Saúde pública é questão estratégica para o Brasil. Esta frase está presente em 100% dos discursos proferidos em qualquer canto deste país. Aparece nos editoriais, nas academias, nas promessas dos candidatos. Enfim, é uma unanimidade em termos de retórica. Mas entre o discurso e a prática existem anos-luz de diferença.
O que encontramos pelo Brasil adentro é uma população em meio à miséria, sem educação, sem condições decentes de habitação e assolada pelas mais variadas doenças da pobreza: dengue, malária, leishmaniose, doença de Chagas, esquistossomose, filariose. Basta ler os jornais diariamente para tomarmos ciência das taxas crescentes de incidência dessas enfermidades, do surgimento de novas doenças e do recrudescimento de outras. Principalmente de males específicos de países em desenvolvimento onde as pessoas convivem em ambientes quase inabitáveis.
Para reverter este quadro, é fundamental o investimento em novas drogas e terapias para o controle e erradicação de doenças endêmicas típicas de países pobres. Os recursos não devem ser oriundos somente do setor público. O empresariado nacional também deve investir na área. Devemos aproveitar ao máximo a nossa rica diversidade biológica e os conhecimentos acumulados pelos cientistas das universidades e instituições de pesquisa. As atividades de investigação e desenvolvimento tecnológico devem ser realizadas através da parceria entre a academia e as empresas. Esperar unicamente pela transferência de tecnologia do exterior é aprofundar a crise existente, mesmo em tempos de economias globalizadas.
A exploração de nosso patrimônio genético poderá ser a grande saída no futuro próximo para os mais variados problemas de saúde. Explorar significa mapear os recursos genéticos, estudá-los, conhecer as suas propriedades e aplicações e usá-los de forma racional e equilibrada. Mas, antes de tudo, devemos regulamentar o acesso a tais recursos.
Nos últimos trinta anos, as pesquisas biotecnológicas evoluíram de maneira extraordinária. São corriqueiras as pesquisas sobre o genoma de plantas e animais, utilização de fungos com propriedades terapêuticas, desenvolvimento da tecnologia do DNA recombinante, aperfeiçoamento de técnicas de conservação "ex situ" de materiais biológicos. São muitas as possibilidades de exploração comercial não só da biodiversidade mas também do conhecimento das populações indígenas sobre o uso e a preservação das espécies. Dessa forma, faz-se urgente e necessária a existência de uma legislação para regular o acesso à biodiversidade. Só assim poderão ser evitados abusos que levem à destruição das florestas tropicais.
Considera-se como marco inicial das discussões sobre problemas ecológicos a Conferência de 1972 sobre Meio Ambiente, em Estocolmo. Vinte anos depois foi realizada na cidade do Rio de Janeiro a II Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED-92). Na ocasião foi elaborada a Convenção sobre Diversidade Biológica. O Brasil ratificou este acordo, mas sua regulamentação ainda está pendente. Tramita no Senado Federal o projeto de lei n° 306, de 1995, que trata da questão, de autoria da senadora Marina Silva (PT-AC).
Infelizmente o assunto ainda não ganhou da mídia a atenção devida. É mister que se iniciem os debates envolvendo todos os segmentos interessados: o setor acadêmico, a classe empresarial, o governo, as sociedades científicas, as organizações não-governamentais, os políticos, a imprensa e a sociedade em geral.
Por outro lado, é necessário estimular a formação de recursos humanos voltados para o estudo da flora e da fauna brasileiras. O País carece de mais pesquisadores dedicados a projetos de novos medicamentos. É preciso também um maior aporte de verbas para a compra de equipamentos, para a construção de novos laboratórios, especialmente aqueles relacionados à triagem ("screening") de plantas medicinais e produtos naturais, bem como para a reforma e adequação das antigas instalações às novas exigências de qualidade e de biossegurança. Além disso, as instituições acadêmicas brasileiras têm de estar permanentemente atentas aos projetos desenvolvidos por seus pesquisadores, tanto no País como no exterior. Deve ser avaliado se os projetos inovadores merecem proteção por meio de patentes. Não podemos mais permitir que haja apropriação indevida de pesquisas realizadas com recursos genéticos e financeiros nacionais.
A solução para a saúde pública brasileira não é simples nem fácil. O tratamento adequado à tecnologia é apenas um aspecto desta intrincada matéria, mas se for realizado já é um grande passo. Todos sabemos que a saúde merece tratamento prioritário. E todos devemos reunir esforços para amenizar a atual situação. É uma questão de direitos da cidadania, ainda que estes andem banalizados nos dias atuais. O problema da saúde pública é na verdade uma doença crônica que devasta a nossa emergente nação.
* Presidente do Comitê Coordenador de Doenças Tropicais da Organização Mundial de Saúde (OMS) e vice-presidente de Pesquisa e Ambiente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
** Pesquisadora da Coordenação de Gestão da Fiocruz.
Notícia
Gazeta Mercantil