HÁ NÃO MUITO MAIS DE 30 anos, ali por volta de 1970, o Brasil produzia cerca de 1 milhão de toneladas de soja por ano. Neste ano, colheu 50,3 milhões de toneladas, um avanço de 20% sobre a safra anterior. Com 8,4 milhões de toneladas a mais neste ano, o Brasil deve suplantar os Estados Unidos como o maior exportador mundial de soja. Mais recentemente ainda, em 1990, o país exportava pouco acima de 1 milhão de toneladas de açúcar, ou apenas um quarto das exportações de Cuba, então o vendedor número 1 do produto. Neste ano deve exportar 13 milhões de toneladas, ou três vezes mais do que Cuba, avanço que fez do Brasil o maior exportador mundial de açúcar, com um terço das vendas globais. De novo lembrando 1970, o país produzia 200 000 toneladas de frango por ano. Hoje produz isso em pouco mais de dez dias, num total de 6,5 milhões de toneladas anuais. No mesmo período, o Brasil criou, saindo do zero, o maior laranjal do planeta. Se isso não é um êxito, então o que é?
Não existe na economia brasileira nada que tenha dado mais certo, nos últimos anos, do que a agricultura e toda a vasta cadeia de negócios que se liga a ela. Os benefícios desse sucesso não ficam restritos ao bolso dos que estão diretamente ligados a ele. Entre o que exporta e importa, o setor fornece um saldo de mais de 20 bilhões de dólares anuais para as contas externas do país - moeda forte sem a qual não haveria a menor condição para a economia do Brasil funcionar. O bom desempenho do campo também tem permitido as famílias brasileiras, em média, gastar cada vez menos com a alimentação - pouco mais de 27% de seu rendimento, hoje, contra quase 40% em 1970, uma cifra muito reveladora quando se leva em conta que uma sociedade é tanto mais desenvolvida quanto menos dinheiro seus cidadãos gastam para comer.
Em nenhuma outra atividade, no fundo, o Brasil se modernizou tanto, aumentou mais a sua produtividade e tornou-se tão competitivo quanto na agricultura. "Hoje estamos entre os competidores mundiais mais fortes em pelo menos dez das maiores cadeias produtivas do agronegócio", resume o engenheiro agrônomo Ivan Wedekin, secretário nacional de política agrícola do Ministério da Agricultura. "O campo, atualmente, é o maior negócio deste país." É mesmo. O trabalho feito ali permitiu o desenvolvimento de toda uma indústria - de processamento dos produtos, de defensivos agrícolas e fertilizantes, de equipamentos, de sistemas para irrigação, de tratores e de máquinas de última geração para o trato do solo e para a colheita. Sustenta a construção e a operação de terminais de embarque, armazéns e silos. Absorve a produção fornecida por dezenas de centros de pesquisa e laboratórios. Ao longo de toda essa linha, gera renda e empregos. No fim das contas, faz viver entre 60 milhões e 65 milhões de brasileiros.
A revolução na agricultura ensina uma porção de coisas, a começar pela constatação de que a situação atual no campo não é o maior problema do Brasil, como se ouve todo santo dia, e sim uma de suas maiores soluções, como se vê pela realidade dos fatos. Mas, de tudo o que se pode dizer a respeito, dois pontos parecem muito úteis para entender melhor o que está acontecendo. Primeiro: todo o espetacular progresso verificado nos últimos anos na produção agrícola brasileira não teve nada a ver com nenhum tipo de reforma agrária ou de distribuição de terras. Segundo: os subsídios e as barreiras defensivas de todo tipo que os países ricos criaram nos últimos 30 anos para proteger seus produtores não tiveram eficácia nenhuma para impedir que a agricultura brasileira chegasse aonde chegou. Quanto mais dinheiro torram nisso - e hoje estão torrando cerca de 1 bilhão de dólares por dia -, mais o Brasil produz e exporta.
Como, com essas condições, um país pode sair de 1 milhão de toneladas anuais de soja para 50 milhões? Como pode transformar numa das áreas mais dinâmicas e modernas de sua economia uma cultura com 400 anos de vida, como a da cana-de-açúcar? Como foi possível criar, a partir do nada, cadeias de produção inteiras, como a da laranja e a do frango? Como conseguiu fazer milhões de hectares de deserto econômico, onde a produção era quase zero, como Mato Grosso, Goiás e outras áreas de cerrado, estarem hoje entre as terras mais produtivas do mundo? Existe mais de uma resposta para isso tudo, mas não há dúvida sobre qual é a principal delas: tecnologia. "O clima, a água e a disponibilidade de terra ajudam, mas sem a tecnologia jamais teríamos dado um salto dessas dimensões", diz o agrônomo Homero Corrêa de Arruda Filho, presidente da Copersucar, a maior empresa brasileira do setor de cana, açúcar e álcool. "A tecnologia nos permite operar com custos nunca vistos na história desse negócio. Em nosso ramo, somos hoje os produtores mais competitivos do mundo."
Essa realidade, ano após ano, vai se tomando cada vez mais visível na paisagem brasileira. Colheitadeiras munidas com sistemas de localização por satélite, computadores de bordo e ar-condicionado, desenvolvidas e fabricadas no Brasil, circulam hoje num número crescente de propriedades rurais. Câmeras de vídeo são usadas para observar os trabalhadores no corte da cana e com isso determinar quais os movimentos mais adequados para colher o máximo com o mínimo de esforço físico - o que permite a um único homem cortar 18 toneladas de cana num dia só. Fábricas que nos anos 70 conseguiam processar 600 toneladas de soja por dia numa unidade hoje são capazes de esmagar 5 000, um ganho de escala essencial para a produtividade. Os progressos na biotecnologia, enfim, têm ajudado de maneira crítica a modernização da agricultura brasileira.
Nos últimos seis anos, 100 novas modalidades de sementes para soja foram desenvolvidas nos laboratórios brasileiros, privados ou públicos, e postas à disposição dos produtores - avanço que contou com a contribuição decisiva da Lei dos Cultivares, pela qual são protegidos os direitos de quem investe em pesquisa agrícola. O Centro de Tecnologia da Copersucar, com a Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), conduz atualmente o maior programa de genoma da cana-de-açúcar do mundo, trabalho que envolve 180 pesquisadores em mais de 20 laboratórios espalhados pelo Brasil. A empresa, que investe cerca de 30 milhões de reais por ano em pesquisa tecnológica e conta com uma constelação de Ph.Ds. em sua folha de pagamento, é responsável por 50% das variedades de cana plantadas no país atualmente - o que faz o trabalho do CTC gerar ganhos de produtividade em todo o canavial brasileiro, e não só nas áreas de produção da Copersucar. A Embrapa, do governo federal, a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), em Piracicaba no interior de São Paulo, e diversas outras instituições de pesquisa e ensino na área agrícola tornaram-se credoras de respeito e reputação internacionais.
"O canavial é um ser vivo", diz Homero Arruda. "A genética consegue melhorar a cada momento a vida dessa cultura, pois também a cada momento ela exige novos atributos para se manter produtiva." Arruda lembra que a tecnologia, em seu conjunto, faz melhorar a fertilidade, o preparo do solo, a manutenção da área plantada, o controle sanitário, a colheita, a logística, o processo industrial, os equipamentos, o armazenamento e a silagem, as máquinas e, por fim, a produtividade em si - o que no caso da Copersucar se traduz por mais cana cortada e por mais teor de açúcar por tonelada colhida. Na soja, ganharam-se mais grãos por hectare, mais óleo por grão e melhor qualidade do óleo. "A modernização aparece em toda a cadeia produtiva", diz Arruda. Aparece, ainda, no meio ambiente: a cultura da cana no Sul do país tem um dos índices de erosão mais baixos do mundo, e é também a que menos utiliza produtos químicos.
Um ponto-chave nisso tudo é que a maior parte da tecnologia agrícola aplicada atualmente no Brasil é de controle nacional. "A independência que temos ai é fundamental", afirma Wedekin. "É claro que o Brasil continua importando itens na cadeia tecnológica mundial, mas não vivemos uma situação de dependência, como em tantos outros setores. O estoque de tecnologia agrícola do Brasil já é o maior do hemisfério sul." Mais uma vez, os benefícios não ficam apenas na terra. "A indústria de bens de capital no setor de açúcar e álcool é toda brasileira", diz o presidente da Copersucar. Em 1970 foi importada da Austrália a primeira máquina de colher cana que se utilizou no país. Hoje, os dois maiores produtores mundiais de colheitadeiras para cana estão aqui no Brasil - a Case, em Piracicaba, São Paulo, e a Cameco/John Deere, em Catalão, Goiás. "Foi preciso desenvolver aqui dentro esse tipo de equipamento, pois não havia lá fora máquinas adequadas ao que a gente precisava", diz Arruda.
A transformação do agronegócio brasileiro num dos mais competitivos do mundo inclui outros fatores além da tecnologia. A relação entre o preço da terra e o valor do produto colhido é um deles. Em Sorriso, no Mato Grosso, ou Rio Verde, em Goiás, 1 hectare de terra vale entre 200 e 250 sacas de soja - um sétimo do que custa a terra para o produtor americano. "Existe uma revolução silenciosa em andamento no Brasil, capitaneada por agricultores capitalizados, principalmente os que não tinham dívidas no dia em que foi implantado o Plano Real", afirma Wedekin. "Eles estão realizando um projeto fantástico, que vai muito além da inovação tecnológica." Uma delas é a revolução gerencial. "Já não basta a melhor tecnologia", diz Wedekin. "O agricultor precisa ser também um bom gerente, e está conseguindo fazer isso." Outra é a melhoria constante na capacidade de "agregar valor" ao que se retira da terra, transformando os produtos primários em mercadorias mais caras: óleos, bebidas, proteínas, material para a indústria, combustíveis.
O significado final de todo esse conjunto de mudanças está na criação de uma realidade inteiramente nova na agricultura brasileira: hoje, o que determina o sucesso do produtor rural, seu bem-estar e sua prosperidade, não é mais a quantidade de terra que ele tem (veja a reportagem sobre os campeões de produtividade na pág. 130), e sim a eficácia com que consegue utilizá-la. É aí que está o começo, meio e fim da questão agrária no Brasil do século 21. O problema real não é distribuir terra, mas sim distribuir tecnologia, em todo o seu sentido - e as dificuldades de fazer isso é que explicam a maior parte das patologias existentes no universo rural brasileiro. Apesar de todo o progresso feito ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil mantém vastas porções de sua agricultura em plena idade da pedra. Cerca de 80% dos analfabetos brasileiros moram no campo. Não mais de 40% da população rural tem energia elétrica. Menos de 20% dispõem de assistência técnica. Enquanto há agricultores colhendo 10 000 quilos de milho por hectare, outros não conseguem colher mais do que 1 000. Como é muito grande o número de propriedades que produzem muito pouco, o aproveitamento global da agricultura brasileira fica muito abaixo do seu potencial - o que deve explicar por que o Brasil é apenas o décimo exportador agrícola mundial, atrás de países de extensão territorial muito menor, como Espanha ou a minúscula Holanda.
Os números dessa equação deixam claro quanto caminho o Brasil ainda tem de percorrer. Existem hoje cerca de 4,5 milhões de propriedades rurais no país. Metade delas tem menos de 10 hectares e responde por apenas 11 % do valor total da produção agrícola. Só 10% das propriedades têm mais de 100 hectares - mas geram 57% de tudo o que é produzido. No meio ficam as que têm entre 10 e 100 hectares, e das quais vêm os restantes 32% da produção. Salvo exceções (como é o caso dos proprietários que trabalham nos "sistemas de integração" com a indústria e com suas amplas redes de distribuição), os agricultores que dispõem de pouca terra não contam com acesso à tecnologia e a outros benefícios do progresso - e acabam sendo os menos produtivos. Na ponta oposta, a das propriedades maiores, concentra-se o grosso da tecnologia e da modernização - e é por isso que elas são as mais competitivas, têm os melhores índices de produtividade e são capazes de gerar dinheiro.
"O desafio da nossa agricultura é desconcentrar a tecnologia e tudo de bom que vem com ela, fazendo com que suas vantagens cheguem à maioria das propriedades", diz Wedekin, do Ministério da Agricultura. "E um trabalho muito complicado, pois fica caro distribuir tecnologia para quase 4 milhões de propriedades com menos de 100 hectares espalhadas por todo o país. O Brasil chegou tão depressa a 40 milhões de celulares porque seu custo de distribuição é comparativamente barato. No campo a história é outra." Por isso mesmo, é preciso começar o quanto antes um esforço sério para levar a revolução tecnológica até o vasto número de propriedades que até hoje ficaram fora dela. Para Wedekin, um bom ponto de partida seriam as áreas entre 10 e 100 hectares - que, apesar de carentes, respondem por quase um terço do valor total da produção.
Não é o "latifúndio", como se vê pelos fatos, que faz mal ao Brasil. O que realmente faz mal é o atraso, o abandono e a falta de recursos, de toda ordem, que compõem a realidade da imensa maioria das propriedades rurais. O governo tem na agricultura uma das melhores, talvez a melhor, de suas cartas. Para aproveitá-la bem, é preciso resistir à tentação de mexer no que está dando certo, prestar mais atenção na Embrapa do que no Incra e dar prioridade real à tarefa de incluir um número cada vez maior de agricultores na esfera do progresso.
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