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A Cidade On (São Carlos, SP)

Sequelas em pacientes recuperados podem persistir por longo período (58 notícias)

Publicado em 26 de julho de 2020

Por Eliane Comoli

Patologistas avaliam lesões nos tecidos e órgãos e auxiliam no tratamento de casos graves

Desde o primeiro caso oficial de Covid-19 na China em dezembro de 2019, pesquisadores buscam desvendar o mecanismo de ação do Sars-CoV-2 (novo coronavírus) que ataca diversos órgãos além dos pulmões e provoca alterações na circulação, podendo levar à morte não apenas por insuficiência pulmonar. 

O Serviço Nacional de Saúde de países em estágios mais avançados da pandemia, como o Reino Unido, acredita que diversas sequelas físicas, cognitivas e psicológicas devem persistir em pacientes da Covid-19, principalmente as respiratórias se seguirem os padrões de SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) e MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio).

Publicações recentes nas revistas científicas New England Journal of Medicine e Brain documentam os sintomas neurológicos em pacientes com Covid-19. Variam de simples dificuldades cognitivas à confusão mental, além de dor de cabeça, perda de olfato e formigamento, assim como encefalites, hemorragia, trombose, AVC isquêmico, mudanças necróticas e Síndrome de Guillain-Barré, condições neurológicas nem sempre correlacionadas com a severidade de sintomas respiratórios.  

As informações são do Jornal da Unicamp.

"O que mais impressionou os patologistas foram os sinais de isquemia e hipoxemia, mais que lesões inflamatórias. É extremamente intrigante e não sabemos porque o vírus causa tantos problemas neurológicos. A via olfatória é uma possível porta de entrada, mas não apenas ela justificaria os problemas psiquiátricos", explica Clarissa Lin Yasuda, neurologista do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Não foi detectado vírus no líquor em nenhum dos estudos mencionados. Clarissa comenta o caso de um paciente com quadro muito grave de perda de coordenação motora também com ausência do vírus nas imagens de ressonância magnética e no líquor. "Parece que os efeitos não ocorrem por ação direta do vírus e sim por mecanismos mais indiretos que fazem lesões no sistema nervoso. Não vimos muitos casos de encefalite específica ou necrotizante tão graves como os reportados nesses estudos e sim outras manifestações como a Síndrome de Guillain-Barré que podem evoluir para quadros muito graves", explica.

Patologistas avaliam lesões nos tecidos e órgãos e auxiliam no tratamento de casos graves. "Autópsias que realizamos nos últimos meses em pacientes diagnosticados com Covid-19 revelam que o vírus se espalha por vários órgãos como o coração e rins além dos pulmões e chega ao cérebro por meio do nervo olfatório", disse Paulo Saldiva, patologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), durante a Reunião Anual Virtual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 13 de julho. Segundo Paulo em muitos casos as alterações cardiovasculares acontecem mesmo quando o pulmão está mais preservado.

O comportamento do Sars-CoV-2 a longo prazo é um enigma preocupante. O vírus varicella-zóster que causa a catapora, por exemplo, pode ficar inativo na medula espinhal por anos e reativar em situação de imunidade baixa provocando a herpes-zóster (cobreiro). Clarissa comenta dois casos de pacientes já recuperados da Covid-19, desde abril, que voltaram a ter sintomas em julho quando testaram novamente positivos no RT-PCR, teste usado para análise da expressão gênica e quantificação do RNA viral. "Não estão com alterações neurológicas, mas com sintomas da Covid-19. Os infectologistas não sabem se eles se contaminaram novamente com o Sars-CoV-2 ou com outro vírus não detectado, ou se o Sars-CoV-2 ficou alojado no tecido. É impossível dizer pois não se sabe se as pessoas desenvolvem ou não imunidade a esse vírus", alerta a neurologista.

Apesar do impacto do Sars-CoV-2 nos pulmões ser precedente e assustador, impactos duradouros no sistema nervoso podem ser maiores e até mais avassaladores devido à difícil regeneração do tecido nervoso podendo resultar em incapacidades gerais já que o sistema nervoso coordena as funções do organismo como um todo.

No Brasil há mais de 1,6 milhão de recuperados da Covid-19. Em Campinas, segundo o último boletim epidemiológico divulgado na tarde desse sábado (25), 13.610 pessoas que foram infectadas pela doença já estão recuperadas.

O Sistema de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde aponta que 50% dos pacientes mais graves sobrevivem. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde) a chance de sequelas aumenta em pacientes graves que tiveram permanência prolongada em UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e necessidade de usar aparelhos respiradores. A recuperação pode levar de três a seis semanas ou mais.

Muitas podem ser as complicações pós-intubação decorrentes da intubação (respiração artificial) prolongada seguida de traqueostomia (procedimento que facilita a chegada de ar aos pulmões quando há obstruções), sendo os mais comuns danos laríngeos como lesões nas cordas vocais e estreitamento da laringe, e traumas nas vias aéreas. Podem causar prejuízos à vocalização, à respiração e à deglutição.

Luciana Castilho de Figueiredo, supervisora da fisioterapia da UTI do HC (Hospital de Clínicas) da Unicamp, enfatiza a necessidade de reabilitação multiprofissional e interdisciplinar dos pacientes pós-Covid-19 graves, envolvendo fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, nutricionistas e outros. "Sintomas como a perda de paladar e olfato já eram sinais de algo muito sério em relação ao hábito alimentar e agrava-se mais por causa da disfagia (dificuldade de engolir) decorrentes da intubação prolongada e traqueostomia". Alterações da deglutição não tratadas adequadamente; podem acarretar em desnutrição, desidratação, broncopneumonia e até levar à morte. "Falar e comer fazem parte de hábitos de felicidade, faz parte do que é digno para as pessoas", salienta a fisioterapeuta.

Processos embólicos podem ocorrer no desmame da ventilação mecânica ou devido à resposta inflamatória exagerada. Pequenos coágulos se desprendem e são transportados pelo sangue até vários órgãos onde podem obstruir vasos e impossibilitar a oxigenação das células. As consequências podem ser embolia pulmonar, tromboses, ataques cardíacos e AVC isquêmico (acidente vascular cerebral). "Um AVC isquêmico pode gerar uma infinita quantidade de comprometimentos como a paralisia de movimentos e perda da fala", enfatiza Luciana.

"Percebemos uma polineuropatia (distúrbio dos nervos) que aparece de forma muito aguda, rápida e grave englobando fraqueza muscular e perda muscular e da motricidade", comenta a fisioterapeuta. Pacientes menos graves estão manifestando desenvolvimento gradativo de sinais da polineuropatia: sensação de formigamento e dormência, dor semelhante à queimação e incapacidade de sentir vibrações ou a posição dos membros e das articulações. Foi o que relatou Alessandra Alday, 48 anos. "Há dois meses tive os primeiros sintomas da Covid-19 e ainda sinto fraqueza, dores musculares no corpo e forte indisposição, como uma fadiga crônica. Só depois vieram as sensações de formigamento e peso nas pernas. O médico suspeita de desordem neurológica periférica semelhante à Síndrome de Guillain-Barré", revela Alessandra que testou positivo para a doença em maio.

Luciana salienta que a intervenção fisioterapêutica tem um impacto muito grande na reabilitação do paciente Covid-19 grave. "Visa fazer o paciente reaprender a respirar sozinho de forma espontânea e segura, pois só assim ele poderá sair da UTI para a enfermaria. Auxilia na mobilização precoce ao longo da internação com finalidade de auxílio no deslocamento. Nas sequelas respiratórias persistentes e que não evoluírem para fibrose (substituição do tecido pulmonar funcional por tecido não funcional, cicatriz) acentuada com dependência de oxigênio, a fisioterapia na reabilitação cardiovascular que envolve uma adaptação fisiológica ao exercício é fundamental".  

POR QUANTO TEMPO

O cenário ainda é obscuro e será necessário o monitoramento das complicações nas vítimas da Covid-19. O HC-Unicamp avalia implementar um programa de telemedicina e telereabilitação. "O primeiro passo seria avaliar o prejuízo respiratório demonstrado pela fadiga na prova de função pulmonar, seguido de um programa de reabilitação individualizado em que o paciente pudesse receber um kit com um dispositivo de comunicação, um exercitador respiratório e um programa de atividade que ele possa fazer em casa", informa a fisioterapeuta.

Dados preliminares coletados pela neurologista Clarissa através de questionário on-line apontam que cerca de 67% dos pacientes recuperados da Covid-19 sem internação apresentam algum sintoma neurológico persistente: fadiga crônica (30%), problemas de memória (25%), perda de olfato (20%), dores de cabeça (15%) e perda de paladar (10%). Apenas 33% se consideram sem sintomas. "É muito grave dizer que apenas 33% se consideram saudáveis e sem sintomas, sendo que nenhum desses pacientes foi internado. Imagine a situação dos pacientes graves como será", enfatiza Clarissa.

O Laboratório de Neuroimagem do HC-Unicamp, associado ao Cepid Brainn (Instituto Brasileiro de Neurociência e Neurotecnologia vinculado ao programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão da Fapesp) realizará um estudo de ressonância magnética em pacientes com quadros neurológicos pós-Covid-19 e que tiveram alterações neurológicas na fase aguda, em pacientes com poucas alterações neurológicas ou apenas alterações do olfato e paladar, e nos assintomáticos do ponto de vista neurológico. "No processamento de imagem conseguimos detectar alterações cerebrais sutis. Minha hipótese é que o vírus poderia causar alterações estruturais ou mesmo da função cerebral, ou até algum grau de atrofia", explica a neurologista. O acompanhamento desses pacientes permitirá avaliar o impacto do Sars-CoV-2 no sistema nervoso a longo prazo.

Atualmente, o Brasil perdeu mais 82 mil brasileiros para a Covid-19 e há mais de 1,6 milhão de recuperados, dos quais boa parte poderá ainda precisar de cuidados médicos. "É difícil falar sobre as marcas da Covid-19. A quantidade de mortes é um impacto que não tem tamanho. O negacionismo da ciência e descuido com as vidas me impressiona. Senti tristeza, desânimo, medo de transmitir o vírus para a minha família, medo de morrer ou ter sequelas. Estou aprendendo uma nova forma de viver curtindo minhas flores e redescobrindo pequenas coisas que me dão alegria. A perspectiva de ressignificação me dá esperança. Aqui tem vida e ela está florescendo", refletiu esperançosa Alessandra Alday.  

*Com informações da Unicamp