No ano passado, o curso de pós-graduação do Hospital do Câncer, em São Paulo, após minuciosa avaliação entre 181 cursos de ensino médico no país. recebeu nota 6, numa escala de 0 a 7, da Fundação Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão ligado ao Ministério da Educação. O conceito foi o maior já conferido para um centro de formação especializada e, no período avaliado (de 1998 a 2000), foi o único em câncer. Assim que recebeu a boa notícia, o diretor do hospital, Eduardo Brentani, na 12 anos no cargo, voltou-se para os profissionais responsáveis pela área e, em vez de parabenizá-los, deu-lhes uma bronca em tom amistoso: "Por que não tiramos 7?"
A frase, muito mais do que uma brincadeira, revela a constante preocupação do hospital em se firmar como centro de excelência em câncer. Título que, aliás, já conquistou em âmbito nacional e, a passos largos, caminha para granjear também na comunidade internacional. "São quase 50 anos concentrando esforços no atendimento de qualidade à população, ensino e pesquisa em câncer", diz Brentani.
A nota da Capes vem premiar a luta que o hospital tem empreendido ao longo dos anos para - em resumo - tornar o câncer uma doença passível de ser controlada. Neste sentido, é investindo seriamente no tripé a que se refere Brentani - atendimento clínico, formação de profissional especializado e intensa produção científica - que o Hospital do Câncer tem conseguido se projetar. Na instituição, localizada na região central da capital paulistana, estes pontos costumam ser tratados com o mesmo empenho. Talvez esteja aí uma das explicações para o fato de a unidade estar se consolidando cada vez mais como uma referência no setor.
Para o leigo, esta diferenciação pode ser sentida em detalhes. O primeiro deles, assim que se cruza a porta de entrada do prédio principal do Hospital do Câncer. A ausência de eufemismos pode até assustar à primeira vista o visitante desavisado. Um capacho logo na entrada traz a marca da instituição e dissipa todas as dúvidas: ali se fala de câncer sem rodeios. Os doentes sabem muito bem por que estão ali e quais as armas de que dispõem para enfrentar seu problema.
No logotipo, que pode ser visto em diversas situações dentro do prédio, a palavra hospital estampa, na letra O, um sorriso estilizado. Otimismo estranho para um lugar que trata de uma das doenças mais estigmatizadas dos últimos tempos: há cerca de 20 anos, muitas pessoas nem ousavam pronunciar o termo câncer e se referiam ao hospital apenas como A. C. Camargo, nome do patrono. Era uma forma de mostrar o quão inadequada seria uma instituição que falasse claramente sobre um tema considerado tão penoso.
Hoje a conduta é justamente oposta: o hospital não quer dar margem a meias palavras e o nome do professor A. C. Camargo aparece em letras discretas embaixo da palavra câncer.
Estes novos ares que invadiram a unidade estão fundamentados em números bem concretos. Dos 5.500 novos casos que o hospital diagnostica e trata a cada ano, o índice de cura é de 66%, segundo o diretor Ricardo Brentani. Entre crianças e adolescentes, este número pode chegar a 73% e entre portadores de leucemia - doença que acomete em sua maioria indivíduos jovens - ultrapassa a marca dos 80%.
Os dados poderiam ser ainda mais surpreendentes caso os vários tipos de câncer fossem diagnosticados precocemente. Em estágio inicial, ressalta o oncologista Brentani, 90% dos tumores malignos podem ser curados se tratados de maneira adequada.
De toda forma, são estes alguns dos parâmetros que fazem hoje do Hospital do Câncer uma referência internacional no combate à doença. Nos quesitos ensino e pesquisa, a unidade médica não fica atrás. Os trabalhos de ponta são desenvolvidos na filial brasileira do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer - instituição internacional sediada na Suíça e com dez braços espalhados pelo mundo -, que opera no Brasil ligada ao Hospital do Câncer.
Os programas de pós-graduação, iniciados em 1997, são fruto da estreita interação entre o centro de atendimento médico paulistano e o Ludwig.
Segundo o diretor da área, o biólogo molecular Luiz Fernando Lima Reis, a intensa produção científica transformou o perfil do Hospital do Câncer. "Nos últimos quatro anos. ele deixou de ser apenas um local para onde convergem doentes para se transformar num importante referencial de pesquisa."
Reis corrobora sua afirmação com números: de acordo com ele, apenas no ano passado, cientistas do Ludwig publicaram 81 trabalhos em revistas especializadas internacionais.
Como outro exemplo do nível de excelência que alcançou o Hospital do Câncer, o biólogo cita o fato de ele ter sido escolhido, em 2000, pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, para se tornar um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid). A seleção foi feita entre 112 instituições que realizam pesquisas de ponta. No final, dez unidades foram escolhidas, mas, mais uma vez, o hospital brilhou sozinho na área de câncer.
O programa Cepid, explica Reis, é a primeira linha de financiamento a longo prazo do país que confere autonomia aos centros de pesquisa para desenvolverem suas atividades sem depender da análise prévia por agências especializadas.
Até 2011, por conta do Cepid, serão destinados ao hospital R$ 20 milhões. Com estes recursos, o sendo desenvolvidos novos projetos que buscam aprimorar o diagnóstico do câncer e as técnicas de tratamento.
Prevenção, ensino e difusão de informações a respeito da doença também estão incluídos no pacote e são uma constante preocupação do Hospital do Câncer. Uma inquietação tão presente que o diretor clínico da instituição, Daniel Deheinzelin. costuma apregoar que os profissionais do hospital trabalham para fechá-lo, tamanha aposta que faz na cura do câncer.
Seu entusiasmo tem por base a mudança de mentalidade que a informação qualificada tem conseguido, aos poucos, operar na população - embora neste ponto ainda se reconheça que há muito para ser feito.
Segundo dados do próprio hospital, 60% do pacientes que lá dão entrada chegam ao local com tumores em estágios avançados ou com seqüelas de tratamentos inadequados.
Da mudança deste quadro depende a salvação de muitas vidas, segundo os especialistas, que acreditam em transformações a médio prazo.
De acordo com o oncologista Brentani, pelo andar das pesquisas, pela maior disseminação de informações corretas, pela melhora na capacidade de atendimento aos doentes e pela alta qualificação dos profissionais que diagnosticam e tratam a doença, o câncer está condenado a se tomar uma moléstia controlável - numa visão extremamente otimista, ele arrisca dizer que, a longo prazo, está praticamente fadado a desaparecer.
Novos métodos de detecção de rumores, aliados a drogas cada vez mais potentes e menos tóxicas, são os pontos que garantem melhores chances de cura e maior qualidade de vida ao paciente com câncer.
Por outro lado. cada vez mais estudos apontam para formas avançadas de se evitar o surgimento de tumores malignos - uma realidade até bem pouco tempo impensável e que vem ganhando força com o andamento do Projeto Genoma. Financiado pela Fapesp e pelo Instituto Ludwig. o projeto brasileiro chegou à marca, em 2000, de 1,1 milhão de seqüências genéticas identificadas em metade do tempo previsto. De acordo com Brentani, é a segunda maior contribuição de um país para a pesquisa, atrás apenas dos Estados Unidos.
A harmoniosa parceria entre o hospital e os centros de pesquisa e ensino é a chave para o sucesso do Projeto Genoma Brasileiro, conforme Brentani. É entre os pacientes atendidos pelo Hospital do Câncer - ainda em sua grande maioria via o Sistema Único de Saúde (SUS) - que os pesquisadores do Ludwig encontram matéria-prima qualificada para tocar seus estudos.
Todo esse esforço valeu ao Hospital do Câncer o título de principal fornecedor mundial de fragmentos de tumores para o Projeto Genoma. A distinção foi conferida pelo Nacional Câncer Institute. um dos mais importantes organismos de pesquisa do mundo, localizado nos Estados Unidos.
Em contrapartida, como forma de recompensar o hospital, o Ludwig aplica nos doentes, em primeira mão, os resultados obtidos em suas investigações, conferindo-lhes um tratamento diferenciado e altamente especializado.
Os maiores beneficiados, a médio e longo prazo, têm sido os portadores de câncer de pele, como os melanomas, tumores na boca, estômago, tireóide e mama, áreas em que os estudos têm se concentrado no país.
O seqüenciamento genético destes diversos tipos de câncer contribui para decifrar suas estruturas básicas e. dessa forma, acenar com novas saídas terapêuticas, além de inovar nos métodos diagnósticos e nas maneiras de prevenir a doença.
Outro diferencial que colabora para tomar o Hospital do Câncer um centro de excelência está na qualidade das informações a respeito dos pacientes. Por cinco anos seguidos - período crítico para a recidiva de um tumor - os doentes que dão entrada no hospital são acompanhados em detalhes. Todas as informações a respeito dos casos ficam à disposição do Serviço de Arquivo Médico (Same) e lá permanecem para que sejam feitos estudos minuciosos sobre o desenvolvimento dos tumores.
Segundo Brentani, existem dados ali que remontam à fundação do hospital, ocorrida em 1953, e a organização do serviço permite que quase a totalidade dos casos - cerca de 90% - recebam este tipo de acompanhamento. Ao todo, o Same contém 310 mil prontuários médicos, informações preciosas para estudiosos de câncer.
Ainda nesta linha, o hospital também conta com o respaldo do Banco de Tumores, único do gênero no país. Neste grande arquivo estão armazenadas mais de 2 mil amostras de fragmentos.
Para que todas estas distinções não sejam apartadas do cotidiano do paciente. Brentani assegura que os profissionais do Hospital do Câncer trabalham sempre no sentido de garantir o máximo de informações sobre o tumor que aflige o doente e de discutir com ele as diversas formas de tratamento da doença.
Por tudo isso, quem passa pelo Hospital do Câncer, na saída, ao observar mais uma vez o logotipo, leva uma certeza: a letra O não sorri à toa.
COMPETÊNCIA E FALA MANSA
Entre tantos departamentos relevantes no Hospital do Câncer, um ganha destaque especial, segundo o próprio diretor da instituição, Ricardo Brentani. Trata-se do setor destinado aos estudos de tumores que acometem cabeça e pescoço, comandado pelo cirurgião Luiz Paulo Kowalski, um paranaense modesto, de fala mansa e com "jeito de padre", como Brentani gosta de se referir ao colega.
"Na minha opinião, ele é o melhor do mundo na sua área", diz o diretor do hospital. A avaliação é compartilhada por alguns outros especialistas no assunto. Em 2000, Kowalski foi condecorado, durante a 5ª Conferência Internacional de Câncer de Cabeça e Pescoço, com o prêmio Presidential Citations - o primeiro concedido a um brasileiro pela American Medical Association.
Tamanha deferência não se deu à toa. No Projeto Genoma do Câncer, graças ao esforço do grupo, o Brasil aparece como o país que contribuiu com o maior número de seqüências genéticas de tumores de cabeça e pescoço: cerca de 200 mil comparados a apenas 5 mil do segundo colocado, os EUA.
Na prática, isso quer dizer que o Hospital do Câncer detém a maioria das informações sobre tumores de cabeça e pescoço. Para o paciente, significa que a instituição está entre as mais habilitadas do mundo para tratar esta forma de câncer.
No ano passado, outra demonstração do reconhecimento pelo trabalho de qualidade desenvolvido no departamento dirigido por Kowalski: o Hospital do Câncer foi escolhido pelo National Câncer Institute, sediado nos Estados Unidos, para ser um dos centros mundiais de tratamento de câncer de boca.
Pesquisadores do Brasil decidirão em conjunto com cientistas de outros centros também selecionados - Holanda, Cingapura, Índia e Estados Unidos - linhas de pesquisa e opções terapêuticas disponíveis.
"O Brasil ocupa hoje o 4º lugar em número de casos de câncer de boca no mundo", diz Kowalski. A doença, explica, está associada principalmente ao consumo de álcool e cigarro e ao descaso com a saúde bucal. De acordo com o oncologista, são as impurezas presentes no álcool que o tornam um importante fator de risco para a doença. "Em um país onde se consome muita cachaça de baixa qualidade, aliada aos outros fatores, a incidência deste tipo de câncer não poderia ser pequena", explica.
A doença, no entanto, é de fácil prevenção - assim como seria o câncer como um todo se alguns cuidados básicos fossem observados. Ir regularmente ao dentista e fazer o auto-exame bucal são alguns deles, alerta. Evitar o cigarro, se alimentar de maneira saudável, com ênfase no consumo de frutas e verduras, não se expor ao sol de forma exagerada e sem proteção, beber com moderação e visitar periodicamente o ginecologista e o urologista, além de não praticar sexo sem preservativo são algumas das medidas que ajudam a afastar o risco de câncer em vários órgãos.
"Cerca de 70% dos casos da doença poderiam ser evitados com a mudança de hábitos", afirma Kowalski. Entre estes, de acordo com dados divulgados pelo hospital, o cigarro é o principal a ser banido, pois ele responde por pelo menos 35% dos casos de câncer. Já o álcool, por 15%, seguido da exposição ao sol, por 10%, e da contaminação por vírus e bactérias, também por 10%. No restante dos casos estão os tumores por fatores hereditários e os que ainda não têm suas causas conhecidas pela ciência - estes últimos, a maioria entre as duas classificações.
Claro que a dificuldade em se chegar rapidamente a um diagnóstico acaba por complicar a evolução dos tumores. Neste sentido, especificamente em relação ao câncer de boca, o oncologista Kowalski se ressente da falta de qualificação dos profissionais que assistem com mais regularidade as pessoas, como os dentistas. "Se eles fossem mais bem preparados, muitos doentes teriam uma perspectiva melhor de cura quando dessem entrada no Hospital do Câncer."
Ele acredita que, embora a situação ainda seja precária, a tendência é de melhora progressiva. "O Brasil já possui vários centros capazes de tratar o câncer, seja por meio de cirurgia ou radioterapia", afirma Kowalski. O que falta é, sem dúvida, mais investimento em treinamento de pessoal.
Outro ponto positivo é que, paulatinamente, o país vai se armando com uma nova cultura em relação à doença. "Já há, de forma geral, uma mentalidade mais voltada para o câncer."
Isso não significa uma atitude alarmista em relação à doença, mas sim positiva no sentido de combater precocemente o mal, investindo na disseminação de informações corretas, conscientização sobre os fatores de risco, diagnóstico precoce e prevenção. Tudo isso aliado às pesquisas de ponta constitui a base do otimismo de Brentrani, que arrisca dizer que num futuro não tão distante o câncer será uma doença rara.
Notícia
Gazeta Mercantil