Um estudo coordenado por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e divulgado na plataforma medRxiv traz novas evidências de que o vírus SARS-CoV-2 é capaz de infectar e de se replicar no interior de linfócitos, podendo levar essas células de defesa à morte e comprometer ao menos temporariamente o sistema imunológico.
Segundo os autores, o novo coronavírus atua por um mecanismo semelhante ao do HIV, causador da Aids. Os dois afetam um tipo de linfócito conhecido como T CD4, que é responsável por coordenar a chamada resposta imune adaptativa – auxiliando tanto os linfócitos B a produzirem anticorpos como os linfócitos T CD8 – responsáveis por reconhecer e matar células infectadas – a se proliferarem. Essa coordenação se dá por meio da liberação de moléculas sinalizadoras conhecidas como citocinas.
“Nossos resultados sugerem que, em alguns pacientes, o novo coronavírus pode causar um quadro de imunodeficiência aguda não apenas porque mata parte dos linfócitos T CD4, mas também porque prejudica a função dessas células. Isso faz com que os linfócitos T CD8 se proliferem menos e os linfócitos B produzam anticorpos com menor afinidade e duração. Seria um efeito semelhante ao do HIV, só que agudo”, explica à Agência FAPESP Alessandro Farias , chefe do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, que coordenou a investigação ao lado do professor Marcelo Mori .
As conclusões do artigo, ainda em processo de revisão por pares, estão baseadas principalmente em experimentos com culturas primárias de linfócitos (isolados do sangue de voluntários não infectados e de pacientes com COVID-19) conduzidos no Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve) do IB-Unicamp, com apoio da FAPESP.
Na primeira etapa da pesquisa, os pesquisadores incubaram células de doadores saudáveis com o SARS-CoV-2 e acompanharam o que acontecia nas 24 horas seguintes por meio de diferentes técnicas, como hibridização in situ, microscopia eletrônica de transmissão e RT-PCR (a mesma usada para diagnosticar a infecção na fase aguda).
“Fizemos esse ensaio apenas com linfócitos T CD4 e T CD8 por serem os tipos mais diminuídos nos pacientes com COVID-19 grave. As análises confirmaram a presença do novo coronavírus no interior de aproximadamente 40% dos T CD4, sendo que 10% dessas células morreram ao final do período de observação. Os linfócitos T CD8 não foram afetados”, conta Farias.
Os pesquisadores observaram ainda que a carga viral mais do que dobrou entre as medições feitas duas e 24 horas após o início do teste – sinal de que o vírus estava se replicando nas células em cultura.
O passo seguinte foi analisar com as mesmas ferramentas os linfócitos T CD4 isolados de pacientes diagnosticados com COVID-19 em busca de sinais do SARS-CoV-2. Nas pessoas que apresentavam quadros moderados da doença foram encontrados poucos linfócitos infectados e eles estavam produzindo, como era esperado, a citocina interferon-gama (IFN-?) – importante para a resposta antiviral. Já nos pacientes graves, além de haver um número muito maior de linfócitos com o vírus, as células estavam produzindo no lugar da IFN-? a interleucina-10 (IL-10), uma citocina com ação anti-inflamatória. Ou seja, nesses doentes com COVID-19 severa, os linfócitos T CD4 estavam sinalizando para o sistema imune a necessidade de frear o combate ao vírus.
Segundo Farias, isso explicaria por que muitas pessoas nessa condição apresentam alterações na resposta imune adaptativa (aquela que é específica para cada patógeno), como linfopenia (redução na concentração geral de linfócitos no sangue), exaustão de células T e produção comprometida de anticorpos.
“A produção de IL-10 desliga o sistema imune e permite ao vírus permanecer mais tempo no organismo. Por enquanto ainda não é possível saber o que é causa e o que é consequência, ou seja, se esses pacientes evoluíram para a forma grave porque tinham mais linfócitos T CD4 infectados ou o contrário. Mas há uma clara associação entre esses dois fatores”, afirma Farias.