A hierarquia corporativa tem alguns cargos de enorme projeção e outros nem tanto. O mais conhecido você certamente conhece: o CEO, Chief Executive Officer. As três letras representam a forma mais popular de denominar quem é responsável pode liderar a empresa: tomar as principais decisões e arcar com as consequências, sejam elas boas ou ruins.
Quem não está acostumado com essa terminologia pode estranhar: cadê “presidente”, aquele termo que também serve para designar quem dá ordens? Dentro dos caprichos da mise en scene corporativa, “presidente” foi substituído por CEO e acabou virando uma denominação genérica que pode se aplicar ao chefe do conselho. Essa mudança é razoavelmente nova. Ainda que existam relatos de executivos-chefe como CEOs no começo do século XX, pesquisa da Universidade do Michigan publicada em 1999 mostra que a onda de CEOs só encorpou a partir da década de 1970.
“Em 1955, apenas uma das 200 maiores corporações industriais dos EUA usava o título Chief Executive Officer (CEO) para descrever seu executivo chefe. Em 1975, todas menos uma dessas firmas tinham um CEO. Essa inovação não pode ser encarada como fruto de considerações estratégicas ou responsável por efeitos mensuráveis na performance da companhia. Na verdade, é provavelmente mais precisamente descrita como uma novidade, uma mania”, diz o artigo dos pesquisadores David Allison e Blyden Potts.
Tem outro ponto nisto: com sua popularização, CEO virou sinônimo de quem dá ordens, ainda que sua empresa tenha três pessoas ou, ainda mais esquisito, quando tem só você. É daí que vem aquela piada, gestada nas tripas do LinkedIn, do CEO de MEI: o sujeito que é microempreendedor individual e se autodenomina CEO. Ainda é melhor que se chamar de Jedi, Visionário ou Rockstar — e, sim, eu já vi alguns exemplos para cada um desses termos no LinkedIn. Enfim.
A onda do CEO na qual ainda estamos impactou outros tantos nomes de funções corporativas. Você tem o CFO, antes diretor financeiro, o CSO, antes o diretor de segurança, e o CMO, antigo diretor de marketing. Mas a posição na qual eu quero me concentrar é o COO, o Chief Operating Officer.
CEO e COO são duas posições bastante próximas, ainda que hierarquicamente diferentes — o COO responde ao CEO. Enquanto o CEO toma decisões estratégicas e representa a empresa aos olhos do mercado, o COO é o responsável por manter a operação rodando sem problemas. É o sujeito que coordena todas as divisões e orquestra a execução da estratégia definida pelo CEO. Mas nem sempre. A principal conclusão de uma pesquisa da Harvard Business Reviews é que, ao contrário de todas as outras posições executivas, não existe padrão no COO.
“Vendedores ou marqueteiros que desenvolveram as ferramentas do seu metiê em uma empresa podem geralmente aplicá-las com sucesso em outras, mesmo em indústrias dramaticamente diferentes. Executivos de finanças e recursos humanos também são treinados dentro dos padrões de fazer as coisas. Mas é difícil discernir se um COO que teve sucesso em uma empresa tem o necessário para ser COO de outra. As habilidades necessárias 1 não são genéricas nem portáteis. Mesmo em uma mesma empresa, as qualificações corretas para o cargo de COO podem mudar”. O que significa que as relações entre CEOs e COOs mudam caso a caso. “Em muitos casos, o COO está lá para ajudar a tornar realidade a visão do CEO. Algumas vezes, espera-se que o COO faça o CEO mais efetivo e completo. Constantemente, o plano é que o COO substitua o CEO.”
Nem toda empresa tem COO. Algumas adotam um modelo mais distribuído em que vice-presidências respondem diretamente ao CEO. Quando a empresa tem COO, porém, ele se torna o sucessor natural do chefe. Essa obrigação de acompanhar a operação nos mínimos detalhes dá ao COO uma visão completa do que a empresa faz, dos riscos adiante e do que é necessário fazer. Na sua rotina, o COO passa esse conhecimento para o CEO decidir. Quando sobe o degrau, ele já tem os dados.
É fácil encontrar exemplos de COOs que trilharam esse caminho. Talvez o principal no mercado de tecnologia seja Tim Cook, o sujeito responsável, entre outras coisas, por montar a operação de fabricação de hardware da Apple espalhada por diferentes continentes. Quando você mesmo produzia seus produtos, a tarefa tinha um nível de complexidade. Quando você precisou coordenar diferentes fornecedores para fábricas do outro lado do globo para distribuir os produtos em diferentes continentes, a complexidade aumentou muito. Como COO, Cook orquestrou a operação com maestria. Quando Steve Jobs morreu, era natural que Cook assumisse o posto. Houve um chororô na época de gente que achava que Cook era mão na massa demais e estratégico de menos. Onze anos depois, é difícil argumentar que a decisão foi errada.
Essa relação tanto intensa quanto customizada costuma se armar num esquema de “vai ou racha”. Algumas vezes, tal qual o Cook, passa-se a tocha. Em outras, o trem descarrilha de um jeito que deixa o mercado coçando a cabeça: Ray Lane era visto como sucessor natural de Larry Ellison na Oracle quando, em 2000, saiu de sopetão e deixou o mercado até hoje se perguntando o que aconteceu 2.
O ponto principal aqui é: o(a) CEO ganha todo os holofotes, as capas de revista, os posts de lambeção no LinkedIn, as investigações e multas do Ministério Público Federal e algemas gelando os pulsos quando a Justiça o julga culpado, mas quase sempre existe um braço direito que, de tanto que conhece a rotina, o metiê e os segredos, está a um passo de assumir a função. O(A) COO é sempre a pessoa mais poderosa que ninguém conhece na empresa. Tudo passa por ele(a). Se a empresa faz sucesso, é por grande culpa dele(a). Se dá merda, também.
A gente vai usar esse modelo de hierarquia corporativa para falar sobre um sucesso inegável: a internet brasileira. A figura mais lembrada e festejada desse grupo fundador é alguém já citado algumas vezes no Tecnocracia. Demi Getschko é um sujeito que personifica aquela imagem tradicional que se tem de pesquisadores: uma longa barba branca, óculos redondos e suspensórios que lhe conferem um visual Stanley Kubrick dos trópicos. Para explicar a fundo a história da internet no Brasil, Demi adota um estilo animado, bonachão e super didático. Se você gosta ou tem interesse em ópera, ele é capaz de ficar horas contigo falando sobre.
Getschko estava à frente da primeira conexão online do Brasil e, pelos anos seguintes, ajudou a arrumar as pecinhas que levaram primeiro à internet comercial e, depois, à sua popularização. Não à toa, Getschko foi o primeiro brasileiro a entrar no Hall da Fama da Internet. Até hoje, ele é considerado o pai da internet no Brasil, um título que ele mesmo faz careta quando ouve 3.
O Demi tem razão quando faz essa careta. Talvez para facilitar o entendimento, o público fora do setor (não só de internet, de qualquer setor) tende a depositar todos os méritos em uma única figura — vide Tom Jobim na bossa nova, por exemplo. Sem dúvida ele foi um dos principais pilares e líder (rivalizado, talvez, por João Gilberto), mas existem dezenas de outros que criaram e conduziram o movimento e acabam festejados, mas nem tanto (ouça o A Bad Donato, do João Donato. De nada). Para recuperar a metáfora do começo do episódio, se o Demi foi o CEO da implementação da internet no Brasil, ao lado ele tinha um COO cujo trabalho foi responsável por muito do seu sucesso.
Esse sujeito, brutalmente respeitado pelo mercado e que sempre odiou aparecer, se chamava Eduardo Tadao Takahashi e morreu em abril. É sobre a trajetória e a importância dele para você passar horas diárias mergulhado nessa coisa chamada internet, ouvindo minha voz ou fazendo o diabo que você quiser, que vai ser este episódio do Tecnocracia.
A literatura moderna adaptou do Teatro Grego um termo para representar um texto em tom melancólico para relembrar os efeitos de alguém que partiu. É a elegia. Pode-se argumentar que ninguém morre de verdade até ser esquecido, mas é mais fácil ser lembrado quando se conhece e entende a importância. Tirando a poesia e o tom melancólico originários do Teatro Grego, é o que nós vamos fazer aqui hoje. Eu já falei um pouco do Tadao no Tecnocracia #39, mas foi pouco.
A cada 15 dias, o Tecnocracia mergulha na história de figuras importantes para a história da tecnologia no Brasil para você entender que estamos todos aqui sobre o ombro de gigantes. Eu sou o Guilherme Felitti e o Tecnocracia está na campanha de financiamento coletivo do Manual do Usuário. Assinantes a partir do plano II (R$ 16) ganham acesso ao Balcão, o episódio ao vivo mensal do podcast. Gostou? Quer? Apoie.
A gente vai contar essa história partindo de dois pontos que se unem, como um Y deitado. A primeira perninha desse Y é fácil de adivinhar: nascido em 1951 em Marília (SP), Tadao Takahashi fez escolhas que o levaram à carreira acadêmica. Formado em ciência da computação e comunicação social quase ao mesmo tempo, Takahashi optou por focar na primeira e virou professor do Departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (DCC-Imecc) da Unicamp.
“Uma das primeiras iniciativas do professor Tadao foi justamente instalar na Unicamp o compilador Fortran Coppefor, feito na Coppe-UFRJ [Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro], visando agilizar o processo de compilação, desafogando a máquina e facilitando a vida dos alunos”, diz reportagem da revista Pesquisa FAPESP sobre Tadao.
Em 1976, um mestrado no Instituto de Tecnologia de Tóquio, no Japão, o afastou da Unicamp — e do Brasil —, para onde voltou quando se formou. Na década seguinte, Tadao seguiu lecionando na Unicamp, trabalhou no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPQD) e, finalmente, entrou no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Agora vamos à outra perninha do Y. Essa história acontece a partir do fim da década de 1980, quando diferentes grupos de engenheiros e pesquisadores brasileiros já demonstravam interesse em uma rede digital acadêmica que conectava centros de pesquisa nos Estados Unidos e na Europa. Em setembro de 1988, o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), unidade de pesquisa do CNPq (preste atenção), realizou a primeira conexão de rede no Brasil. Usando uma linha alugada da Embratel, os pesquisadores conseguiram trocar pacotes de dados com a Universidade de Maryland usando a Bitnet.
Pausa para rápidas explicações: a internet pela qual você está recebendo minha voz não foi o primeiro padrão para unir milhares de diferentes redes em uma única. Houve tantos outros padrões como a ARPANET, a NSFNET, a CSNET, a HEPNET, a DECNET, a USENET e a Bitnet, a antecessora da Internet. Ela foi criada em 1981 por pesquisadores das universidades CUNY, em Nova York, e Yale, em New Haven, e ganhou o nome pelo acrônimo de “Because It’s Time Network”. Todas eram redes esmagadoramente acadêmicas e pacote de dados é a unidade atômica das redes.
Pausa dentro da pausa para uma explicação ainda mais básica: internet é o nome que a gente dá para conexão entre milhões de diferentes redes de forma a trafegar pacotes de dados por diferentes nós. É comumente aceito que o inventor da internet é um sujeito britânico boa praça e super elegante chamado Vint Cerf — o Tecnocracia #18 abre comigo contando quando eu o entrevistei num hotel na Barra da Tijuca. Em cima da internet roda uma camada de aplicação chamada World Wide Web. É por onde todo conteúdo multimídia — vídeo, imagens, podcasts — chega até você. Hoje não é tão necessário, mas na década de 1990 você só conseguia se conectar a qualquer site se digitasse o www antes da URL. WWW vem de World Wide Web. Talvez isso já esteja abstrato demais e essa explicação é suficiente para a imensa maioria dos ouvintes, mas se você quiser se aprofundar ainda mais saiba que a Internet segue um modelo chamado Open Systems Interconnection (ou OSI) que é basicamente uma lasanha: são 7 camadas que vão da física à das aplicações. Na NICAR de 2014, o jornalista-programador Jeremy Bowers, atual diretor de engenharia do Washington Post, fez uma lightning talk explicando (com a ajuda de gatinhos) esse modelo em 6 minutos. Se você acha que eu falo rápido, bonitinho e bonitinha, prepare-se.
Voltando para as primeiras conexões a redes no Brasil. O LNCC se conectou à Bitnet em setembro de 1988. Em novembro, um grupo de engenheiros em um prédio nada chamativo na Lapa repetiu a conexão também para a Bitnet, mas dessa vez se conectando com o Fermi National Accelerator Laboratory (Fermilab), da Universidade de Chicago. No prédio nada chamativo funcionava a FAPESP e o chefe desse grupo se chamava Demi Getschko.
Aquela conexão só foi possível porque a FAPESP aprovou meses antes um projeto chamado Rede ANSP (Academic Network at São Paulo). Tinha a rede do LNCC, tinha a rede da ANSP e começavam a pipocar também outras redes acadêmicas pelo Brasil. O interesse era um bom sinal, mas havia um problema sério. Abre aspas para o Demi no documentário que eu e outro jornalista estamos fazendo sobre a história da internet no Brasil: “Uma outra coisa que ficou clara também logo no começo é que essa estrutura voluntária do pessoal se ligar do jeito que dava não era engenheiristicamente adequado, alguém deveria projetar algo que fosse uma estrutura na qual a rede se montasse, o que a gente conhece como backbone, uma estrutura dorsal”. Ou seja: sai aquela “rede de coleções espontâneas que iam daqui para lá, de cá para lá, mas algo planejado” e entra em cena algo centralizado.
É aí que as duas perninhas do Y se unem. A discussão que começou em 1988 passou a englobar uma série de outras universidades, centros de pesquisas e órgãos do governo. Um dos órgãos era o CNPQ, onde Tadao trabalhava. Nas discussões, parecia claro que nenhum serviço comercial de redes floresceria se fosse preciso montar infra-estruturas próprias. Uma rede central, algo que as telecomunicações chamam de backbone, ajudaria a acelerar a adoção das redes. Seria necessário que algum órgão liderasse a implementação. De novo o Demi: “O grande candidato a isso era a Rede Nacional de Pesquisa. O Tadao e o pessoal da RNP estavam querendo montar uma rede nacional.” Em 1989, um ano depois das primeiras conexões no Brasil, surgia a Rede Nacional de Pesquisa (RNP) dentro do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT). Numa dessas coincidências frente à historinha do começo, o presidente da RNP era Tadao e o diretor de operações era o Demi.
O que você precisa para montar um backbone? Bastante coisa. Em 1989, ainda mais, já que não havia quase fornecedores e existia um trabalho de catequização a ser feito. Lembra do modelo OSI que a gente falou há pouco? A primeira camada da internet é a física: tem que comprar fibra óptica, roteador, gateway, servidor, instalar tudo isso, garantir que tudo está conversando entre si e que os pacotes de dados estão sendo trocados. Não tem segredo. Só que, como qualquer pessoa que já planejou uma coisa sabe, na prática a teoria é outra.
Para instalar o backbone, Tadao teve até que negociar com traficantes para instalar centros de acesso à internet nas regiões controladas por eles, segundo um perfil no ICANN. O Comitê Gestor da Internet (CGI), que só seria fundado seis anos depois da RNP, conserva até hoje as atas das reuniões para acesso gratuito. Nessas atas a gente consegue entender algumas das dificuldades práticas da implementação do backbone pela RNP. Ata da reunião de 25 de outubro de 1995, realizada em Brasília com a presença de Demi, Tadao, Ivan Moura Campos e outros pioneiros da internet brasileira:
Dr. Tadao relatou que, a princípio, tudo corre bem no que se refere a equipamentos até aquele momento. Foram adquiridos equipamentos da IBM e da Cisco para os pontos de presença da RNP nos Estados. Os roteadores Cisco já estão sendo embarcados para os pontos de presença e os outros equipamentos para os pontos de presença, que são de origem IBM, já estão, parte embarcados e chegando ao Brasil e parte devendo chegar ao país em meados de novembro. Ainda no que se refere ao backbone RNP, Dr. Tadao relata ao Comitê sobre o problema da Região Norte que está sendo resolvido através de um Termo de Cooperação entre o MCT e o MMA. O MMA contratará linhas com a Embratel até a próxima semana e a tecnologia utilizada será a do VSAT, ligação via satélite, por problemas de acesso na região. O grande problema do backbone RNP, no momento, são as linhas de 2 megabits que foram contratadas da Embratel com prazo para entrar no ar até o início do mês passado e que até o dia de hoje não foram entregues à RNP e, o que é pior, a RNP não consegue, de forma nenhuma, previsões sobre datas para entrada no ar dessas linhas.
A estratégia da RNP para criar o backbone conectando o Brasil passou pela instalação dos Pontos de Presença (POP), onde a agência instalava roteadores e switchers para ajudar a manejar o tráfego de pacotes. Três anos depois da fundação da RNP, ou seja, em 1992, o backbone alcançava dez estados (todos do Sul, todos do Sudeste menos Espírito Santo, Pará, Ceará, Pernambuco e Bahia) mais o Distrito Federal. Todos eles tinham Pontos de Presença. A essa altura, a Bitnet já tinha dado lugar à internet que você está usando agora. “O Brasil se uniu à internet global em maio de 1992 com dois links internacionais estabelecidos por instituições acadêmicas durante a United Nations Conference on Environment and Development (UNCED), conhecido popularmente como Eco-92, no Rio de Janeiro”, explica o livro The internet in Brazil, escrito pelo pesquisador e professor Peter Knight.
O backbone não apenas concentrava as redes em uma única infraestrutura, mas também oferecia capacidade suficiente para que clientes comerciais, gente que nunca tinha colocado o pé em um laboratório ou centro de pesquisa, também pudessem usar a internet. Os serviços comerciais de internet no Brasil ainda eram incipientes. O que existia na época eram os provedores de BBS — se você quer entender o que eram BBS e como o Brasil se conectava nessa época, o Tecnocracia #49 conta a história usando seu personagem principal, o Mandic, como condutor.
O principal posto que o Tadao ocupa na memória do público, mesmo de quem entende de tecnologia e sabe mais ou menos essa história, é esse: o de articulador e construtor do primeiro backbone brasileiro. É uma lembrança justa, sim, mas não é a única. Há uma segunda contribuição enorme do Tadao à forma como a internet é organizada e usada no Brasil de que não se fala tanto. Foi uma contribuição não técnica, concentrada mais em mesas de reunião, de almoço ou jantar do que na bancada de um laboratório. E, junto ao Tadao, aparece aqui outra figura que você, mesmo versado em tecnologia, jamais vai adivinhar e eu estou confortável o suficiente para apostar meu braço.
Vamos lembrar que estamos na primeira metade da década de 1990. Além do Mr. M no Fantástico, da overdose de boys e girls bands e de uma Pakalolo em cada shopping 4, o Brasil tinha um mercado de telecomunicações totalmente estatizado. Para montar o backbone, Tadao e sua equipe gastaram muita saliva negociando com a Embratel, o braço da Telebrás responsável na época por conexões digitais 5. Àquela altura, já estava claro que havia uma demanda crescente pela internet fora dos círculos acadêmicos. Os provedores de BBS estavam crescendo imensamente liderados pelo Mandic, o mercado de computadores domésticos estava se aquecendo e fundos de investimento começavam a analisar possíveis negócios por aqui.
Quem ofereceria o serviço? Dentro do monopólio da Telebrás, detalhado no Tecnocracia #53, parecia muito claro que seria a Embratel, já dona única das redes. Em abril de 1975, a empresa “recebeu a incumbência de instalar e explorar uma rede nacional de transmissão de dados” por meio do decreto 301 do Ministério das Comunicações e, desde então, tinha o monopólio da área, segundo o livro Redes técnicas/redes sociais:a pré-história da Internet no Brasil, de Tamara Benakouche. Jogo jogado, em dezembro de 1994, a Embratel anunciou um serviço de internet comercial experimental que começaria em abril ou maio de 1995. O plano era concentrar esse acesso em uma estatal que já tinha nome.
Abre aspas para Jonas Gomes, que viu Tadao montar o RNP dentro do IMPA, relembrando a questão para o Brazil Journal: “Naquela época o setor de telecomunicações era completamente estatal, e a empresa responsável pela área de transmissão de dados era contrária à idéia de implementar no Brasil uma internet aberta, conforme já funcionava nos Estados Unidos e Europa. O projeto estatal consistia em construir um walled garden, obviamente estatal, que já tinha até nome: BRASNET”, relembra
Para Tadao, não parecia uma boa ideia concentrar o acesso à internet em uma estatal, ainda mais que, àquela altura, países europeus já estavam, no sentido contrário, quebrando seus monopólios de telecomunicações. Ele não estava sozinho nessa opinião. A maioria dos membros da sociedade civil concordava que o modelo estatal era um tiro no pé. Como detalha o Tecnocracia #53, havia uma pressão enorme do mercado e do próprio governo para tirar a Embratel da disputa e transformá-la em fornecedora para provedores privados. Quem também se juntou ao coro foi o sociólogo Herbert de Souza, conhecido como Betinho. Irmão do cartunista Henfil, responsável por alguns dos cartuns mais críticos à Ditadura Militar, Betinho ficou conhecido por criar e manter a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, ONG e projeto social para combater a fome no Brasil. Se você tem mais de 33 anos, é provável que se lembre de uma capa da Veja feita por Vik Muniz reproduzindo Betinho com grãos, uma ideia excelente para ilustrar um dos sujeitos que mais ferozmente combateu a fome na década de 1990.
Além da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, Betinho também tinha fundado outro projeto, mais próximo do assunto do episódio. Em 1981, ele, Marcos Arruda e Carlos Afonso (o CA) criaram o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). O Ibase sempre esteve interessado no uso de tecnologia — ali foi disponibilizado o Alternex, primeiro servidor de internet aberto ao público no Brasil, quando a internet comercial ainda estava a anos de distância. Pergunte à galera que acompanhou essa fase da tecnologia no Brasil. É bastante provável que você encontre alguns que já tiveram e-mails da Alternex.
Em 1994, Fernando Henrique Cardoso foi eleito presidente e indicou Sérgio Motta ao cargo de ministro das Comunicações. Motta foi o primeiro ministro a mostrar serviço: em fevereiro, apresentou a Emenda Constitucional 3, que regulamentava a quebra do monopólio das telecomunicações (de novo, Tecnocracia #53). Em abril, Betinho escreveu uma carta ao ministro pedindo um tempo para que conversassem e deixando claro que sua posição envolvia a “efetiva democratização do acesso e uso das redes no Brasil”.
Essa agenda veio um tempo depois quando Betinho, Motta, CA e Tadao se sentaram para jantar no restaurante Alcaparra, no Flamengo, Rio de Janeiro. No jantar, os três repetiram o discurso ao ministro, aqui recuperado pelo Demi: “‘Olha, queríamos de fato que as teles entrassem nessa área, mas não é assim que deveria ser. Na verdade, a Embratel devia oferecer internet por atacado para as teles, as teles ofereceriam para os provedores e os provedores ofereceriam ao usuário final. As teles também não entendem nada disso, elas não têm que entregar Internet para o usuário final, o que seria uma espécie de mini Embratel.’”
Nas palavras de CA, foi uma “‘operação’ de convencimento definitivo do ministro”. Funcionou. Motta se convenceu e, um mês após o jantar, o Ministério das Comunicações divulgou atos que instituíram o Comitê Gestor da Internet no Brasil (o CGI.br) e regularam quem poderia e quem não poderia oferecer conexões ao usuário final. A Norma nº 4/1995, aprovada pela Portaria nº 148 de 31 de maio de 1995, vetou a Embratel de oferecer diretamente serviços ao consumidor e abriu espaço para que provedores privados se organizassem para atender o consumidor, um modelo em vigor até agora. Há gente que conhece profundamente o setor que defende que o jantar no Alcaparra foi o momento que definiu a internet brasileira em um modelo aberto em vez de dependermos de uma internet estatal. Na comemoração dos 20 anos da internet comercial, a Folha de S.Paulo publicou uma entrevista com o então presidente da Embratel, Dilio Penedo, que aborda o lado estatal do veto.
Tadao personificava o perfil mais interessante ao meu ver: o sujeito com um impacto tremendo que, mesmo tendo toda razão, todo histórico para se gabar, prefere não fazê-lo. É o anti-Instagram, o anti-LinkedIn. Suas ações impactam diretamente a vida de mais de uma centena de milhão de brasileiros. Ainda assim, fora um grupinho que estuda o setor, era um ilustre desconhecido. Era e gostava muito de sê-lo. Rejeitou incontáveis entrevistas e convites por não gostar de aparecer.
Após a reunião com Betinho, CA e Sérgio Motta, Tadao ainda ficou mais um ano à frente da RNP. Saiu em 1996 para fundar o Programa Nacional para a Sociedade da Informação (SOCINFO). Pelos anos seguintes, virou membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (o CGI) e do comitê consultivo de membros da ICANN, a organização que controla o sistema de domínios e a alocação de blocos de IP. Em 1998, Tadao também fundou a representação brasileira da Internet Society, organização que trabalha globalmente para manter a internet aberta e acessível para todos.
Em 2008, ensaiou uma volta à gestão de tecnologia dentro do governo ao liderar o projeto de WiMax da então candidata Marta Suplicy à Prefeitura de São Paulo. Ali, teve que voltar a falar publicamente. Das entrevistas que deu, uma foi para mim. Explicou o projeto, dizendo que o parâmetro era um teste do Starbucks em Nova York. Para a execução, Tadao já tinha pedido “para fazer levantamento de prédios públicos em SP. São perto de 3 mil, (sendo) que cerca de 2 mil tinham alguma relação com cultura ou educação”. A ideia era instalar antenas nos prédios públicos para irradiar o sinal pela cidade. Para o plano dar certo, era preciso investir em infraestrutura, “roteadores, boosters para contornar geografia acidentada, PCs e equipamentos para um número X de telecentros que virarão suporte. O dinheiro maior acaba sendo o pinga-pinga para implementar a banda larga para os switches”. Para quem montou um backbone conectando o Brasil, o que eram os 3 mil pontos de acesso planejados cobrindo São Paulo? Marta perdeu a eleição, o projeto foi engavetado e o WiMax, anos depois, foi reconhecido como um fracasso comercial. A tecnologia que conectou cidades inteiras foi o 4G. Com a derrota de Marta, Tadao submergiu de novo.
Em 2017, seu nome foi indicado ao Hall da Fama da Internet. Foi o segundo brasileiro a fazê-lo. O primeiro tinha sido Demi três anos antes. Em seu discurso, Tadao colocou em palavras a careta que Demi ainda faz quando é chamado de “pai da internet”:
Existem mais de 300 pessoas que eu lembro individualmente e com quem eu trabalhei por 12 anos para instalar a internet no Brasil.
Tadao não estava errado. Mas quem toma a frente na execução destes planos de impacto gigantesco merece os louros, ainda que desconhecido do grande público. Tadao morava em Campinas (SP) quando, no dia 6 de abril, morreu aos 71 anos de complicações cardíacas.
Para retomar a história do começo, mesmo a figura mais conhecida da história da internet no Brasil não é exatamente uma celebridade. O que dirá do sujeito que executou o plano? Mesmo sem a projeção, dois grandes frutos do trabalho de Tadao seguem sendo usados diariamente por dezenas de milhões de brasileiros e nada indica que isso mudará no futuro. Se usamos tanto, é bom que saibamos quem foi o responsável por isso.
Veja o discurso de Tadao ao ser nomeado para o Hall da Fama da Internet, em 2017 (em inglês, mas com boas legendas em português geradas automaticamente):
Foto do topo: Ricardo Matsukawa/NIC.br.
Luciana Gimenez chamaria de “skill set”. ↩
Não descarte o fator Larry Ellison, um dos sujeitos mais excêntricos de um mercado cheio de sujeitos excêntricos. ↩
Eu vi ao vivo algumas vezes. Além de entrevistar e almoçar com o Demi algumas vezes, tenho o orgulho de tê-lo tido como membro reserva da minha banca do mestrado. ↩
Ia colocar inflação alta, mas infelizmente não é só mais uma lembrança dos anos 1990. ↩