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Restrição calórica pode ser boa para cérebro, indica estudo (1 notícias)

Publicado em 22 de setembro de 2016

Por Karina Toledo, da Agência FAPESP

Estudos com diferentes espécies animais sugerem haver uma relação entre comer menos e viver mais. Porém, ainda não são bem compreendidos os mecanismos moleculares pelos quais a restrição calórica pode proteger contra doenças e aumentar a longevidade.

Novas pistas para ajudar a solucionar o mistério foram apresentadas em artigo publicado neste mês na revista Aging Cell pela equipe do Centro de Pesquisa em Processos Redox em Biomedicina (Redoxoma), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) da FAPESP.

Por meio de experimentos in vitro e in vivo, os cientistas observaram que uma redução de 40% nas calorias da dieta aumenta a capacidade da mitocôndria (organela celular responsável pela produção de energia) de captar cálcio em algumas situações nas quais o nível desse mineral no meio celular encontra-se patologicamente elevado. No cérebro, isso pode ajudar a evitar a morte de neurônios associada a doenças como Alzheimer, Parkinson, epilepsia e acidente vascular cerebral (AVC), entre outras.

“Mais do que promover as vantagens de comer pouco, nosso objetivo é compreender os mecanismos que fazem com que não exagerar na ingestão de calorias seja melhor para a saúde. Isso pode apontar novos alvos para o desenvolvimento de drogas contra diversas enfermidades”, comentou Ignacio Amigo, autor principal do artigo.

A investigação foi conduzida no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) durante o pós-doutorado de Amigo, com apoio da FAPESP e supervisão da professora Alicia Kowaltowski.

Conforme explicou o pesquisador, o cálcio é uma molécula que participa do processo de comunicação entre os neurônios. Porém, doenças como o Alzheimer podem causar uma superativação dos receptores para o neurotransmissor glutamato nos neurônios, resultando em uma entrada excessiva de íons de cálcio na célula. Tal condição é conhecida como excitotoxicidade e pode causar danos e até mesmo a morte de neurônios.

Com o objetivo de verificar o efeito da restrição calórica em uma condição de excitotoxicidade, os cientistas do Redoxoma compararam dois grupos de camundongos. O controle recebeu ração à vontade durante 14 semanas e, no final do experimento, estava com excesso de peso. O outro grupo experimental, durante o mesmo período, recebeu uma quantidade de ração controlada, com redução de 40% nas calorias ingeridas.

“Calculamos quantas calorias, em média, os animais controle ingeriam diariamente e oferecemos para os demais 40% a menos. Eles não ficavam abaixo do peso, estavam saudáveis, mas suplementamos com algumas vitaminas e minerais que ficariam abaixo do ideal com a diminuição na quantidade de comida”, contou Amigo.

O primeiro teste consistiu em injetar nos animais uma substância chamada ácido kaínico, molécula análoga ao neurotransmissor glutamato e com efeito semelhante (induzir a entrada de cálcio nos neurônios), porém mais persistente. Em camundongos, a droga pode provocar convulsões, dano e morte de células neuronais. É usada em laboratório para mimetizar a epilepsia.

“Usamos uma dose pequena para não causar a morte do animal. Ainda assim, todos os roedores do grupo controle tiveram convulsões. Já os camundongos submetidos à restrição calórica ficaram bem”, contou Amigo.

Segundo o pesquisador, estudos anteriores haviam mostrado que é possível proteger o cérebro de danos causados pelo excesso de cálcio induzindo um aumento na captação desse mineral pelas mitocôndrias.

“Decidimos então verificar, in vitro, se era o que estava acontecendo em nosso modelo. Isolamos as organelas do cérebro de ratos – também comparando roedores que comeram à vontade com aqueles submetidos à restrição de 40% das calorias. À medida que adicionávamos cálcio no meio, foi possível observar que a captação era maior nas mitocôndrias do grupo que ingeriu menos calorias”, contou.

Desvendando mecanismos

O passo seguinte foi observar o que acontecia ao tratar as mitocôndrias isoladas de ambos os grupos com a droga ciclosporina – sabidamente capaz de induzir um aumento na captação de cálcio. Enquanto as organelas do grupo controle de fato passaram a captar maior quantidade do mineral, aquelas do grupo submetido à restrição permaneceram iguais, ou seja, a diferença observada no teste anterior desapareceu.

“O alvo da ciclosporina na mitocôndria é bem conhecido: a droga inibe a ação de uma proteína chamada ciclofilina D e, quando isso acontece, a organela passa a captar mais cálcio”, explicou Amigo.

No entanto, análises revelaram que os níveis da proteína ciclofilina D eram iguais nos dois grupos de ratos. Os pesquisadores decidiram então avaliar a concentração de outras proteínas que poderiam interferir na ação da ciclofilina D no organismo.

“Descobrimos que a restrição calórica induziu um aumento nos níveis de uma proteína chamada SIRT3, que é capaz de modificar a estrutura da ciclofilina D. Ela remove um grupo acetil da molécula – processo conhecido como desacetilação – e isso inibe a atividade da ciclofilina D, fazendo as mitocôndrias captarem mais cálcio e tornando-as insensíveis à ciclosporina”, explicou Amigo.

Como já havia sido observado em trabalhos de outros grupos, a equipe do Redoxoma notou ainda que nas mitocôndrias do grupo submetido à restrição houve aumento de algumas enzimas antioxidantes, como glutationa peroxidase e glutationa redutase, e aumento da atividade da enzima superóxido dismutase (SOD). Segundo os cientistas, tais resultados sugerem um aumento na capacidade cerebral de lidar com o estresse oxidativo – condição que participa da gênese de várias doenças degenerativas.

A restrição calórica, seus efeitos metabólicos e de sinalização celular têm sido foco de muitos estudos do grupo de Kowaltowski no IQ-USP, realizados no âmbito de um Projeto Temático apoiado pela FAPESP. Segundo a pesquisadora, os novos achados devem abrir uma nova linha de investigação em seu laboratório.

“Dados preliminares sugerem que a mudança no transporte de cálcio mitocondrial induzida pela restrição calórica pode acontecer também em outros tecidos, além do cerebral, com diferentes repercussões. Parece ser algo importante e pretendemos investigar melhor”, comentou.

Na avaliação de Amigo, as proteínas que tiveram a atividade alterada pela intervenção nutricional no atual estudo são potenciais alvos a serem explorados no tratamento de doenças em que há perda neuronal por excitotoxicidade.

O artigo Caloric restriction increases brain mitochondrial calcium retention capacity and protects against excitotoxicity (doi: 10.1111/acel.12527) pode ser lido em onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/acel.12527/full.