A citação está num artigo de Ronald Crelinsten, professor e pesquisador canadense que desde a década de 1970 se dedica a temas como terrorismo e graves violações dos direitos humanos: “Como Pieter Kooijmans, ex-relator especial das Nações Unidas para questões de tortura, assinalou em seu relatório de 1992, devemos estar conscientes de que a tortura é apenas o elo final de uma longa cadeia. As sementes da tortura são plantadas sempre que a sociedade tolera situações nas quais o respeito à dignidade humana dos cidadãos não seja encarado a sério”.
A citação é a epígrafe utilizada por Nancy Cardia e Fernando Salla, respectivamente coordenadora adjunta e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, em seu artigo “Um panorama da tortura no Brasil”, um dos textos que compõem o volume Tortura na Era dos Direitos Humanos, que teve sessão de lançamento na quarta-feira da semana passada, dia 12.
O livro – organizado por Nancy Cardia e Roberta Astolfi e publicado pela Editora da USP (Edusp), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) – reúne as discussões de um seminário internacional sobre o tema promovido pelo NEV. Pesquisadores de diversos países traçaram um painel da utilização da tortura ao longo da história, além de descrever a analisar a continuidade da prática nas mais distintas latitudes em nossos dias. “Proibida pela Constituição de 1988 e tipificada como crime em 1997 através da lei nº 9.455, a tortura ainda é muito presente no Brasil”, atestam Nancy e Salla. “Historicamente, no Brasil, suspeitos da prática de crimes comuns e pessoas cumprindo penas frequentemente foram submetidos à tortura, à revelia do tipo de pena.”
Os autores apontam que no século 20 houve dois momentos, em regimes autoritários (o Estado Novo, de 1937 a 1945, e a ditadura militar, de 1964 a 1985), “que ampliaram o uso dessas práticas para os presos políticos, dissidentes e/ou opositores desses regimes”. “Nesses dois momentos, o uso da tortura pelas polícias civil e política ou pelo exército provocou profundo repúdio ao chegar ao conhecimento de parte do público. Porém, com a retomada da normalidade democrática, tanto em 1946 como em 1985, a tortura que vitimara as elites foi ‘esquecida’, enquanto a tortura rotineira, que continua a vitimar os suspeitos de crimes comuns pertencentes às camadas mais pobres da população, seguiu o mesmo caminho”, salientam.
Às vésperas da data em que a sociedade brasileira se prepara para lembrar os 50 anos do golpe que resultou na ditadura militar, é oportuno registrar, como fazem os pesquisadores, que a anistia pactuada para o retorno à democracia, em 1985, garantiu que os torturadores não fossem processados e punidos, “em troca do não processo de opositores do antigo regime”. Assim, ressaltam Nancy e Salla, “não houve punição e, como consequência, não foi dado um sinal claro à sociedade de que essas práticas não só eram moralmente condenáveis, mas configuravam crimes que deveriam ser severamente punidos”.
O artigo também levanta algumas alternativas para explicar a longevidade da prática da tortura no Brasil, mesmo com as iniciativas tomadas para tentar combatê-la. Entre elas estão a percepção de que a tortura é um meio eficiente para obter informações de suspeitos de crimes; o medo exacerbado de ser vítima da violência; a exclusão do sistema de proteção e garantias legais dos suspeitos de delinquirem; e o conluio entre autoridades e agentes que praticam a tortura, “apoiados pela presença de valores, dentro de nossa sociedade, que promovem a aceitação dessas práticas”.
Impunidade – A herança trágica legada ao Brasil pela ditadura é também analisada no artigo “Mecânica do interrogatório político”, de Mariana Joffily, pós-doutora em História e professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Mariana apresenta o funcionamento do sistema do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna), criado pelo regime para a repressão. Enquanto o Codi coordenava e planejava as ações, ao DOI – cuja sigla evoca propositalmente dor – cabia a sua execução, apoiada essencialmente sobre um tripé: captura ou sequestro de suspeitos de atividades políticas de esquerda, interrogatório sob tortura e análise de informações obtidas em documentos apreendidos. A tortura, afirma a autora, citando a pesquisadora Claudia Card, “não se manifesta como uma das facetas da luta entre adversários equivalentes, mas representa a plena realização do exercício do poder do vencedor sobre o vencido”.
Para Mariana Joffily, essa atuação deixou marcas profundas no modo de agir e na mentalidade da polícia – marcas que estão longe de ser superadas. “Do ponto de vista operacional, ressaltaria uma tradição já antiga na polícia brasileira de sobrevalorizar o interrogatório como procedimento e a confissão – extorquida por meios coercitivos – como evidência, em detrimento de outras técnicas investigativas e categorias de prova”, escreve. “Ao criar e reestruturar órgãos de informação e repressão, o governo militar fez mais do que instrumentalizar um saber disperso nas delegacias de polícia espalhadas pelo Brasil: ele organizou, promoveu, chancelou e premiou o uso sistemático da tortura. O processo de transição para a democracia, ao manter a impunidade dos torturadores e de seus facilitadores e ao não enfrentar o grande problema da concentração de renda no País, realizou-se de maneira superficial, assentando-se essencialmente na democracia formal. Nesse sentido, enquanto persistirem os altos índices de iniquidade social em todos os campos, a garantia dos direitos humanos não passará de utopia.”
“Guerra ao terror” – Vários artigos do livro abordam o novo cenário global que emergiu a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, levando até à chamada “guerra ao terror”. No artigo “Tortura light e a normalização da tortura”, Jessica Wolfendale, professora da Universidade da West Virginia, nos Estados Unidos, lembra que a partir de então “a expressão ‘tortura light’ tem aparecido em discursos públicos sobre tortura e tem sido utilizada por jornalistas, equipes de inteligência militar e acadêmicos em discussões sobre a justificativa do recurso à tortura na luta contra o terrorismo”.
Artimanhas semânticas levam a que expressões como “tortura light”, “métodos avançados de interrogatório” e “métodos coercitivos” passem a ser utilizadas para fazer a distinção entre dois tipos. De um lado, haveria a tortura, “violenta, com mutilação física, cruel e brutal”. De outro, a tortura light, “que se refere a métodos de interrogatório – como privação do sono por longos períodos, bombardeamento com ruídos, longos períodos em que as vítimas são forçadas a ficar em pé e manipulação de calor e frio – supostamente menos graves, mais comedidos e menos violentos, do ponto de vista físico, do que a tortura real”.
No entanto, ressalta Jessica, apesar da frequência com que a expressão é utilizada, “a distinção entre tortura e tortura light não é reconhecida por nenhuma das convenções internacionais que tratam do assunto, nem há referência direta à distinção que é feita nas convenções internacionais entre tortura e tratamento cruel, desumano e degradante”. O uso de tais expressões, salienta, “permite que o emprego desses métodos seja mais amplamente aceito pelo público em geral, o que de outra forma não aconteceria – uma consideração importante para democracias liberais cuja legitimidade depende do apoio público”.
Se, numa democracia liberal, o recurso à tortura ameaçaria o compromisso fundamental de estabelecer a separação entre lei e brutalidade, o que justificaria o seu uso? Para a autora, uma das respostas para que esse compromisso não se torne incompatível está na aceitação da tortura “com o propósito de reunir informações para impedir uma grave ameaça ao Estado” – ou seja, para evitar “um mal maior”.
“As democracias liberais – incluindo Estados Unidos, Reino Unido, Israel e França – utilizaram a tortura contra aqueles que consideravam seus inimigos, tanto no presente como no passado”, escreve a professora. “A óbvia discrepância entre, de um lado, o compromisso público de proteger a dignidade do indivíduo e, de outro, o uso da tortura, exige uma justificativa. Quando as democracias liberais recorrem à tortura, seu uso deve parecer justificado de uma forma que separe a tortura de sua tradicional associação com a tirania e a repressão, para que não entre em conflito evidente com os compromissos do regime democrático liberal.”
Motivos ocultos – Para Henry Shue, professor da Universidade de Oxford, no Reino Unido, desde a aprovação da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em dezembro de 1984 – ratificada pelo Brasil em 1989 –, “esforços persistentes vêm sendo empreendidos pelo governo dos Estados Unidos no intuito de negar ou relativizar a parte da definição de tortura que se refere a dores e sofrimentos mentais”.
O artigo 1º do texto designa tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa”. A convenção foi incorporada à legislação federal norte-americana pelo Estatuto da Tortura, de 1994, e pela Lei de Crimes de Guerra, de 1996 – mas “ardilezas semânticas” foram incorporadas à Lei de Comissões Militares, de 2006, “que acrescentou inserções significativamente equivocadas aos estatutos referentes a crimes de guerra”, aponta Shue em seu artigo “A tortura secreta: subjugando o espírito”. Para o autor, essas “considerações aberrantes” representam uma distorção do entendimento do que seja a tortura a tal ponto que levantam suspeitas “de que motivos ocultos tenham orientado – e ainda orientem – as ações nessa área da política dos Estados Unidos”.
Henry Shue não debita essas distorções apenas à administração de George W. Bush e de seu vice, Dick Cheney (de 2001 a 2009). Para o autor, elas “têm sido o posicionamento consistente do governo norte-americano já há duas décadas, passando por quatro presidentes, inclusive o democrata Bill Clinton em seus oito anos de mandato”. E o professor conclui: “A legislação dos Estados Unidos não faz nada para proteger-nos contra dores e sofrimentos mentais – o tipo de tortura que as agências norte-americanas com maior probabilidade usarão contra nós”.
Tortura na Era dos Direitos Humanos, de Nancy Cardia e Roberta Astolfi (organizadoras), Edusp, 480 páginas, R$ 67,00.
Prática é um sistema, alerta pesquisadora
Martha K. Huggins, professora da Universidade de Tulane, nos Estados Unidos, é autora de mais de 30 trabalhos sobre a violência do Estado. Pelo menos dois deles estão publicados no Brasil: Polícia e Política – Relações Estados Unidos e América Latina (Cortez) e Operários da Violência – Policiais torturadores e assassinos reconstroem as atrocidades brasileiras, em coautoria com Mika Haritos-Fatouros e Philip Zimbardo (Editora da UnB). Em seu artigo “Tortura em dez lições”, a professora afirma que o que aprendeu em seu trabalho a respeito da tortura na ditadura brasileira e em sua experiência como pesquisadora visitante do NEV da USP, em 1991, “constituíram uma base sólida para a compreensão da dinâmica estrutural e interpessoal da tortura em Guantánamo e em Abu Ghraib” – centros de detenção utilizados pelos Estados Unidos na “guerra ao terror”.
“Após 30 anos de pesquisa sociológica sobre a violência do Estado, incluindo extensas entrevistas com policiais torturadores brasileiros e o estudo das instituições policiais brasileira e norte-americana, estou segura de que meu modelo ‘tortura em dez lições’ permite prever tal violência em locais de detenção e em locais secretos de interrogatório”, afirma. Entre os dez elementos que caracterizam esses sistemas, Martha aponta a denominação enganosa (o uso de subterfúgios para evitar a palavra tortura); as ideologias de segurança nacional (o discurso de que nações “boas” são ameaçadas por “praticantes do mal”); a divisão do trabalho e consequente diluição das responsabilidades; e a impunidade generalizada.
A tortura é um sistema, e não meramente o ato de uma personalidade originalmente sádica ou patológica, sustenta a pesquisadora. Suas engrenagens incluem pelo menos quatro categorias de atores: os perpetradores, os facilitadores, os espectadores e os sistemas organizacionais/burocráticos. Portanto, rotular os perpetradores (os que praticam as agressões) como “atípicos”, “sádicos” ou “maçãs podres” protege contra punições as instâncias superiores – exatamente aquelas que legitimam a tortura. Os perpetradores diretos, ressalta Martha, “são os elementos menos importantes do sistema”, porque podem ser facilmente substituídos por decisão daqueles que, em suas posições invisíveis, comandam as engrenagens.
“A tortura está enraizada no que o sociólogo Émile Durkheim chamou de aspectos normais – ou seja, rotineiros – da vida social”, alerta Martha Huggins. “Os criminólogos não compreenderão a tortura se presumirem que pessoas originalmente ‘más’ causam coisas ruins. Os criminólogos precisam fazer a questão da tortura passar de teorias de organização social ‘disfuncional’ para teorias que explicam a operação de uma ‘organização social normal’ dentro de certas configurações político-econômicas.”