É no mínimo curioso que uma tese de doutorado em filosofia trabalhada durante oito anos e que será defendida em Paris por um brasileiro nesta quinta-feira, encontre no carnaval uma de suas melhores traduções. Seu autor, o psicanalista Antônio Quinet, 44 anos, que morou 10 anos em Paris - onde foi professor convidado do Departamento de Psicanálise fundado por Jacques Lacan - faz questão de deixar bem claro que o tema carnaval (leia abaixo) ocupa apenas um capítulo de sua obra de 500 páginas, que deverá ser editada no Brasil pela Zahar. Segundo Quinet, a folia, principalmente no Rio, sintetiza o olhar brasileiro em sua tese O objeto olhar em psicanálise, cujo aspecto fundamental é a importância de ser visto pelo outro. O psicanalista estudou o olhar desde a antigüidade grega, passando por filósofos como Decartes, e encontrou em Freud e Lacan as respostas que procurava: "Em nossa sociedade temos quase que um imperativo do ser visto para existir", analisa.
A partir da filosofia (para Platão, o olhar conduz ao bem), dos mitos e do teatro da antigüidade. Quinet avaliou a subjetividade do olhar em seus diversos aspectos: o mau-olhado, a justiça cega ("a lei é para todos, menos para os que a ditam"), o belo, o hediondo ("também há prazer no horror") e sobretudo nos desdobramentos a partir de Freud e Lacan, do olhar como objeto de prazer e angústia. Para Freud, o objeto exemplar da psicanálise é a pulsão escópica, ou seja, a libido gerada pelo ver e ser visto. "Proponho chamar nossa sociedade de escópica", e traduz: "o outro me vê, logo existo". Quinet defende sua tese na Universidade Paris VIII e a banca contará com filósofos como Alain Grosrichard e Alain Badiou, além dos psicanalistas Jean-CIaude Maleval e François Sauvagnat.
"A partir do clássico mito da cabeça de Medéia - a mulher que petrificava as pessoas com o olhar -, Freud mostra como essa petrificação corresponde à exaltação do desejo e, ao mesmo tempo, a uma mortificação". Um clássico da antigüidade, Édipo rei, de Sófocles, é usado por Freud para demonstrar que o saber é fruto de uma visão aguçada, que desperta o desejo e o gozo, observa.
Se os antigos usavam o olhar com caráter subjetivo, Decartes propôs uma visão científica sobre o assunto, com sua Diopteca, de 1637. Antes dele, o astrônomo alemão Johannes Kepler havia descoberto que as imagens se formam na retina e a física ótica começou a se desenvolver. A partir daí, o espaço passou a ser matematizado. Kant radicalizou ainda mais, com a idéia de que "o olho da razão ilumina as coisas e lança o desejo nas trevas". "É a psicanálise que vai retomar o olhar como um objeto da subjetividade. Onde os antigos descreviam a visão. Freud descobre a pulsão de ver", explica Quinet.
Se Freud chegou à pulsão do olhar, Lacan foi mais adiante, separando a visão do olhar. "O sujeito tenta agradar ao olhar do outro, mas acaba julgado e criticado por este outro", diagnostica Quinet. "Esta é a fonte da angústia", diz o autor, que valeu-se ainda da sociedade de espetáculo, descrita em 1967 pelo sociólogo Guy Debord, e pela sociedade disciplinar e a panóptica de Michel Foucault, em 1975. "A panóptica dissocia o ver do ser visto, fazendo do sujeito um ser que é o tempo todo objeto do olhar do outro", esclarece Quinet.
No carnaval, então, o ser visto vai às últimas conseqüências. "É uma festa que se torna uma vitrine para o mundo", descreve o psicanalista. Resta lembrar, ressalta Quinet, em uma outra visão do olhar, que os excluídos do sistema fogem para a religião, onde buscam a garantia de que Deus os vê. "Todas as igrejas usam e abusam da crença de que Deus por um lado protege, mas por outro, vigia os pecados", conclui.
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Jornal do Brasil