Intitulado "Ciência, Tecnologia e Defesa", foi publicado recentemente na imprensa brasileira documento que está destinado a fazer história. Entretanto, apesar de sua importância, ele não foi, ainda, devidamente polemizado pela comunidade acadêmica e militar e, muito menos, pelo público em geral.
Assinado por um punhado dos mais ilustres representantes daquelas referidas áreas, o documento focou um assunto que certos círculos das elites brasileiras não gostam de tratar: a preservação da soberania nacional. Os subscritores, acima de qualquer suspeita quanto às suas competências profissionais, são preeminentes personalidades no campo dos saberes científicos e da estratégia militar neste governo e do governo passado, pertencentes ou não a partidos de diferentes matizes ideológicos.
De fato, eis aí um tema que, embora de vital importância para a existência de qualquer Estado, provoca em certos círculos das elites nacionais reações de incômodo e impaciência, quando não de aberto repúdio e hostilidade. Soberania nacional, em tempos de globalização e triunfo das teses neoliberais, parece soar aos seus ouvidos como conversa demodée entre nacionalistas fora de moda. Parece penoso para eles, assim, conviver com as duras imposições da realidade que aí está.
Nos primórdios do novo milênio, confirmando constantes do século passado, fica cada vez mais evidente o poder do Império e do Estado, tal como mostra a atual e inequívoca posição da superpotência hegemônica, os Estados Unidos. O caráter nacional das políticas econômicas dos países denominados centrais caminha na mesma mão. Basta ao cidadão bem informado ler os jornais e revistas, ouvir as rádios e assistir as televisões. Os países ricos, sem rebuços, protegem seus produtos e seus mercados no contexto do comércio internacional.
Mas, o que diz, afinal, a matéria? Por que considerá-la como um documento de marcante importância histórica? Na verdade, ela não teria nada demais se tivesse sido publicada em um país do chamado Primeiro Mundo. Afirma que o desenvolvimento econômico e social requer a priorização da educação e da busca do conhecimento. Relaciona a pronta e eficaz defesa do Estado com o progresso científico e tecnológico. Sustenta que está no saber o fator-chave que estrutura a hierarquia das nações.
Adverte, o documento, que a amplificação internacional da ciência e da tecnologia cria vulnerabilidades e ameaças que não podem passar desapercebidas por uma sociedade do tamanho do Brasil. Proclama que as aspirações nacionais dependem da produção "em casa", sem prejuízo de parcerias internacionais, de um estoque próprio de saberes na área de ciência e tecnologia, considerados estratégicos. Defende, em suma, a tese de que, na sociedade de conhecimentos que aí está, o país não poderá exibir uma real e coerente política de defesa que não esteja alicerçada na pujança de sua ciência e de sua tecnologia.
Nada mais, nada menos, portanto, do que perseguiram os países que mais se destacaram nos tempos contemporâneos. Com efeito, todos eles, fossem quais fossem os conteúdos doutrinários de suas políticas de Estado, jamais abandonaram a busca obstinada da afirmação nacional. A novidade do documento em pauta não está, portanto, na assunção desses pressupostos. Reside em outros aspectos. Em um país como o nosso, penetrado de cabo a rabo pela subordinação ao capitalismo internacional, nascido no contexto do complexo colonial-capitalista-moderno, fundado na escravidão, organizado em torno da burocracia estatal, - a hegemonia do modo de pensar "central" tomou conta de corações e mentes. Raciocinar como "eles"; agir como "eles"; ser aceito por "eles", parece ter sido uma fatalidade entre nós. Fazem parte do noticiário do dia-a-dia as humilhantes metáforas do tipo "fazer o dever de cai a" com que os tecnocratas de plantão se referem às determinações do FMI.
A novidade, então, em primeiro lugar, vem da reafirmação de urna postura nacional que parecia condenada ao illo tempore de nossa história, tão desgastada quanto, agora, inútil, segundo os arautos do neoliberalismo. Em segundo lugar, os signatários, jogando fora o entulho de um passado que não pode se repetir, clamam pela associação entre a corporação militar e a acadêmica na consecução de um programa nacional que torne competidora a nossa ciência e a nossa , tecnologia na área da defesa. Propõem, sem rodeios, a estreita parceria entre o Ministério da Defesa, o Ministério da Ciência e da Tecnologia e o BNDES, por um lado, e os legítimos interesses dos nossos empresários, por outro. Traçam, assim, os rumos de uma política de Estado e não apenas de uma tópica política de governo.
Em terceiro lugar, o documento fornece seguras indicações para a construção de uma próspera indústria de defesa voltada para a garantia de nossa soberania nacional, poderia, por si só, estabelecer um ciclo virtuoso de crescimento sustentado. Convida os economistas de boa consciência à tarefa de fazer os cálculos que demonstrem, em números concretos, que a decisão de se dar início a tal política, respaldada na força do apoio democraticamente constituído, poderia em muito contribuir na retomada do desenvolvimento nacional.
A história dos séculos XIX e XX mostrou que, dependendo da política perseguida, dez anos na vida econômica de um país é muito tempo. No Brasil, nos últimos 20 anos, as diretrizes de Estado postas em prática tiveram como conseqüências o desemprego, o achatamento salarial, a perda da renda real, o agravamento das desigualdades sociais, a violência urbana e rural, a insegurança generalizada. Sem se falar, é claro, que tudo isso nos reduziu ao papel de meros, senão insignificantes, coadjuvantes na arena internacional.
Sim, os defensores dessas políticas, denominadas neoliberais, sempre proclamaram que, fora delas, estar-se-ia na contramão da historia. Que tal, então, entrarmos na mão da historia e fazer o que as grandes nações fazem? Isto é, propor e executar uma política em prol de nossa soberania e de nossa defesa como sustentáculo do nosso próprio poder econômico, político, intelectual e moral.
Eis aí a importância do documento em tela: ciência + tecnologia + defesa = crescimento econômico + emprego = soberania real.
Eurico de Lima Figueiredo
Diretor do Núcleo de Estudos Estratégicos (Nest) da Universidade Federal Fluminense (UFF).
1 Assinaram o documento em questão: José Viegas Filho (ministro da Defesa), Roberto Amaral (ex-ministro de Ciência Tecnologia no governo atual), Luís Fernandes (atual secretário executivo do Ministério de C&T), general Alberto Cardoso (atual secretário de C&T do Exército e ex-ministro de Segurança Institucional do governo FHC), Ronaldo Sandenberg (embaixador do Brasil na ONU e ministro de C&T no governo FHC), Sebastião do Rego Burros (embaixador, diretor da Agência Nacional do Petróleo); Erney Plessmam (presidente do CNPq) e Carlos Henrique de Brito Cruz (ex-presidente da Fapesp e atual reitor da Unicamp).
Notícia
Monitor Mercantil