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Jornal da USP

Revistas científicas brasileiras: necessárias? (1 notícias)

Publicado em 13 de setembro de 1999

Por PAULO CAPEL NARVAI
Não, a pergunta não é idiota. Nem impertinente. Pode parecer inacreditável mas da resposta a essa pergunta depende a continuidade de algumas trajetórias profissionais na Universidade de São Paulo. Há algum tempo tem predominado nos processos de avaliação do trabalho docente na USP o critério "número de artigos publicados em revistas científicas estrangeiras". Parece ser evidente que esse é um indicador importante. Parece elementar que esse não deve ser o único indicador. Mas é o que, com grande freqüência, acontece. É preocupante porque, em certas situações, esse pode inclusive não ser o melhor indicador. É gravíssimo, entretanto, quando a avaliação implica alterar contratos e relações de trabalho.Estas considerações sobre revistas científicas decorrem de um processo no qual estou envolvido. Sou "precário" em RDIDP e, nos trâmites para renovação do meu contrato de trabalho, foi solicitado um parecer externo à minha unidade (FSP). Sou docente na área de Saúde Pública. Nos últimos dois anos, período considerado para a avaliação, publiquei cinco artigos. Todos em revistas brasileiras (Ciência & Saúde Coletiva, Revista de Saúde Pública, Cadernos de Saúde Pública e Ação Coletiva). Ciência & Saúde Coletiva é editada pela Abrasco - Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, a entidade acadêmica mais importante da área de saúde pública, reunindo instituições e pesquisadores dessa área de todo Brasil. A revista surgiu em 1997 e, claro, ainda não está indexada nas principais bases. O mesmo ocorre com Ação Coletiva, outra jovem publicação brasileira, nascida em 1998 (publiquei nos fascículos 2 e 4 do volume 1). Mas quero deter-me em Revista de Saúde Pública (Journal of Public Health) e Cadernos de Saúde Pública (Reports in Public Health). Esses dois periódicos são as melhores publicações feitas em nosso país, na área de saúde pública. A comunidade acadêmica reconhece isso. Há conhecido rigor editorial e o corpo de consultores de ambas reúne pesquisadores experientes das várias áreas da saúde pública. Tanto a Revista de Saúde Pública quanto Cadernos de Saúde Pública são, ambos, indexados nas mais importantes bases internacionais. Sua qualidade editorial coloca-os, pelo menos, no mesmo plano do que se faz de melhor no mundo. São, inegavelmente, melhores do que boa parte do que se publica internacionalmente e lideram incontestavelmente na América Latina. Mas, segundo os critérios de excelência predominantes na USP, essas e outras revistas científicas brasileiras podem ser fechadas. Não fariam falta, não seriam necessárias porque o que se publica nelas não tem valor, não interessa, não importa. Assim, as agências de fomento científico deixariam de investir nessas publicações, auxiliando-as, por serem, segundo essa visão, desnecessárias. Seriam economizados recursos financeiros e, dessa forma, as agências (CNPq, Capes. Fapesp e outras) aumentariam sua quota de participação no esforço nacional para fazer o ajuste fiscal e controlar o gasto público... Não poderia ser outra a conclusão a que um analista medianamente sagaz deveria chegar refletindo sobre o papel das revistas científicas brasileiras na avaliação da USP. Concluí em 1997 uma pesquisa sobre a produção científica brasileira na área de Odontologia Preventiva e Social. Utilizei como indicadores dessa produção artigos publicados em revistas científicas brasileiras. Analisei 386 artigos, publicados em 19 periódicos, por pelo menos 866 autores. As revistas que mais publicaram artigos nessa área foram RGO e Revista da A PCD, a primeira editada em Porto Alegre e a segunda em São Paulo, pela Associação Paulista de Cirurgiões-Dentistas. Ambas são indexadas no Lilacs (Literatura Latino-Americana em Ciências de Saúde) mas não em outras importantes bases internacionais. Mas, sendo assim, não estando indexadas, por que os autores brasileiros procuram esses veículos para divulgar os resultados das suas pesquisas? Entre outras, por uma razão elementar: os conteúdos dos seus artigos se referem a problemas brasileiros. Na área de saúde pública isso é crucial. Temas de interesse aqui são simplesmente desinteressantes em outros países. Cárie dentária por aqui, por exemplo, continua sendo um importantíssimo problema de saúde pública, mesmo em crianças. Artigos que descrevam o problema em populações são de interesse entre nós sendo importante publicá-los. Não despertam, contudo, o menor interesse em países como Estados Unidos e Suécia - neste, mais de 70% das crianças não têm nenhum dente cariado e outros 20% têm apenas 1 dente atingido. Autores e, principalmente, editores desses países são pautados pelos seus problemas nacionais. É compreensível. Se nossa realidade é diferente porque insistimos em desconsiderá-la e nos "pautamos" pelas temáticas de outras realidades? É evidente que há periódicos "mais gerais" e que há temas igualmente "mais gerais". Mas por que a ditadura do "mais geral"? Nesses tempos de neo-imperialismo, superpotência única etc, prevalece entre nós, ainda muito fortemente, o colonialismo cultural. A subserviência técnico-científica é uma das dimensões do colonialismo cultural. Tudo de fora é bom, simplesmente por ser "de fora". Tudo feito aqui é "precário, ruim, pobre", "de má qualidade". Portanto, "não prestando" não deve ser socialmente respeitado, valorizado, reconhecido. É preciso que a USP, cujo "modelo" de avaliação docente obviamente influencia outras universidades e provoca tentativas de reprodução do "método da USP", rompa definitivamente com tais práticas e passe a valorizar também outras dimensões importantes do trabalho docente e, também, artigos publicados em revistas brasileiras. Como integrante do corpo editorial de nove revistas científicas brasileiras (três da USP), atrevo-me a afirmar que fazê-lo não significará "retrocesso acadêmico", "prejuízos à qualidade", ou coisas do gênero. Ao contrário, significará um saudável reencontro com o ideário dos fundadores da USP, que ousaram sonhar a independência científica e cultural do Brasil; que dedicaram suas vidas acadêmicas ao projeto de construir uma universidade autônoma nesta parte da América Latina; que viveram e alimentaram a utopia de um pólo brasileiro de produção e difusão de ciência e tecnologia; que doaram o melhor das suas qualidades para que pudéssemos ter hoje uma universidade que publica dezenas de revistas científicas. Para estar à altura e honrar esse legado, é preciso que as, nossas revistas sejam conhecidas, reconhecidas e valorizadas pelos que as produzem. Paulo Capel Narvai é professor da Faculdade de Saúde Pública