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Saúde reprodutiva em jovens com lúpus (1 notícias)

Publicado em 06 de abril de 2015

Por Clovis Artur Almeida da Silva

Cerca de 20% de todas as crianças e adolescentes têm uma doença crônica. O reconhecimento precoce e tratamentos específicos têm melhorado o prognóstico e muitas sobrevivem.

Esse quadro, porém, pode trazer impacto à saúde reprodutiva dos adolescentes. Atraso puberal e do desenvolvimento sexual, infertilidade, disfunção sexual e infecções urogenitais são bem reconhecidos nos adolescentes e jovens adultos de ambos os gêneros com doenças crônicas.

As causas são multifatoriais e se devem à própria doença, medicamentos (como glicocorticoides, imunossupressores e agentes biológicos) ou complicações associadas (tais como síndrome dos ovários policísticos, endometriose, varicocele e malformações congênitas).

Nos últimos 15 anos, nosso grupo vem estudando a saúde reprodutiva de adolescentes e jovens com doenças crônicas, em especial nas doenças reumatológicas autoimunes, com apoio de várias agências de fomento (Fapesp, CNPq e Federico Foundation, da Suíça). Esses estudos têm sido realizados na Unidade de Reumatologia Pediátrica do Instituto da Criança (ICr) e na Disciplina de Reumatologia, em parceria com o Centro de Reprodução Humana, Departamento de Ginecologia e Obstetrícia e Disciplina de Urologia da Faculdade de Medicina da USP.

Um atraso da menarca foi evidenciado em adolescentes com lúpus eritematoso sistêmico (LES) em comparação com controles. A média da idade da menarca das pacientes com LES (13,5 ± 1,4 anos) foi significativamente maior do que a encontrada em 2.578 adolescentes brasileiras saudáveis (12,5 ± 1,3 anos). Esse atraso foi correlacionado com a duração da doença e a dose cumulativa de prednisona.

Além disso, estudos multicêntricos transversais avaliaram cerca de 300 adolescentes do gênero feminino com LES, acompanhados em 12 Serviços de Reumatologia Pediátrica em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia. Amenorreia foi observada em 12% das pacientes e associada com atividade do LES, com regressão dessa alteração menstrual após o controle da doença. Outro estudo demonstrou que 8% das adolescentes com LES tiveram gravidez indesejada, com idade precoce de início de atividade sexual e alta taxa de abortamento precoce.

Estudos longitudinais para avaliar a reserva ovariana foram também realizados em adolescentes e jovens do gênero feminino com LES. Insuficiência ovariana primária não foi identificada prospectivamente em nenhuma paciente com LES. Entretanto, mesmo pacientes com ciclos menstruais regulares tiveram diminuição da reserva ovariana. Essa redução da população de folículos ovarianos foi associada à utilização de doses elevadas de metotrexate, assim como uso de ciclofosfamida independente da dose utilizada. Um outro aspecto estudado foi a autoimunidade, e constatou-se que a ooforite autoimune não foi um fator relevante de diminuição da reserva ovariana nessas pacientes.

Recentemente, um estudo duplo-cego placebo e randomizado realizado em conjunto com os Estados Unidos e o Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP demonstrou que a triptorelina foi segura e eficaz para proteção ovariana em adolescentes com LES que utilizaram ciclofosfamida para controle de nefrite e envolvimento neuropsiquiátrico do lúpus. A triptorelina determinou uma supressão ovariana completa durante a administração da ciclofosfamida, sugerindo um fator protetor na população de folículos ovarianos.

Outro aspecto importante da saúde reprodutiva são inflamações e infecções ginecológicas. Citologia cervical com padrão inflamatório foi evidenciada em 50% das adolescentes com LES que ainda não haviam iniciado atividade sexual, indicando que o trato genital feminino pode ser um órgão alvo da doença. Candidíase vaginal foi evidenciada em 14% das pacientes.

Essa infecção foi associada ao uso de imunossupressores e dose alta de prednisona. Além disso, condiloma acuminado foi identificado em 1,4% das adolescentes com LES, reforçando a necessidade da vacinação contra o papilomavírus humano (HPV) em todas as pacientes com LES entre 9 e 26 anos. De fato, estudos recentes evidenciam que a vacina do HPV foi segura e eficaz nessas pacientes.

Com relação ao gênero masculino, os jovens com LES apresentaram alterações significativas dos espermatozoides e disfunção das células testiculares de Sertoli, entre outros sintomas. Essas alterações foram associadas à utilização de ciclofosfamida, mesmo cinco anos após a utilização, indicando lesão testicular permanente e necessidade de criopreservação dos espermatozoides antes do uso desse imunossupressor.

Anticorpos antiespermatozoides foram evidenciados em 40% dos homens com LES. Entretanto, orquite autoimune não foi um fator importante na infertilidade desses pacientes. Doenças genéticas associadas à infertilidade foram também pesquisadas. Síndrome de Klinefelter (46XY/47XXY) foi diagnosticada em 4% dos pacientes com LES e microdeleção do cromossoma Y foi ausente em todos.

Outro aspecto relevante foi que os pacientes com LES tiveram uma redução do tamanho do pênis, sem relação com disfunção sexual. Esse aspecto foi distinto do observado em um subgrupo de pacientes com trombose autoimune (conhecida como síndrome antifosfolípide, SAF).

Os homens com SAF tiveram redução do tamanho do pênis e disfunção erétil, sem história prévia de trombose peniana, sugerindo microangiopatia trombótica subclínica em vasos do corpo cavernoso peniano.

A infertilidade e a disfunção sexual podem afetar a qualidade de vida relacionada à saúde desses pacientes e seus cuidadores, e é um preditor de estresse nas relações atuais e futuras. Assim, o atendimento ao jovem paciente com LES deve ser individualizado e incluir: discussão dos aspectos da sexualidade e contracepção, prevenção das DST (doenças sexualmente transmissíveis), conscientização dos riscos da doença e dos medicamentos sobre a sua fertilidade e priorizar fertilizaçãoin vitro em alguns casos.

Clovis Artur Almeida da Silva é professor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP

Artigo publicado originalmente no Jornal da FFM, publicado pela Fundação Faculdade de Medicina, número 77 (de janeiro e fevereiro de 2015), página 3.