Cientistas brasileiros obtiveram genoma do Sars-Cov-2 em apenas 48 horas, o que em outros países tem levado em média 15 dias. Em entrevista, médica fala sobre desenvolvimento de vacina e prevê transmissão em São Paulo.
Na última quarta-feira (26/02), quando foi confirmado o primeiro caso do novo coronavírus positivo no Brasil, uma equipe de cinco cientistas se reuniu no laboratório central do Instituto Adolfo Lutz, no bairro do Pacaembu, em São Paulo. O objetivo dos pesquisadores estava definido: realizar o sequenciamento genético da amostra de coronavírus coletada do primeiro brasileiro comprovadamente infectado, usando uma estrutura já montada para estudar o vírus da dengue.
"Nós já estávamos trabalhando no Adolfo Lutz, que é o laboratório que faz os testes diagnósticos e o desenvolvimento da tecnologia para pesquisas para a dengue. Então foi uma questão de mudarmos os agentes para trabalhar com o coronavírus", explica a médica imunologista Ester Cerdeira Sabino, pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
De São Paulo, os cientistas contaram com a colaboração remota de colegas britânicos, graças a uma parceria que já estava firmada com três universidades – Birminghan, Edinburgh e Oxford – como parte do Centre for Arbovirus Discovery, Diagnostics, Genomics and Epidemiology (Cadde).
Trata-se de um projeto criado há um ano para monitorar epidemias em tempo real, bancado meio a meio por duas instituições, cada uma aplicando o equivalente a 1 milhão de libras esterlinas para quatro anos de pesquisas – o equivalente a 5,7 milhões de reais. Do lado brasileiro, o investimento coube à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Do lado britânico, a fatura foi paga pelo Medical Research Council (MRC).
O diferencial, conforme explica Sabino, é justamente a possibilidade de chegar ao genoma enquanto a epidemia se desenvolve. Em casos anteriores, como na Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) de 2003, o sequenciamento só era realizado meses depois do estopim do problema.
Na última sexta-feira pela manhã, cerca de 48 horas depois do início dos trabalhos, a equipe brasileira concluiu o sequenciamento genético do novo coronavírus, batizado de Sars-Cov-2. O genoma foi publicado no fórum Virological.org, espaço que reúne especialistas em saúde pública de todo o mundo.
Integrante desse time de elite no combate ao coronavírus no Brasil, a coordenadora do Cadde, Ester Sabino, conversou com a DW Brasil sobre essa força-tarefa e a importância do investimento em pesquisas do tipo.
DW Brasil: O sequenciamento do coronavírus que chegou ao Brasil foi realizado em 48 horas, enquanto a média em outros países tem sido de 15 dias. Como pode ser explicada a rapidez do esforço brasileiro?
Ester Sabino: Nossa capacidade de sequenciar é rápida porque nós já estamos trabalhando no desenvolvimento desses testes e já estávamos montando a tecnologia para se fazer o sequenciamento em tempo real da epidemia de dengue. Então, [com a chegada do primeiro caso brasileiro de coronavírus] foi só modificar um pouco a técnica desenvolvida para podermos trabalhar com o coronavírus. E tudo foi rápido porque estamos trabalhando com uma rede de pesquisadores muito boa, com nossos colaboradores do Reino Unido. Com eles, o desenvolvimento e a análise dos dados têm sido muito mais eficientes. Dificilmente conseguiríamos fazer isso sozinhos.
Qual a importância de se realizar o sequenciamento do coronavírus?
É importante sequenciar, inicialmente, para saber como a epidemia está evoluindo e se os casos são autóctones ou importados. Com o sequenciamento genético a gente consegue entender isso. À medida que mais sequenciamentos são produzidos em outros lugares do mundo, esses dados ficam mais ricos, e é possível entender como o vírus é diverso. E isso auxilia no processo de desenvolvimento de uma vacina.
Já é possível entender quais as as diferenças do coronavírus ao redor do mundo? O vírus vem apresentando mutações?
Todos os vírus têm mutações. Estamos publicando os sequenciamentos em um site [Virological.org], e ali é possível olhar a diversidade os os grupos que estão contribuindo.
Como esse trabalho genético ajuda a compreender a disseminação do vírus?
O trabalho ajuda porque, com o tempo, quando mais sequências brasileiras forem depositadas, por exemplo, conseguiremos saber quando o vírus começou a circular no Brasil, deixando de ser apenas casos de pessoas que chegam de viagem. Isso vai acontecer, à medida que alguém chegar de viagem [contaminado], não perceber [que tem o vírus] e então… Estamos na expectativa de que logo a transmissão ocorra aqui na cidade de São Paulo.
Num momento em que há discursos colocando em descrédito a ciência brasileira, inclusive com cortes e ameaças de cortes em investimentos públicos para o desenvolvimento científico, como o trabalho de vocês pode ser visto para demonstrar a importância da ciência brasileira de qualidade e dos investimentos nela aplicados?
É muito triste ver esse descrédito da ciência brasileira. Eu acho que realmente é muito desalentador trabalhar com esse tipo de comentário, principalmente vindos de órgãos que fomentam a pesquisa a nível federal. Por sorte, nós, pesquisadores de São Paulo, temos a Fapesp. Mas nem sempre os pesquisadores de outros estados têm a oportunidade de ter o mesmo tipo de financiamento que a gente tem. E isso é muito ruim. Porque uma epidemia pode começar em qualquer lugar do país e a gente precisa ter pesquisador capaz de gerar dados em qualquer lugar.
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