Imagine uma pessoa surpreendida por uma febre alta, tossindo, com intestino solto e uma vontade louca de botar os bofes pra fora de tanto enjoo. Podem surgir manchinhas pelo corpo, enquanto os músculos se mostram moídos, especialmente na região das panturrilhas. A cabeça parece explodir. E os olhos, naquele tom vermelho de uma conjuntivite, deixam na cara que a criatura está em frangalhos.
Esses sintomas, porém, confundem qualquer doutor. Ora, podem indicar uma porção de coisas, de dengue à gripe, passando por outra virose qualquer. Não há como fazer, apenas com um bom exame no consultório, um diagnóstico clínico de leptospirose, infecção que muita gente conhece como "a doença dos ratos". O único jeito é testar.
Mas o problema do teste disponível para flagrar a infecção é que, além de não ser feito em qualquer canto por causa de sua complexidade, para obter uma resposta certeira o indivíduo precisa estar contaminado pela bactéria do gênero Leptospira há mais de dez dias — sim, é uma bactéria por trás dessa encrenca. Antes disso, se duvidar, voltará para casa ludibriado por um resultado falso negativo.
"Aí é que está o perigo: um tipo mais severo dessa bactéria pode não precisar de tanto tempo para causar hemorragias, complicações renais e coma", explica a bióloga molecular Ana Lúcia Oller do Nascimento, do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Instituto Butantan, em São Paulo. "Infelizmente, às vezes o paciente morre sem saber o que teve. O diagnóstico é feito só depois de sua morte."
Por isso a importância do teste desenvolvido pelo grupo da pesquisadora, divulgado recentemente em um artigo na revista científica Tropical Medicine and Infectious Disease: ele acusa casos de leptospirose na fase inicial, quando a infecção ainda pode ser debelada por antibióticos.
Uma proteína inventada
É dessa maneira que se pode definir uma proteína quimérica, como a criada pelo biotecnólogo Luis Guilherme Virgílio Fernandes, que fez seu doutorado e seu pós-doutorado no laboratório da professora Ana Lúcia. O adjetivo "quimérico", aliás, quer dizer exatamente isso: fruto da imaginação. Na realidade, não existe uma proteína desse jeito na bactéria causadora da leptospirose. Ela é, nas minhas palavras, uma espécie de Frankenstein microscópico.
Existem cerca de 200 sorotipos de Leptospira capazes de provocar a doença e, antes de mais nada, Fernandes foi pesquisar que proteínas eram presentes em vários deles. Encontrou dez que, mais do que se repetirem com frequência, tinham uma característica desejável: "Estavam expostas", explicou ele, que hoje é pesquisador visitante do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.
Na superfície da bactéria, e não escondidas em seu interior, é que poderiam ser reconhecidas pelo sistema imunológico. Porque a ideia original desse cientista inquieto era investigar a possibilidade de uma vacina com a quimérica inventada no Butantan. "Mas ela acabou funcionando muito mais para o diagnóstico precoce", reconhece.
Fernandes e seus colegas pegaram um pedacinho de uma das dez proteínas selecionadas, dois pedacinhos de outra, mais um pedacinho de uma terceira e assim por diante. "Não quaisquer 'pedacinhos', mas epitopos, como chamamos, que são aquelas porções capazes de chamar a atenção das nossas defesas mais depressa", diz ele. Uniu todos em uma quimérica só.
Bem, se isso não serviu para uma vacina, funcionou para atrair anticorpos no clássico teste ELISA (enzyme linked immuno sorbent assay). Quando acontece a união entre esses anticorpos e a quimérica, o líquido muda de cor, entregando a leptospirose.
A diferença para o teste tradicional
Na falta de alternativa, a própria OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda um teste conhecido como MAT, ou de microaglutinação. "O soro do paciente com a suspeita da infecção é colocado em contato com bactérias Leptospiras vivas e elas vão se aglutinando diante de determinados anticorpos", descreve a professora Ana Lúcia.
Ela estuda essa bactéria desde o ano 2000 quando o grupo coordenado por ela, com uns cinquenta cientistas de universidades brasileiras e do Exterior, foi o segundo a decifrar o genoma da Leptospira — mais especificamente, no caso, da Leptospira interrogans, muito prevalente no Brasil. "Porque tem mais esta: a bactéria encontrada aqui é muito diferente daquela detectada em uma cidade chinesa ou nos ratos de Chicago", informa. "Isso torna desafiador o objetivo de criar um teste e uma vacina que sejam universais."
Como os tais anticorpos que fazem a bactéria aglutinar demoram cerca de dez dias para aparecer no organismo dos pacientes, não é raro o MAT, primeiro, dar negativo e, uma ou duas semanas depois, ao ser refeito na mesma pessoa, mostrar o resultado positivo. Foram casos assim que a professora e Luis Guilherme Fernandes usaram.
"Portanto, de antemão já sabíamos que todas as amostras com resultado negativo eram de pessoas com leptospirose", reforça o pesquisador. "E, em 75% delas, o teste usando a proteína quimérica conseguiu acusar a infecção. Penso que, se isso salvar uma única vida, já valeu a pena todo o nosso estudo". Mas, provavelmente, o novo teste — para o qual os cientistas já entraram com pedido de patente — deverá salvar muito mais pacientes.