Novas doenças, novas perspectivas, novas pandemias. O novo coronavírus sacudiu a economia, a indústria e, principalmente, a saúde pública. Milhares de casos a cada dia. Hospitais lotados. Agora aparecem os reflexos de médio e longo prazo: as sequelas da doença. Por ser um mal recente, os cientistas ainda avaliam como são os sintomas pós-doença.
Marconi Raphael Siqueira Rêgo, de 57 anos, cirurgião-dentista e professor universitário, sabe muito bem o que é isso. “As sequelas foram as debilidades respiratórias e motoras. Saí muito debilitado depois de 17 dias na uti. Nasci de novo. Fui muito bem tratado no hospital, com ventilação não invasiva, sem precisar ser entubado. Eles foram persistentes e não cheguei a ser entubado. Mas saí muito fragilizado do tratamento, como era de se esperar”, revela.
Marconni (foto) fez sua reabilitação no Ceir. Crédito: divulgação. As sequelas da doença fizeram com que ele procurasse o Centro Integrado de Reabilitação (Ceir). “Eu tive contato com indicações e fui a um posto de saúde saber como proceder. Então fui encaminhado para o serviço, daí fui para o Ceir. Fiz uma avaliação com vários exames e indicaram a fisioterapia, que era respiratória e motora para a recuperação desses dois problemas que desenvolvi”, lembra Marconi.
Marconi teve alta do Ceir no dia 29 de janiero. “Eu ainda devo continuar o tratamento com a prática de exercícios, alimentação saudável, evitar aglomerações e usar a máscara. A pandemia não acabou e já existem cepas novas que podem causar novas infecções. Até a própria gripe pode ser prejudicial. Nota 10 para o pessoal do Ceir. Eles foram muito bons comigo, toda a equipe. Não deixaram a desejar nenhum serviço particular ou público de qualquer lugar do Brasil”, considera.
Sequelas cognitivas
Além das sequelas já mencionadas por Marconi, até mesmo a cognição é afetada após a infecção com o vírus mais temidos dos últimos tempos. É o que explica Abel Barros Araújo, médico pneumologista responsável pelo atendimento pós-covid do Ceir. “As complicações mais comuns que temos acompanhado desses pacientes em fase pós-covid são: fraqueza muscular e falta de ar para realizar alguns esforços. Nós também temos observado alterações cognitivas como perda de memória, queixa de esquecimento, além de alterações de nervos periféricos, como dor ou dormência em extremidades, principalmente nos membros inferiores”, revela.
Membros inferiores, os mais afetados, em movimento. Crédito: divulgação. A covid também interfere no mecanismo de coagulação e trombose. “Há muitos casos relatados de acidente vascular cerebral em vigência da infecção ou após o quadro. Além disso, uma parte dos pacientes ainda permanecem por semanas ou meses com quadro de cansaço e falta de ar. A tosse também é comum, mesmo após o Covid-19. Ela persiste por algumas semanas”, acrescenta o médico.
Mais 140 pacientes preciseram de reabilitação no CEIR
Até hoje foram avaliados no Centro de Reabilitação, no serviço pós-Covid, pouco mais de 140 pacientes, dos quais 65 já se encontram em terapia de reabilitação, com acompanhamento da equipe multidisciplinar. “Temos enfermagem, fisioterapeuta, fonoaudióloga, nutricionista, psicóloga. Além das especialidades médicas em fisiatria, pneumologia, cardiologia e neurologia”, elenca Abel Barros Araújo.
Muita coisa ainda deve ser descoberta sobre a enfermidade. “Como se trata de uma doença nova não temos certeza de quais sequelas vão durar algum tempo e quais serão permanentes. Mas sintomas simples como fadiga, alterações de memória, tosse, cansaço e alterações de paladar, pelo menos oito de cada 10 pacientes apresentam um desses sintomas na fase de recuperação”, estima.
Até mesmo pacientes moderados apresentaram sintomas pós-doença. “Os casos graves, naturalmente, têm uma probabilidade maior de apresentação manifestações sequelares. Mas mesmo pacientes leves e moderados também persistem com sintomas de longo prazo. Tivemos pacientes com acometimento pulmonar de 50% a 80%, mas também temos pacientes com acometimento pulmonar de 25% e que também persistiram com as queixas”, estima o médico.
Quadro após Covid-19 do Piauí reforça estudo da Unicamp
Dados preliminares de um estudo conduzido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sugerem que a Covid-19 – mesmo nos casos leves – pode alterar o padrão de conectividade funcional do cérebro, causando uma espécie de “curto-circuito” no órgão. Os resultados preliminares reforçam a experiência relatada pelo médico Abel Barros Araújo no Ceir.
As conclusões relatadas se baseiam em exames de ressonância magnética funcional (com sequência de repouso) feitos em 86 voluntários que já haviam se curado da infecção há pelo menos dois meses. Os resultados foram comparados com os de 125 indivíduos que não tiveram a doença e serviram como controle..
Em entrevista à Agência Fapesp, Clarissa Yasuda, professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM-Unicamp) e integrante do Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia (BRAINN), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP, compara quadros pós-doença e saudáveis. “No cérebro normal, determinadas áreas estão sincronizadas durante uma atividade, enquanto outras estão em repouso. Já no caso desses indivíduos que tiveram Covid-19, notamos uma perda severa da especificidade das redes cerebrais. Tudo está conectado ao mesmo tempo e isso provavelmente leva o cérebro a gastar mais energia e trabalhar de forma menos eficiente”, conta.
Segundo Yasuda, ainda não se sabe de que modo o vírus causa essa alteração na conectividade cerebral, mas há algumas hipóteses a serem investigadas. “É possível que a infecção prejudique parte das redes neurais e, para compensar a falha no sinal, o cérebro ative outras redes simultaneamente. Essa hiperconectividade pode também ser uma tentativa do cérebro de restabelecer a comunicação nas áreas afetadas”, disse a pesquisadora.
Outra hipótese a ser estudada pelo grupo da Unicamp é se esse estado de disfunção cerebral tem relação com alguns dos sintomas tardios da Covid-19 relatados por diversos pacientes, como fadiga, sonolência diurna e alterações de memória e concentração. “Pretendemos comparar o funcionamento cerebral de pacientes que apresentam esses sintomas tardios com o de pessoas que se curaram da doença e ficaram sem sintomas. Se essa relação entre hiperconectividade e sintomas neuropsicológicos persistentes se confirmar, poderemos pensar em drogas e outros tratamentos capazes de amenizar o quadro”, conta Yasuda.
Alterações cerebrais
A pesquisa começou no segundo semestre de 2020, com um questionário on-line respondido por mais de 2 mil pessoas de todo o país. Foram incluídos apenas indivíduos com a doença confirmada por teste de RT-PCR, e aproximadamente 90% não precisaram de tratamento hospitalar (apenas tratamento domiciliar). Nessa fase, os participantes relataram os sintomas que estavam vivenciando cerca de dois meses após o diagnóstico. Os mais comuns foram fadiga/cansaço (53,5%), cefaleia (40,3%) e alteração de memória (37%).
Após seis meses, também por meio de questionário on-line, 642 participantes relataram ainda sofrer com os sintomas tardios da doença, entre eles fadiga/cansaço (59,5%), sonolência diurna (36,3%), alterações de memória (54,2%), dificuldade de concentração (47%) e para realizar as atividades diárias (23,5%). Além disso, 41,9% relataram sintomas de ansiedade – um percentual bem acima da média da população brasileira, que é em torno de 10%.
Parte dos voluntários foi avaliada presencialmente pelos pesquisadores e submetida a testes neuropsicológicos – para avaliar funções cognitivas como memória e atenção – e exames de ressonância magnética, que permitiram analisar de forma não invasiva tanto a substância cinzenta do cérebro (onde fica o corpo dos neurônios) como a chamada substância branca (onde ficam os axônios e células gliais). As avaliações foram feitas após o termino da fase aguda, em média 55 dias após o diagnóstico.
Já os exames de imagem revelaram que algumas regiões do córtex dos voluntários tinham espessura menor do que a média observada nos controles – entre elas áreas relacionadas com a ansiedade. Outras regiões apresentaram aumento de tamanho, o que pode estar relacionado com o inchaço decorrente da infecção. “Ajustamos os resultados dos testes neuropsicológicos de acordo com a idade, o sexo e a escolaridade do participante. Foi possível perceber que os indivíduos com sintomas tardios da Covid-19 tiveram um desempenho cognitivo abaixo do esperado. Eles se saem pior que a média dos indivíduos brasileiros em algumas tarefas”, revela Yasuda.