Além de provocar um elevado número de mortes, a pandemia de COVID-19 agravou desigualdades e fragilidades já existentes no continente americano. Por outro lado, acelerou o ritmo da pesquisa científica. Diante dos desafios impostos pela crise sanitária, governos, agências de fomento e academia tiveram de se organizar para rapidamente desenvolver respiradores e equipamentos de proteção individual, bem como readequar sistemas de saúde e testar medicamentos e vacinas.
Algumas dessas experiências estão sendo apresentadas numa série de três workshops organizada por FAPESP, Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología (Conacyt, do Paraguai) e Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas de la República Argentina (Conicet). A iniciativa, que tem como objetivos criar um espaço para os cientistas discutirem suas pesquisas com colegas de países vizinhos, fomentar a colaboração internacional e fortalecer as redes interagências nas Américas, foi concebida no âmbito do Global Research Council (GRC), órgão que reúne os chefes das principais agências de fomento à pesquisa do mundo.
No primeiro encontro, em 13 de outubro, foram debatidas pesquisas referentes aos sistemas de saúde. Os próximos, nos dias 10 e 11 de novembro, abordarão as estruturas de pesquisa e educação, respectivamente. As discussões são baseadas na Agenda de Pesquisa das Nações Unidas para a Recuperação pós COVID-19 (United Nations Research Roadmap for the COVID-19 Recovery).
“Autoridades da OMS [Organização Mundial de Saúde] observaram que a responsabilidade das agências de fomento na COVID-19 não foi suficientemente coordenada a tempo. Isso evidencia a necessidade de estabelecer laços mais fortes, que propiciem mecanismos e iniciativas de colaboração em todas as regiões. E é justamente a interação entre as necessidades regionais e globais que vão além da presente crise da COVID-19 que queremos discutir entre os colegas cientistas das Américas”, afirmou Luiz Eugênio Mello, diretor científico da FAPESP, na abertura do workshop.
A experiência chilena no enfrentamento ao novo coronavírus foi apresentada por Alexis M. Kalergis, diretor do Instituto Milenio en Inmunología e Inmunoterapia e professor da Universidad Católica de Chile. Segundo ele, a pandemia mostrou o quanto é importante os países serem autônomos na produção de imunizantes. “Na América Latina, apenas Argentina, Brasil, Cuba e México produzem vacinas. No Chile, estamos começando um projeto para também produzi-las”, disse.
No país andino, uma antiga parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac para a compra de imunizantes contra a hepatite favoreceu as negociações e amalgamou a aquisição da CoronaVac. A antecedência na contratação de vacinas foi essencial para que o Chile obtivesse uma taxa de mais de 88% de sua população completamente imunizada – uma das mais altas do mundo.
Kalergis contou que foi criado um consórcio, envolvendo governo e academia, para avaliação das vacinas. “A realização de testes de fase 3 no Chile, para o desenvolvimento da CoronaVac, nos permitiu a publicação de três artigos científicos e a transferência de tecnologia para o país. Também pudemos fazer pesquisas importantes sobre a efetividade da vacina no mundo real [e contrastar com os resultados obtidos nos estudos de fase 3]. Além disso, começamos uma pesquisa que permitiu a aprovação do uso da vacina em crianças [de 6 meses a 16 anos]”, contou.
Angelica Jimenez de Samudio, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nacional de Assunção, informou que no Paraguai foi feito um grande estudo multicêntrico – o maior já conduzido no país – para comprovar a ineficácia de medicamentos como ivermectina e hidroxicloroquina.
Já a experiência brasileira foi apresentada por André Brunoni, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) que coordenou um levantamento sobre saúde mental durante a pandemia. O trabalho foi realizado na capital paulista, com 2.117 funcionários e aposentados da USP entre 50 e 80 anos de idade. Os participantes integram um estudo nacional, conhecido como ELSA Brasil, que monitora a saúde de 15 mil funcionários públicos de seis universidades e centros de pesquisa do país desde 2008. O estudo teve apoio da FAPESP e buscou comparar o estado mental dessa população antes e durante a pandemia, tanto em indivíduos saudáveis quanto em portadores de ansiedade e depressão (leia mais em: agencia.fapesp.br/35932/).
“Não encontramos diferença na prevalência de transtornos mentais antes e depois da pandemia. Houve, na verdade, queda nos sintomas. No entanto, um grupo específico dos pesquisados, que corresponde a quase 50% da coorte, apresentou aumento. Como se trata de um processo dinâmico, acreditamos que talvez esses índices mudem ao longo dos anos”, disse Brunoni.
Sistemas de saúde
Os avanços no sistema de saúde argentino foram apresentados por Silvia Kochen, diretora da Unidad de Neurociencias y Sistemas Complejos (Enys) e do Centro de Epilepsia no Hospital Ramos Mejía. Ela contou que foi criada uma rede com informações sobre a disponibilidade de leitos nos hospitais da região de Buenos Aires e também sobre pacientes hospitalizados por COVID-19.
“Isso trouxe agilidade, possibilitou obter dados sobre a evolução da doença e permitiu identificar problemas no sistema de saúde. Na Argentina, assim como no Brasil e em outros países da América Latina, o sistema de saúde público é robusto, embora tenha problemas. A pandemia mostrou a importância de reforçá-los”, opinou.
Cesar Munayco, diretor do Centro Nacional de Epidemiología, Prevención y Control de Enfermedades do Peru, contou que os pesquisadores de seu país anteveem a chegada de uma epidemia de anemia infantil como um dos desdobramentos da COVID-19. Cerca de 40% das crianças peruanas sofrem com o problema nutricional – prevalência considerada alta. Para Munayco, o problema foi a redução da suplementação com ferro durante a pandemia.
“Isso significa que teremos um grande problema no futuro próximo. Precisamos entender qual será o impacto disso na vida das pessoas e no sistema de saúde. No momento ainda estamos focados em lidar com a pressão que a COVID-19 causou no sistema de saúde, mas essa não é a única doença que temos de enfrentar”, disse
De acordo com Munayco, em seu país há uma grande preocupação com pessoas portadoras de fatores de risco – como obesidade, hipertensão, diabetes e outras doenças crônicas – que não tiveram acesso aos sistemas de saúde durante a emergência sanitária. “As portas dos hospitais se fecharam para elas. Agora estamos realizando um estudo sobre determinantes sociais de saúde e o impacto das desigualdades. A ideia é utilizar essas informações no enfrentamento de futuras pandemias”, contou.
Já no México, também muito afetado pela COVID-19, a união entre centros de saúde, academia e um órgão do Estado possibilitou que o país desenvolvesse os primeiros ventiladores mecânicos nacionais em tempo recorde.
“Logo no começo da pandemia listamos soluções que poderíamos desenvolver em até três meses. No caso do sensor de temperatura corporal, dos ventiladores mecânicos, dos equipamentos de proteção individual e dos testes conseguimos trabalhar em conjunto com a indústria, governo e hospitais, conseguindo desenvolver esses insumos de forma rápida”, disse Israel Mejia, diretor do Centro de Ingeniería y Desarrollo Industrial (Cidesi, México).
Para assistir a íntegra do primeiro encontro da série "Americas’ Regional Scientific Webinars on COVID-19" acesse: www.youtube.com/watch?v=7zmrIajJQTc&t=8s.
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Fonte: Agência FAPESP