”, diz a chefe do departamento de ciências clínicas da Escola de Medicina Tropical de Liverpool. Para provar mais rapidamente se a fórmula é eficaz, é preciso que os voluntários tenham contato com o vírus e, atualmente, o Brasil é considera o epicentro da pandemia.
“Um dos fatores limitantes de tudo isso é se a gente vai continuar a ter, nos países em que as vacinas estão sendo testadas, um número de infecção que permite que você teste essa vacina rapidamente”, explicou Daniela Ferreira.
Para ser conduzido no Brasil, o procedimento foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), com o apoio do Ministério da Saúde. Em São Paulo, os testes serão feitos em mil voluntários e conduzidos pelo Centro de Referência para Imunológicos Especiais (Crie) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A Fundação Lemann está financiando a estrutura médica e os equipamentos da operação.
Os voluntários serão pessoas na linha de frente do combate ao coronavírus, com uma chance maior de exposição ao Sars CoV-2. Eles também não podem ter sido infectados em outra ocasião. Os resultados serão importantes para conhecer a segurança da vacina.
Com a previsão otimista de ficar pronta ainda em 2020, a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford ofereceu proteção em um estudo pequeno com seis macacos, resultado que levou ao início de testes em humanos no final de abril.
Em humanos, os testes têm apenas 50% de chance de sucesso. Adrian Hill, diretor do Jenner Institute de Oxford, que se associou à farmacêutica AstraZeneca para desenvolver a vacina, disse que os resultados da fase atual, envolvendo milhares de voluntários, podem não garantir que a imunização seja eficaz e pede cautela.
A vacina já está sendo aplicada em 10 mil voluntários no Reino Unido. A dificuldade para provar a possível eficácia está no fato de os cientistas dependerem da continuidade da circulação do vírus entre a população para que os voluntários sejam expostos ao coronavírus Sars-Cov-2.
Relatório publicado no site da Organização Mundial de Saúde (OMS) com dados até esta terça-feira (2) mostra que estão em desenvolvimento pelo menos 133 candidatas a vacina, sendo que dez delas estão na fase clínica, ou seja, sendo testadas em humanos.
Embora os estudos avancem em todo o planeta, muitos especialistas acreditam que a vacina não estará disponível em 2020. Projeções otimistas falam num prazo de 12 a 18 meses, que já seria recorde. A vacina mais rápida já criada, a da caxumba, levou pelo menos quatro anos para ficar pronta.
Outra hipótese contra a qual todos os pesquisadores lutam é a de que uma vacina efetiva e segura nunca seja encontrada. O vírus do HIV, que causa a Aids, é conhecido há cerca de 30 anos, mas suas constantes mutações nunca permitiram uma vacina.
“Está todo mundo muito otimista, mas estudo de vacina é algo muito complicado. A maioria deles para na fase 3, de testes clínicos, pelos problemas que aparecem. É importante discutir essa possibilidade (de não se ter uma vacina)”, admite Álvaro Furtado Costa, médico infectologista do HC-FMUSP.
Gustavo Cabral, imunologista que lidera um estudo na USP e no Incorconcorda: “A vacina é o melhor caminho profilático (preventivo), mas não é o único caminho, há também os tratamentos. Para o HIV não há vacina e as pessoas que têm o vírus podem ter uma vida normal. Sabemos que aproximadamente 80% das pessoas infectadas com o Sars-CoV-2 não desenvolvem a Covid-19 ou têm sintomas leves. O problema são os outros 20% e o risco de fatalidade, hoje de 6%. Mas há centenas de estudos sobre medicamentos neste momento”, disse.
Para chegar a uma vacina efetiva, os pesquisadores precisam percorrer diversas etapas para testar segurança e resposta imune. Primeiro há uma fase exploratória, com pesquisa e identificação de moléculas promissoras (antígenos). O segundo momento é de fase pré-clínica, em que ocorre a validação da vacina em organismos vivos, usando animais (ratos, por exemplo). Só então é chegada à fase clínica, em humanos, em três fases de testes:
Fase 1: avaliação preliminar com poucos voluntários adultos monitorados de perto; Fase 2: testes em centenas de participantes que indicam informações sobre doses e horários que serão usados na fase 3. Pacientes são escolhidos de forma randomizada (aleatória) e são bem controlados; Fase 3: ensaio em larga escala (com milhares de indivíduos) que precisa fornecer uma avaliação definitiva da eficácia/segurança e prever eventos adversos; só então há um registro sanitário.
Depois disso, as agências reguladoras precisam aprovar o produto, liberar a produção e distribuição. Das dez vacinas em testes em fase clínica, algumas aparecem em estágio mais avançado, como a desenvolvida por Oxford, em fase 3.
A vacina do Reino Unido é produzida a partir de um vírus (ChAdOx1), que é uma versão enfraquecida de um adenovírus que causa resfriado em chimpanzés. A esse imunizante foi adicionado material genético usado para produzir a a proteína Spike do SARS-Cov-2 (que ele usa para invadir as células), induzindo a criação de anticorpos.
A empresa AstraZeneca já fechou com EUA e Reino Unido para cuidar da produção em escala mundial. O CEO da farmacêutica disse à rede britânica BBC, no domingo, que a população pode ter acesso a 100 milhões de doses da vacina já em setembro.
“De forma prática: é possível que uma vacina fique disponível em cerca de 18 meses por causa do investimento no mundo inteiro. O mundo parou. Mas eu diria que é impossível até setembro”, opina o brasileiro Gustavo Cabral.
Álvaro Furtado Costa também recomenda cautela com anúncios muito otimistas sobre vacinas. Ele acredita que não se pode desprezar, por exemplo, que uma novidade nesse campo impulsiona as ações da empresa que a anuncia.
“Quando se começa um estudo de vacina, a fase 1 tem resultados bem preliminares e rápidos, para começar a avaliar se é segura, se não tem grandes efeitos adversos, mas você testa pouca gente. Nas fases 2 e 3 você testa 10 mil, 20 mil pessoas, isso é mais demorado. Aí você vê se realmente protege. O mundo testou vacinas de HIV que chegaram à fase 3 e aí falharam. É preciso ter calma”, disse Costa.
Duas pesquisas feitas no Brasil aparecem na fase pré-clínica no relatório da OMS.
Um dos projetos é liderado por cientistas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e pelo Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor). A pesquisa é financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Pesquisador responsável pelo estudo, Gustavo Cabral é imunologista pela USP e pós-doutor pela Universidade Oxford e na Universidade de Berna, na Suíça. Seu grupo trabalha com plataforma de vacina baseada em partículas semelhantes ao vírus (VLP, em inglês). Já há testes com animais.
“Quando um vírus entra nosso corpo, o sistema imunológico ataca. Não queremos utilizar o vírus, queremos usar partículas semelhantes ao vírus. Fizemos com chikungunya, Streptococcus e agora Covid-19. Essas partículas são apenas uma base que estimula o sistema imunológico. Nele, a gente coloca alguns pedaços do coronavírus, fragmentos proteicos ou proteína inteira, dando estímulo ao sistema imunológico para produzir anticorpo.”
Também em fase pré-clínica está uma vacina pesquisada pelo INCTV (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Vacinas), que tem base técnica elaborada pelo Grupo de Imunologia de Doenças Virais da Fundação Oswaldo Cruz-MG.
“Nossa técnica consiste em usar o vírus da influenza como vetor vacinal. Como se trata de um vírus defectivo para a multiplicação, ele não causa a doença, mas gera produção de anticorpos. Com esse processo, uma das possibilidades é desenvolver uma vacina bivalente, que possa ser usada contra influenza e contra o coronavírus”, explica o pesquisador Ricardo Gazzinelli, líder do Grupo de Imunopatologia da Fiocruz Minas e coordenador do INCTV. (G1)