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Jornal da USP

Tecendo os fios da vida (1 notícias)

Publicado em 01 de fevereiro de 2010

O arquivo da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa), antig Febem, abriga milhares de pastas e prontuários de crianças e jovens que, por motivos diversos, foram internados, desde 1938, em unidades do estado de São Paulo.

Já em andamento há alguns anos, um estudo coordenado pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, denominado Adolescentes em conflito com a lei: pastas e prontuários do Complexo do Tatuapé, analisa o perfil dos jovens internados por estarem em conflito com a lei entre 1990 e 2006.

Um desdobramento desse projeto - chamado Fios da Vida: identidade, memória e ritual. Crianças abrigadas, hoje adultas, diante de seus prontuários - tem como meta o foco em um universo não contemplado pela pesquisa original.

No estudo, se busca a análise de prontuários de crianças que, há muitos anos, foram internadas, não por estarem em conflito com a lei, mas por terem sido consideradas abandonadas ou em situação de risco. A pesquisa abrange apenas os prontuários solicitados recentemente por essas pessoas, hoje na idade adulta.

O trabalho nasceu quando Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, foi informada pelo chefe do arquivo da Fundação Casa, Sérgio Ranalli, de que constantemente alguns ex-abrigados procuravam-no para solicitar acesso a seus prontuários a fim de averiguarem registros de suas histórias familiares e institucionais.

Narrativas - O interesse em descobrir o que motiva essa busca por parte dos ex-abrigados, quais suas expectativas e como hoje vivem, Ana Lúcia debruçou-se, no ano de 2009, sobre documentos de 37 pessoas que passaram por abrigos do estado de São Paulo e que, entre os anos de 2006 e 2009, solicitaram os documentos.

"Muitas vezes, nos prontuários, encontramos a história da família da criança, sempre reconstituída por agentes dos abrigos. Pretendo saber qual o significado dessas histórias para as pessoas que buscam seus registros e que hoje têm, em média, entre 40 e 50 anos", observa Ana Lúcia que é coordenadora do Núcleo de Antropologia do Direito (Nadir) da FFLCH e pesquisadora do NEV.

A professora conta que dificilmente crianças e jovens que já estiveram internados em razão de conflito com a lei procuram seus prontuários quando adultos.

Todavia, não é raro que os ex-abrigados por terem sido abandonados ou considerados em situação de risco procurem os arquivos em busca de "fios de suas vidas".

Alguns alegam precisar de informações burocráticas, como eventuais registros de trabalho para pedidos de aposentadoria. Mas além dessas questões práticas, movidas por necessidades financeiras, há uma ligação afetiva inegável com o prontuário, que traz informações muitas vezes desconhecidas sobre pais, irmãos e outros fatos da infância.

"Ali está registrada uma versão da vida das crianças abrigadas, contada por meio de múltiplas narrativas, de autoria de diversos agentes. E é de se supor que a leitura dos documentos cause forte impacto emocional."

O término da primeira fase da pesquisa, de leitura dos prontuários, dará fruto a um relatório preliminar a se apresentado em março à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), pois a pesquisa integra o Projeto Temático do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (Napedra) da FFLCH.

Exclusão - Ressalvando que as análises ainda são preliminares, a pesquisadora adianta que em 46% dos casos estudados os adultos que buscaram seus prontuários de 2006 a 2009 têm entre 40 e 50 anos, e em 70% dos casos são homens. Para 57%, pai e mãe eram conhecidos à época do abriga-mento. "Eram crianças que viviam com os pais, mas pais com histórias de vida de forte exclusão econômica e social, geralmente migrantes. Quando só as mães eram conhecidas (32%), muitas delas passavam de cidade em cidade, acumulando filhos de pais diferentes, e não conseguiam se inserir no mercado de trabalho. Por meio desses prontuários, temos acesso mais a histórias de famílias abandonadas do que a histórias de crianças abandonadas", explica.

A segunda fase da pesquisa, a ser feita entre este ano e 2011, terá entrevistas com os adultos que consultaram seus prontuários e que autorizarem à Fundação Casa o contato direto com a pesquisadora. Ela espera, nessa etapa, identificar se uma das hipóteses levantadas no início do estudo é procedente. "O chefe do arquivo, que trabalha lá há mais de 40 anos, acredita que em datas festivas, como Dia das Mães, dos Pais, Natal e aniversários, há uma maior procura de informações", conta Ana Lúcia.

"Será que estamos diante de rituais de reconstrução identitária? Será que algum cíclo de vida dessas pessoas está se fechando e/ou se abrindo e por isso elas estão em busca de fios de suas vidas?", pergunta-se a professora. Como estudiosa dos direitos humanos, também interessa à pesquisadora analisar em que medida, para os ex-abrigados, está em questão o direito fundamental à memória.