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Saneamento para quem? Artigo de Ana Maria de Niemeyer (1 notícias)

Publicado em 12 de julho de 2023

 "A Baixada Fluminense é formada de territórios densamente povoados ao lado de canais assoreados, sujos, apesar das contínuas políticas públicas de saneamento ", escreve Ana Maria de Niemeyer , professora aposentada do Departamento de Antropologia da Unicamp, em artigo publicado por A Terra é Redonda

Eis o artigo.

Em junho de 2023, indo de São Paulo para o Rio de Janeiro , atravessei de ônibus trechos da Baixada Fluminense . Eram umas 15 horas; tínhamos pressa, meu filho e eu, para chegarmos ao velório de meu irmão que acabara de falecer. A emoção daquele dia não impediu que eu ficasse atenta ao que via à medida que o ônibus avançava lentamente, devido ao trânsito.

Conhecimentos, da geógrafa que fui um dia, da antropóloga que sou hoje, e vivência de carioca, vieram à minha mente. Precisava com urgência de tudo isto, pois estava em São Paulo estudando o álbum com fotografias de meu pai, o engenheiro Luiz Fernando Berla de Niemeyer (1913-1974), de seu trabalho na Directoria de Saneamento da Baixada Fluminense (1937 a 1939).[i]

Ele era aficionado por fotografia; suas composições focalizavam ações técnicas, ao mesmo tempo não hesitava em registrar a beleza de algumas paisagens; também era pesquisador, pois as fotografias estavam fixadas por cantoneiras no álbum, numeradas em sequência, à medida que os fatos, criados pelas máquinas e pelos agentes responsáveis pelo saneamento , iam se desenrolando.

Anotando com lápis branco nas páginas e, às vezes, com caneta na borda e no verso das fotos, ele foi descrevendo os acontecimentos relacionados ao destocamento e limpeza dos canais e rios da Baixada Fluminense , visando afastar a malária que assolava a região e liberar os terrenos para diferentes usos. Fez, pois, uma crônica visual e gráfica de dentro, isto é, não dirigida a um órgão superior ao qual ele teria que prestar contas. Diferente do relatório oficial redigido por Hidelbrando de Araújo Góes , na ocasião chefe da Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense . Relatório este que teve o efeito simbólico e prático de exaltar os feitos do Governo Vargas .[ii]

Comento dois fatos registrados nas fotografias de Luiz Fernando B de Niemeyer que vieram à minha mente quando eu avistava trechos da Baixada Fluminense da janela do ônibus. O primeiro diz respeito à sequência de fotos mostrando rios e canais assoreados e, em seguida, desimpedidos após a ação dos agentes principais do trabalho que foram, segundo ele, as máquinas, os engenheiros e os operários.

O segundo remete às anotações que ele fez no verso de algumas fotografias: assim como os engenheiros; os operários estão identificados com nome e sobrenome; ganham, pois, dignidade de sujeitos. E, tão importante quanto, estão inscritos na história, pois no tempo da escravidão na região da Baixada Fluminense , eram os escravos, dos quais muitos entre eles descendiam, que destocavam manualmente os canais e rios.

Estaria agora a Baixada Fluminense menos insalubre, com rios e canais que a atravessassem limpos?

Pois bem, o que vi da janela, confirmaram as denúncias recentes sobre a região: territórios densamente povoados ao lado de canais assoreados, sujos, apesar das contínuas políticas públicas de saneamento . Ao segmento da classe trabalhadora, que mora nos subúrbios da Baixada Fluminense , resta conviver com o crime organizado, com o racismo dos agentes policiais, com a insalubridade dos rios e canais, portanto, com a constante ameaça de doenças; daí o título deste texto, Saneamento para quem?

De volta para São Paulo , retomei o estudo do Álbum de fotografias de Luiz Fernando Berla de Niemeyer em seu trabalho Directoria de Saneamento da Baixada Fluminense (1937 a 1939), com respostas para uma questão que me preocupava: como filha teria competência para estudar o álbum de meu pai com distanciamento?

Parte da história de minha família da qual tomei conhecimento, durante os dias em que fiquei no Rio , ajudaram a encontrar uma das respostas que procurava. Constatei a continuação na minha família, dos valores de meu pai que sempre respeitou os operários, durante as obras onde trabalhou ao longo de sua vida.[iii]

A prisão, seguida de torturas, de meu irmão, Luiz Flávio de Niemeyer (1944-2023), por sua atuação política, sem pegar em armas, durante a ditadura militar no Brasil , trouxe consequências sérias para sua vida.

Ficou evidente que Luiz Fernando Berla de Niemeyer e Luiz Flávio de Niemeyer tentaram ajudar a história do país defendendo as pessoas oprimidas.

As condições calamitosas dos trechos da Baixada Fluminense que observei, aliadas às denúncias da imprensa, de pesquisador@s, e de organizações populares, sobre o descaso das autoridades em relação à situação dramática da população que aí vive, tornaram claras as condições que tenho como antropóloga, especialista no estudo de imagens e grafias, pesquisadora de favelas e do racismo em escolas públicas (Financiamento/ FAPESP), de estudar aquele álbum fotográfico histórico com distanciamento.

Notas

[i] Catalogação e digitalização do álbum por Gisele Ottoboni:

[ii] Acessível aqui

[iii] Conforme este relato do engenheiro que trabalhou no túnel Rebouças/RJ/1965 (governo Carlos Lacerda): “[…] chegaram à obra, o gerente da empresa e o Secretário de Obras, Dr. Marcos Tamoio. Como era uma obra muito política, o Secretário solicitou ao Dr. Niemeyer que passasse a dar dois fogos por dia ao invés de apenas um, pois necessitava que a obra fosse o mais rapidamente possível inaugurada. Sem se alterar, o Dr. Niemeyer respondeu ao secretário ‘que só haveria uma possibilidade disto acontecer e esta maneira era que ele, secretário, tomasse o seu lugar na obra, pois, enquanto ele fosse o engenheiro residente e responsável pela obra, jamais colocaria a vida de seus funcionários em risco, principalmente por causa de política. ' Todos podem imaginar a repercussão desta resposta. A empresa, mesmo tendo em vista a vasta experiência e a idoneidade do Dr. Niemeyer, teve que tomar uma atitude […] e o convidou para trabalhar em São Paulo, única maneira encontrada para tirá-lo da obra. ” (José Luiz SALGADO, Histórias de um engenheiro peão ou com a mão na massa. Rio de Janeiro. O primeiro ciclo. S/d: p. 74)