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Inova Unicamp

Resíduos da indústria de alimentos podem servir para produção de bioenergia e novos materiais

Publicado em 03 junho 2020

Por Karen Canto

Tecnologia supercrítica permite tratamento adequado de resíduos e tem grande potencial na produção de produtos de alto valor agregado, como Biocombustíveis. A técnica é usada no do Laboratório de Bioengenharia e Tratamento de Águas e Resíduos da Unicamp.

A produção de bioenergia e novos produtos a partir do lixo é um desafio e uma necessidade, principalmente para o setor industrial. Apenas no estado de São Paulo, são produzidas, por ano, mais de 2 milhões de toneladas de resíduos sólidos orgânicos. A indústria de alimentos é a que mais produz resíduos sólidos em sua linha de produção e muitas tecnologias vêm sendo desenvolvidas com o propósito de tratar esses rejeitos. Atenta às necessidades atuais, Tania Forster Carneiro, professora da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp (FEA-Unicamp), desenvolve uma nova linha de pesquisa obtendo resultados promissores.

“A tecnologia que desenvolvemos permite transformar um grande volume de lixo num líquido de alto valor agregado que pode ser transportado e/ou acondicionado com mais facilidade”, conta a pesquisadora, com entusiasmo.

À frente do Laboratório de Bioengenharia e Tratamento de Águas e Resíduos – Biotar desde 2014, a professora desenvolveu a biorrefinaria de biomassa, equipamento capaz de transformar resíduos sólidos da indústria de alimentos (como palha e bagaço de cana de açúcar, casca de laranja, entre outros) em bioenergia e produtos de valor agregado.

A biorrefinaria de biomassa utiliza a tecnologia supercrítica. Um fluido supercrítico é qualquer substância submetida a condições de temperatura e pressão acima de seu ponto crítico, no qual não há distinção entre seu estado líquido e gasoso. No caso do Biotar, usa-se água. Submetida a condições de temperatura e pressão elevadas, a água adquire características de um fluido supercrítico e apresenta tanto propriedades de líquido quanto de vapor, podendo ser empregada nesse processo.

“A tecnologia supercrítica é considerada verde e sustentável porque só utiliza água e aumento de temperatura e tem grande potencial na produção de biocombustíveis”, explica a professora.

Vários tipos de resíduos, diferentes compostos

Versatilidade no Processo

A tecnologia supercrítica empregada na biorrefinaria de biomassa permite a execução de três etapas que ocorrem em faixas distintas de temperatura: extração, hidrólise e gaseificação.

Operando na faixa de temperatura mais amena, ocorre o processo de extração, em que, dependendo do tipo de resíduo utilizado, é possível obter compostos de grande aplicação na indústria farmacêutica e de cosméticos, como óleos essenciais. Essa faixa de temperatura é priorizada com casca de laranja e resíduo de açaí, por exemplo. Já na hidrólise, uma etapa versátil conduzida em uma faixa intermediária de temperatura, outros tipos de produtos são gerados e, nesse caso, o grupo de Tânia foca nos resíduos de cana de açúcar.

“Descobrimos que operando a temperaturas mais baixas é possível hidrolisar a hemicelulose, um polímero menos resistente; e aumentando a temperatura, na mesma faixa intermediária, é possível hidrolisar a celulose, que é mais resistente” conta a professora.

Essa versatilidade, explica a pesquisadora, permite que os açúcares gerados pelo processo possam ser utilizados tanto na fabricação de biocombustível etanol como também de outros produtos de interesse como xilitol, sorbitol, isobutanol, biogás ou glicose.

A última etapa é a gaseificação que ocorre em temperaturas mais elevadas. Nesse processo há a queima da biomassa com obtenção dos gases biocombustíveis hidrogênio e metano, produzidos de forma “limpa”, pois não contêm subprodutos tóxicos como alcatrão – que é comum em outros processos.

A gaseificação é a etapa priorizada quando os compostos de interesse presentes no resíduo são os gases, como é o caso do bagaço de malte. “É a estrela dos meus olhos”, diz a professora, relatando que um novo pedido de patente está em vias de ser depositado, e envolve o uso do bagaço de malte para a produção do gás biocombustível metano. A indústria cervejeira produz 400 toneladas de resíduos por dia, apenas uma parte é utilizada como alimento na criação de suínos, sendo o restante é descartado.

Sustentabilidade e novas possibilidades

Além da expressiva redução de volume de um subproduto que viraria lixo, chama a atenção a versatilidade do processo, já que pode ser ajustado de acordo com os compostos de interesse presentes em cada um dos resíduos. Sim, pois cada biomassa pode ser mais ou menos rica em bioativos, polímeros, açúcares ou gases. “Dependendo da composição, uma matriz de biomassa pode se beneficiar mais ou menos de determinada etapa – extração, hidrólise ou gaseificação. É preciso saber qual etapa otimizar para determinada matéria prima”, explica Paulo Cesar Torres Mayanga, aluno de doutorado que está finalizando sua tese com os resultados obtidos pelo emprego da tecnologia supercrítica em resíduos sólidos.

Além dos resíduos já citados, o grupo também utiliza subprodutos da atividade cafeeira, e recentemente foram procurados por uma cooperativa que fornece café para a empresa Starbucks. A cooperativa produz três tipos de resíduos sólidos: café desengordurado, grãos não aprovados e o pó resultante do peneiramento. São toneladas de resíduos sólidos que virariam lixo, mas podem se tornar um extrato rico em óleos e composto bioativos com grande aplicação na indústria farmacêutica e de cosméticos.

Outro resíduo sólido com grande impacto ambiental são as penas que sobram no processamento da carne de frango – da qual o Brasil é um dos principais produtores. Parte desse resíduo é utilizado para fazer ração animal, mas a imensa maioria é descartado. Trata-se de biomassa animal, composta basicamente por proteínas, com grande potencial no mercado farmacêutico. No grupo de Tania, a metodologia já está sendo empregada para esses resíduos e os testes preliminares mostram-se promissores.

O grande desafio da tecnologia supercrítica nesse momento é o aumento de escala. Um pequeno aumento de escala foi feito para os resíduos de café, e indicam ser possível o scale up (aumento de escala) para outras biomassas. Nesse contexto, a recente inauguração do Laboratório de Inovação em Biocombustíveis (LIB) no Parque Científico e Tecnológico da Unicamp pode permitir a execução de testes em grande escala de forma promissora. O scale up possibilitaria o tratamento de grandes quantidades de resíduos sólidos da indústria de alimentos, que atualmente não têm uma disposição final ambientalmente adequada. A opção prevista na legislação, os aterros sanitários, têm impacto ambiental significativo.

Karen Canto é graduada e mestre em química pela UFRGS, doutora em Ciências pela Unicamp, aluna do curso de especialização em jornalismo científico Labjor/Unicamp e bolsista Mídia Ciência (Fapesp).