Gustavo Fernandes, do Sítio Vale das Cabras, e Lilian de Castro Lacerda, do Sítio Pimenta Rosa, são pequenos produtores na área rural de Campinas, interior de São Paulo. Conscientes da relevância de uma descarbonização cada vez maior da agricultura, eles são adeptos e praticantes do sistema agroflorestal, um modelo de uso e ocupação do solo que associa o plantio de árvores com culturas agrícolas ou forrageiras.
Os dois proprietários rurais são exemplos de produtores em território paulista que estão utilizando práticas favoráveis à progressiva descarbonização da agricultura, como relevante contribuição ao cada vez mais urgente enfrentamento das mudanças climáticas. Em maio de 2022, de acordo com dados da agência climática norte-americana NOAA, foi superado o limite de 420 partes por milhão de dióxido de carbono equivalente na atmosfera. Antes da era industrial, a média durante milênios foi de 280 partes por milhão.
A presença cada vez maior de carbono na atmosfera é a principal causa do aquecimento global, motor das mudanças do clima que têm provocado situações extremas de seca, enchentes ou outras catástrofes em todas as regiões do planeta. De acordo com o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), que funciona no âmbito das Nações Unidas, é fundamental acelerar as medidas de redução das emissões de gases que alimentam o aquecimento global. São basicamente gases resultantes da queima de combustíveis fósseis como petróleo, carvão e gás. Além disso, o IPCC alerta que é essencial intensificar, igualmente, a retirada de carbono já acumulado na atmosfera.
As estimativas são de que desde 1990 foram emitidas mais de 900 bilhões de toneladas métricas de CO2 equivalente, o que é muito mais do que vários séculos precedentes. Práticas agrícolas mais apropriadas, de acordo com vários pesquisadores ouvidos pela Agência Social de Notícias, são parte importante do equacionamento desse gigantesco desafio coletivo, um dos maiores que a humanidade enfrenta no momento.
Diante da crise climática cada vez mais intensa e inegável, têm sido multiplicadas as iniciativas pela descarbonização da agricultura. São várias ações que, conjugadas, apontam para o avanço da descarbonização do setor no estado, como consequência da alta densidade de centros de pesquisa e tecnologia situados em território paulista e da iniciativa de produtores rurais, ao lado das políticas públicas que começam a dar resultados. A descarbonização da agricultura definitivamente entrou na agenda prioritária dos setores público e privado em São Paulo, em sintonia com as demandas de transição energética, para a qual o setor produtivo paulista, e em particular o sucroalcooleiro, já vinha contribuindo há anos.
O governo de São Paulo, por exemplo, está atento aos imperativos da descarbonização e transição energética, como condições essenciais para o enfrentamento das mudanças climáticas em curso e com impactos globais. No dia 22 de junho de 2023, o governo de Tarcísio de Freitas anunciou um pacote de R$ 500 milhões, a serem destinados através do Desenvolve SP, para financiar projetos de descarbonização de municípios e de inovação por startups e outros empreendedores.
Os créditos também serão utilizados no financiamento de projetos de produção de biogás, a partir de resíduos agrícolas, em particular aqueles originários do setor sucroenergético, que o governo paulista denomina de “Pré-Sal Caipira”. “Uma medida relevante dentro da iniciativa de melhoria do ambiente regulatório é a criação do Comitê Técnico de Descarbonização da Economia Paulista, no âmbito do Conselho Estadual de Política Energética, composto por representantes das iniciativas público e privada. A secretaria coordena as ações com o intuito de conferir governança e previsibilidade aos objetivos perseguidos de descarbonização”, afirmou a secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, Natália Resende, no momento de lançamento do pacote.
MAIS DA METADE DAS EMISSÕES EM SÃO PAULO DERIVA DO SETOR ENERGÉTICO O setor de energia responde por 53% das emissões de gases de efeito estufa (GEE) no estado de São Paulo, ao contrário do que ocorre no Brasil como um todo, em que o setor responde por 18% das emissões. O contrário é visto nos setores de agropecuária e mudança do uso da terra. Esses dois setores, somados, respondem por 33% das emissões de GEE em território paulista, contra 74% no Brasil como um todo. Juntos, os setores de agropecuária e mudança do uso da terra, por exemplo com o desmatamento, lideram de longe o montante das emissões no Brasil, que foram de 2,42 bilhões de toneladas brutas de CO2 equivalente em 2021, um aumento de 12,2% em relação a 2020 (2,16 bilhões de toneladas).
Os dados são do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), uma base de dados lançada em 2012, para atender a uma determinação da Política Nacional de Mudanças Climáticas (PNMC), e que a partir de 2013 foi incorporada ao Observatório do Clima. O SEEG (seeg.eco.br) foi a primeira iniciativa nacional de produção de estimativas anuais para toda a economia e depois de dez edições se tornou uma das maiores bases de dados nacionais sobre emissões de gases estufa do mundo, abrangendo as emissões brasileiras de cinco setores (Agropecuária, Energia, Mudança de Uso da Terra, Processos Industriais e Resíduos).
De acordo com a edição referente aos dados de 2021, a mais recente do SEEG, naquele ano foram emitidas no estado de São Paulo 156,7 milhões de toneladas de CO2 equivalente. Com isso, São Paulo, que tem cerca de 22% da população brasileira e 2,9% do território nacional, foi o quarto estado no ranking de emissores, com 6,5% das emissões brutas e 4,8% das emissões líquidas.
Também segundo o SEEG do Observatório do Clima, os setores da agropecuária e mudança no uso da terra em São Paulo emitiram, respectivamente, 36 e 16 milhões de toneladas de CO2 equivalente em 2021. O levantamento do SEEG mostra que as emissões pela agropecuária paulista têm-se mantido mais ou menos estáveis desde o início da década de 1990, ao contrário do setor de energia, que dobrou suas emissões em 30 anos.
No setor da agropecuária paulista, de acordo com o SEEG, o gado de corte foi responsável pela emissão de 18 milhões de toneladas em 2021. Trata-se de metade das emissões do setor naquele ano, quando o plantio de cana emitiu 2 milhões de toneladas e o gado de leite, 3 milhões de toneladas de CO2 equivalente.
NeuTroPec: descarbonização na pecuária paulista – Iniciativas em descarbonização avançam no setor da pecuária, responsável pela maior parte das emissões de gases de efeito estufa no âmbito da agropecuária no estado de São Paulo, segundo o SEEG do Observatório do Clima. No dia 27 de setembro de 2023, na abertura da 60ª Expo Rio Preto, em São José do Rio Preto, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo lançou o Centro de Ciência para o Desenvolvimento da Neutralidade Climática da Pecuária de Corte em Regiões Tropicais, o NeuTroPec.
O NeuTroPec será estruturado e funcionará com um investimento de R$ 20 milhões e deriva de uma parceria entre o governo de São Paulo e a iniciativa privada. O novo Centro será instalado na Unidade de Pesquisa do Instituto de Zootecnia, em São José do Rio Preto. A sua missão será a de mensurar as emissões de Gases do Efeito Estufa e formular estratégias de mitigação em sistemas de produção de bovinos de corte, visando o desenvolvimento de tecnologias e sua transferência para a cadeia produtiva.
“O NeuTroPec tem a missão primordial de atingir a neutralidade do carbono nos sistemas de criação de bovinos de corte, harmonizando a sustentabilidade, a segurança alimentar, o bem-estar animal e o compromisso com o meio ambiente”, evidenciou o secretário executivo da Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo, Guilherme Piai, no evento de lançamento do novo Centro de pesquisa.
A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) destinará metade dos recursos para a estruturação do NeuTroPec e a outra metade será alocada, no período de cinco anos, pelas empresas parceiras DSM, SILVATEAM, ALLTECH e JBS. Os recursos públicos e da iniciativa privada já resultaram no primeiro projeto desenvolvido pelo NeuTroPec em estruturação.
Depois de monitorar por seis meses os animais em confinamento da JBS em Guaiçara (SP), pesquisadores do Instituto de Zootecnia, já atuando no âmbito do NeuTroPec, chegaram à conclusão de que a mescla de taninos e saponinas como aditivo alimentar na nutrição do gado contribuiu para evitar a emissão de 30 mil toneladas de dióxido de carbono equivalente. A redução é equivalente a 17% das emissões de metano pelo gado confinado. O estudo foi feito com o suporte da JBS em parceria com a italiana Silvateam. Os taninos são compostos químicos naturais presentes em cascas, sementes, folhas e frutos de plantas.
Plantio pelo sistema de agrofloresta no Sítio Vale das Cabras
DAR ESCALA PARA PRÁTICAS QUE JÁ EXISTEM É O DESAFIO NA AGRICULTURA Gerente da Iniciativa de Clima e Emissões do Imaflora, organização que integra o Observatório do Clima, Isabel Drigo assinala que “o principal desafio para a descarbonização da agropecuária brasileira é dar escala para as práticas que já reduzem as emissões de gases de efeito estufa tanto na agricultura como na pecuária”. Ela complementa: “O Brasil tem essas práticas bem descritas. Alguns produtores já aplicam essas práticas, como o plantio direto na soja, o manejo das pastagens para que elas sejam vigorosas e garantam a cobertura e saúde do solo, a gestão da alimentação animal para que emita menos metano. Tudo isso já existe como prática, mas ainda tem muitos agricultores e pecuaristas que não aplicam essas técnicas. Então é preciso assistência técnica, incentivo de dinheiro mesmo via crédito para que muitos agricultores rapidamente implementem essas práticas e reduzam as emissões de seu sistema produtivo e melhorem a produtividade, porque isso também ajuda a reduzir as emissões”.
Posição semelhante tem o agrônomo Afonso Peche Filho, pesquisador científico do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). “Um grande desafio para a descarbonização é que as práticas sejam internalizadas pelos pequenos e médios produtores rurais. E é preciso que haja uma mudança conceitual. O carbono ainda não é considerado como um produto para grande parte dos agricultores. O foco continua sendo no produto que eles cultivam. Então é importante que a questão do carbono também seja introduzida na extensão rural, na assistência técnica aos produtores, para que eles vejam a importância da gestão do carbono e que podem se beneficiar com uma gestão adequada”, afirma Afonso Peche Filho.
Produtores na área rural de Campinas, Gustavo Fernandes, do Sítio Vale das Cabras, e Lilian de Castro Lacerda, do Sítio Pimenta Rosa, comprovam a viabilidade de práticas de descarbonização na agricultura, mesmo em pequenas propriedades. Ambos praticam o sistema agroflorestal, que de acordo com os especialistas é um dos mais adequados modelos de gestão para promover a captura de carbono, ao mesmo tempo em que também contribui para a preservação da biodiversidade.
Formado em Direito, Gustavo Fernandes mudou-se com a família há oito anos para o Sítio Vale das Cabras, na zona rural e mais precisamente na Área de Proteção Ambiental (APA) de Campinas. “Desde o início a ideia seria desenvolver uma agricultura ecológica, com práticas sustentáveis, para a produção de alimentos, visando a comercialização”, ele explica.
As práticas sustentáveis, continua, são fundamentais considerando o estado de boa parte do território da APA de Campinas, que foi criada em 2001 pela Lei Municipal nº 10.850. Com uma área de 223 quilômetros quadrados, a APA equivale a cerca de um quarto do município e é onde estão as maiores áreas de matas nativas remanescentes de Campinas. A APA foi criada justamente com o propósito de ocupação ordenada de seu território sensível em termos ambientais e que vinha passando por sérios riscos. “Boa parcela da APA é de áreas degradadas, que não cumprem serviços ecológicos pois não produzem água, não protegem a biodiversidade e desgastam o solo. Com isso, muitas pessoas acabam migrando para a zona urbana”, diz Gustavo Fernandes.
Ele conta que foi então introduzida a agricultura orgânica no Sítio Vale das Cabras, onde inicialmente foram plantadas hortaliças. Novo direcionamento foi dado, prossegue o produtor rural, quando ele conheceu o movimento global Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA). Trata-se de um modelo agrícola que valoriza o contato direto com o consumidor. “O objetivo é fortalecer a economia local e consolidar laços entre os produtores rurais e consumidores, que passam a receber alimentos saudáveis e variados durante o ano todo”, afirma Gustavo Fernandes, que fornece, assim, mensalmente, uma cesta de hortaliças, folhas, temperos, raízes e legumes a dezenas de famílias de Campinas.
Há quatro anos, um novo salto foi dado nas práticas utilizadas no Sítio Vale das Cabras, com a introdução do sistema agroflorestal. “Me identifiquei totalmente com esse sistema, vi que ele fazia muito sentido para o que nós buscávamos em termos de uma agricultura sustentável. No mesmo canteiro, plantas árvores, hortaliças e frutas, visando a produção de alimentos e, no futuro, de madeira”, resume o produtor.
Gustavo que o plantio de árvores e a sua manutenção “resulta na produção de matéria orgânica que alimenta e renova o solo, evitando-se a sua perda, além de contribuir para a produção de água”. Essa prática, complementa, evita o uso de aportes externos, cuja produção implica no uso intensivo de carbono, e também contribui para a captura direta do carbono, através da fotossíntese.
O proprietário do Sítio Vale das Cabras nota ser visíveis os resultados positivos da adoção do sistema agroflorestal e, agora, a prática está sendo ampliada, em função da parceria com uma fazenda também situada na APA de Campinas. “Estamos implantando o sistema agroflorestal em uma área dessa fazenda, que é originária do ciclo do café e que também já importante produtora de leite”, conta Gustavo Fernandes. Ele também está animado com outra frente aberta de atuação, o fornecimento de seus alimentos para a merenda escolar municipal, em escolas dos distritos de Sousas e Joaquim Egídio, que compõem a APA de Campinas com outras áreas rurais. “O sistema agroflorestal é o futuro da APA, pelos seus benefícios em termos de preservação ambiental, produção de água e alimentos, descarbonização e proteção da biodiversidade”, conclui Gustavo Fernandes.
Proprietária do Sítio Pimenta Rosa, também na APA de Campinas, Lilian de Castro Lacerda trabalhava há anos com veterinária antes de se decidir pela mudança com a família para a zona rural. Ela relata que também havia a intenção, desde o início, de uma produção agroecológica na propriedade, além de seu uso como território para a educação ambiental e turismo ecológico. A adoção do sistema agroflorestal atende precisamente a esses objetivos, diz Lilian.
“Fizemos a adubação verde em uma área que antes era de pasto e aos poucos as árvores foram crescendo”, conta. Foram plantadas mais de 20 espécies de frutas e já está em curso a colheita de bananas. “Esse sistema é muito rico porque permite a recomposição natural da matéria orgânica. O solo fica protegido, renovado, e também ocorre a captura do carbono”, assinala a produtora rural. Lilian Lacerda revela que em futuro próximo deve ser agregada ao sistema agroflorestal no Sítio Pimenta Rosa a criação de galinhas. “Esse sistema que une árvores, produtos agrícolas e animais é muito saudável, o Brasil tem tudo para expandir esse modelo de agricultura”, acredita a pequena proprietária rural de Campinas.