Numa parceria inédita, o Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFRJ e a Ong CEPIA - Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação juntaram esforços para oferecer o curso de extensão Saber Médico, Corpo e Sexualidade Humana. Pretende-se, com esta iniciativa, fornecer aos alunos do curso médico subsídios para a elaboração de uma percepção crítica dos fundamentos sócio-histórico e filosóficos tanto do conhecimento como da prática médica. Especial ênfase será dada às dimensões sociais presentes na elaboração dos discursos sobre o corpo e a sexualidade humana.
Embora tradicionalmente o campo da saúde tenha se caracterizado pela prevalência de perspectivas medicalizantes e intervencionistas, a partir dos anos 80, e, especialmente na década de 90, alcança significativa aceitação a idéia de que a saúde, entendida como um estado de bem-estar físico e emocional, está relacionada a uma série de outras esferas da vida social, que, de forma direta ou indireta, interferem sobre este estado. As formas de inserção social do indivíduo seriam, deste modo, variáveis fundamentais na compreensão do binômio saúde-doença, cuja dinâmica responderia a uma série de fatores que ultrapassam (e incluem) o modelo médico-hospitalar até recentemente preponderante na conceituação de saúde. Assim, o saneamento básico, a moradia, a nutrição, a educação e a informação, a renda, o meio ambiente, o trabalho, o sexo, a raça e mesmo a situação política e econômica do país interfeririam diretamente sobre a saúde individual e coletiva.
Este alargamento dos parâmetros de análise da questão da saúde é claramente expresso na definição adotada pela Organização Mundial da Saúde, que define saúde como: um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou invalidez. O gozo do melhor estado de saúde possível de ser atingido constitui-se num dos direitos fundamentais de todo ser humano, seja qual for sua raça, religião, opinião política, condição econômica e social.
É possível, portanto, sugerir que o estado de bem-estar do indivíduo reflita laços estruturais do corpo com a sociedade sem negar, contudo, a presença de enfermidades que não se inserem, necessariamente, nestes marcos. Neste sentido, saúde e doença se constroem não só nos manuais classificatórios da Medicina mas, também, no imaginário coletivo e nas representações individuais.
A criação deste espaço de reflexão busca, por outro lado, inverter a tendência corrente em nossos meios acadêmicos, que se expressa na formação médica tecnicista, cada vez mais alheia aos problemas humanísticos inerentes à sua prática social e, em boa medida, às relações entre os instrumentos teóricos e práticos da profissão. Paradoxo que se cristaliza pela ausência de um diálogo fértil com as ciências humanas, estas cada vez mais avessas aos interlocutores externos a seu campo profissional. O caráter esotérico de sua linguagem é, talvez, a maior evidência deste fenômeno. A primeira barreira a ser transposta pelo curso será a do preconceito que os estudantes de Medicina têm contra a linguagem das ciências sociais.
O exame crítico dos pressupostos teóricos e sociais do saber médico que propomos, pressupõe uma visão histórica do corpo. Lembremos que a dualidade normal/patológico tem um fundamento ético, contrariamente ao que se aprende nos bancos escolares: de modo algum nosso conhecimento sobre os processos mórbidos e terapêuticos são puramente racionais, estando, também eles, impregnados de conteúdos sociais. A construção cultural da diferença entre os sexos, por exemplo, com a vasta rede de preconceitos de que esta impregnada, muito deve aos eloqüentes discursos "científicos" desenvolvidos pela Medicina até poucas décadas passadas. Em nome da natureza humana legitimam-se os fundamentos ideológicos e as estruturas de poder que permeiam os estereótipos do masculino e do feminino.
A Medicina moderna é um complexo sistema de conhecimentos especializados, procedimentos técnicos e normas de conduta. Por outro lado, a Medicina é, também, inequivocamente, um mundo de poder. O que foi em meados do século 19 uma profissão débil, de pouca importância econômica, converteu-se em um sistema extenso de hospitais, clínicas, planos de saúde, companhias de saúde e uma rede de organizações públicas e privadas que empregam uma enorme força de trabalho. Como ascendeu a profissão médica a esta posição de autoridade cultural, de poderio econômico e de influência política? Quais seus dilemas éticos contemporâneos, em face da crise da Medicina liberal e das fissuras da identidade médica provocada pela fragmentação teórica e prática em diversas especialidades, bem como pela intensificação das disparidades de status social dentre os médicos? De que forma as características estruturais da sociedade interferem na percepção que o médico possui de seus pacientes e nas formas de acesso aos tratamentos?
Jacqueline Pitanguy é socióloga e diretora da CEPIA
Rodolpho Rocco é professor-titular de clinica médica
Flávio Edler é historiador da Casa de Oswaldo Cruz
Notícia
Jornal do Brasil