Notícia

Poder Naval

Reportagem Especial: À bordo do Alpha Crucis (1 de 2) (1 notícias)

Publicado em

Por Herton Escobar

A cena lembra a de um bando de retirantes aglomerados em volta de um carro pipa no sertão nordestino. Só que no meio do oceano.

Assim que cada garrafão é içado das profundezas pelo guincho, uma fila de pesquisadores com baldes, galões e garrafas térmicas vazias se forma no convés do Navio Oceanográfico Alpha Crucis para coletar o líquido precioso. Em poucos minutos, a água é separada e distribuída pelos laboratórios da embarcação: 60 litros para genética de bactérias, 60 litros para análise de clorofila, mais 20 litros para microscopia de plâncton, e por aí vai. Dia após dia, garrafa após garrafa, o ciclo se repete cada vez que o navio “estaciona” em um novo ponto de coleta.

O líquido tão cobiçado pelos cientistas parece não ter nada de especial. É água do mar, transparente e inodora; aparentemente igual à que qualquer criança poderia coletar com um baldinho de praia na orla de Santos. Só que as aparências enganam. Estamos em alto-mar, a 200 milhas náuticas (370 km) do Porto de Santos, e o leito do oceano aqui não dá pé para ninguém – está mais de 2 mil metros abaixo do casco do Alpha Crucis, submerso em frio e escuridão permanentes. As amostras de água coletadas aqui são bem diferentes das da praia, e valem ouro para a oceanografia brasileira.

“É água, sim, mas uma água muito cara”, resume, com precisão germânica, o alemão Rudiger Rottgers, único estrangeiro à bordo, numa equipe de 18 professores e jovens cientistas de universidades de São Paulo, do Paraná, do Rio Grande do Norte e da Paraíba.

Cada dia de operação do Alpha Crucis no mar custa cerca de R$ 54 mil, incluindo combustível, alimentação, salários da tripulação e outros gastos operacionais. O navio, de US$ 11 milhões, foi comprado em 2012 pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), com a proposta de revolucionar as ciências oceânicas no Brasil. Com 64 metros de comprimento e autonomia para passar até 70 dias contínuos no mar, é o maior navio de pesquisa civil da história da oceanografia nacional.

É fim de janeiro. Esta é a quarta expedição de pesquisa do Alpha Crucis desde que o navio chegou ao Brasil, em maio de 2012. Três delas dedicadas ao projeto Carbom (Caracterização Ambiental e Avaliação dos Recursos Biogênicos Oceânicos e da Margem Continental Brasileira e Zona Oceânica Adjacente), que tem como objetivo descrever e quantificar todos os processos relacionados ao ciclo de carbono no oceano brasileiro. Um desafio de proporções oceânicas, literalmente.

Os resultados serão cruciais para o estudo de questões relacionadas às mudanças climáticas, à sustentabilidade da pesca, à biotecnologia e à conservação da biodiversidade marinha. “O carbono é a base de tudo, pois é a matéria-prima da matéria orgânica que alimenta todos os processos biológicos e muitos dos processos bioquímicos do oceano”, justifica o pesquisador Frederico Brandini, do Instituto Oceanográfico da USP, que coordena o projeto. As pesquisas desta expedição, representam apenas um componente (o biológico) do projeto como um todo. Outros componentes envolvem questões físicas, químicas e geológicas do ambiente marinho, abordadas em outras expedições, com instrumentos e metodologias diferentes.

O objetivo geral é descrever como gira a “economia de carbono” do oceano brasileiro, quantificando tudo que entra, tudo que sai; quanto fica estocado, por quanto tempo, de que forma (no plâncton, nos peixes, nos sedimentos ou dissolvido na água), e qual o saldo disso tudo para os seres humanos, os seres marinhos e o planeta como um todo. “Sabemos como esses processos funcionam qualitativamente, mas precisamos entendê-los também quantitativamente para tomar decisões. Precisamos de números”, explica Brandini. Do ponto de vista das mudanças climáticas, o projeto permitirá dizer qual é a participação do oceano brasileiro nos ciclos globais de carbono oceânico e atmosférico – um dado importante nas discussões políticas e diplomáticas relacionadas ao tema.

Toda essa contabilidade está embutida de alguma forma nas amostras de água trazidas à bordo. Por mais transparente que sejam, elas contêm “escondidas” dentro delas milhões de células de plâncton e de moléculas orgânicas dissolvidas. As quantias variam de acordo com a profundidade, a distância da costa e outras características geofísicas do local. E é justamente nessas diferenças que os cientistas estão interessados.

A maior parte da vida nos oceanos é microscópica, invisível ao olho humano. Os produtores primários de biomassa (matéria orgânica), que em terra são representados pelas árvores, gramíneas e outros vegetais, no mar são organismos unicelulares. É o chamado fitoplâncton, composto de bactérias e algas fotossintetizantes, que utilizam a luz solar para juntar moléculas de carbono com outros elementos dissolvidos na água (hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, fósforo, etc) e produzir matéria orgânica. São eles, ao mesmo tempo, os principais magnatas e operários da economia de carbono marinha; a base da pirâmide alimentar que sustenta a vida nos oceanos.

ROTINA DE TRABALHO

A expedição dura seis dias, com poucas horas de sono entre cada um. O navio não para de se mexer jamais, mesmo quando está “estacionado” (ou melhor, “tentando” ficar estacionado), e a sensação é que o trabalho à bordo também não para nunca. Centenas de amostras de água, de várias profundidades, são coletadas de um total de 14 pontos (chamados “estações oceanográficas”) selecionados ao longo do percurso, para serem levadas de volta a terra para análise ao fim da expedição.

O primeiro passo no processo de coleta é traçar um perfil de características da coluna d’água. Quando o GPS indica que o navio está no ponto desejado, um aparato conhecido como Roseta de Niskin é baixado com a ajuda de um guincho no lado boreste (direito) do navio, com vários sensores acoplados. À medida que a roseta desce, pesquisadores reunidos no Laboratório de Aquisição de Dados do navio assistem, em tempo real, à formação de um gráfico com dados de profundidade, temperatura, salinidade e fluorescência da água.

As linhas de temperatura (vermelha) e salinidade (azul) seguem inalteradas até uns 20 metros, depois caem vertiginosamente à medida que a profundidade aumenta. Já a linha verde, de fluorescência, segue num zigue-zague constante, parecendo desenhar uma cadeia de montanhas na tela do computador – sempre com um pico notavelmente mais alto do que os outros, que se destaca da cordilheira como um Everest na Serra do Mar.

Esse pico de fluorescência tem um papel essencial no contexto da pesquisa. A fluorescência é um indicador da quantidade de clorofila, que, por sua vez, é um indicador da quantidade de organismos planctônicos fotossintetizantes presentes em cada camada d’água. A profundidade na qual esse “Everest de clorofila” se ergue no gráfico depende da profundidade do leito marinho (isóbata) e da distância da costa. Pode ser a 20 metros, pode ser a 120 metros. Quanto maior a isóbata e maior a distância da costa, mais rarefeita de vida a água fica e mais profundo aparece o pico de clorofila.

“Estamos entrando já nos chamados desertos oceânicos”, explica Brandini, quando chegamos à isóbata de 2 mil metros. “Para a água do mar ser fértil, luz e nutrientes precisam ocorrer no mesmo lugar e ao mesmo tempo; só que isso é um tanto raro no oceano. É o mesmo conceito que se aplica a uma folha de alface, que precisa ao mesmo tempo de água, luz e nutrientes do solo para crescer. Aqui, água não falta; mas a luz que penetra nas águas quentes superficiais está muito distante dos nutrientes, que ficam concentrados nas águas mais frias e mais profundas.” Por causa disso, o fitoplâncton nessas áreas mais remotas tende a se concentrar no limite mais inferior da zona eufótica (iluminada), onde ainda há luz suficiente para realizar fotossíntese e a disponibilidade de nutrientes é um pouco maior do que na superfície.

Com o perfil da coluna d’água completo na tela do computador, Brandini discute com os pesquisadores sobre quais profundidades serão amostradas e ordena pelo rádio o recolhimento da roseta. Aí começam as coletas. Acima dos sensores, a roseta contém um arranjo (em forma de rosa, daí o nome) de 12 garrafas de 10 litros cada uma, que podem ser fechadas eletronicamente e individualmente, em profundidades distintas, no caminho do equipamento até a superfície.

Seria “fácil” assim se a roseta não tivesse sido avariada num dia de ventania e mar bravo no início na expedição. Em uma das subidas, ela se chocou contra o casco do navio, e o controle eletrônico de fechamento das garrafas parou de funcionar. Por sorte, a equipe tinha uma garrafa sobressalente, de 30 litros, que podia ser afundada individualmente e fechada por meio de um peso (chamado mensageiro) lançado pelo cabo de aço quando a garrafa chegava à profundidade desejada. Sem isso, a expedição teria sido abortada logo no segundo dia. A roseta continuou sendo usada, mas apenas como um “meio de transporte” para os sensores que faziam o perfil da coluna d’água.

O lado ruim foi ter de fazer muito mais lançamentos de garrafa em cada ponto de coleta, já que a capacidade de coleta por lançamento foi reduzida de 120 litros para 30 litros, e a “sede” dos cientistas era grande.

Tipicamente, coleta-se amostras de água de seis profundidades: uma do pico de clorofila, mais duas abaixo e duas acima dele. Um processo que pode consumir várias horas de trabalho, especialmente nas isóbatas mais profundas. Para coletar uma amostra de água a 1.500 metros, por exemplo, leva-se mais de uma hora – incluindo o tempo de descida e subida da garrafa, mais o tempo de descida do mensageiro.

Em operações oceânicas, nada é trivial. Nem mesmo encher uma garrafa de água.

Enquanto técnicos e tripulantes cuidam das operações de guincho para fazer as coletas no convés, e os pesquisadores processam suas amostras nas bancadas dos laboratórios, o comandante do Alpha Crucis e seus imediatos também ficam ocupados na cabine de comando, sempre atentos ao GPS e à direção das ondas e do vento para manter o navio na posição mais estável possível durante todo o processo.

Para ter validade científica, as amostras não podem ser colhidas de qualquer maneira, em qualquer lugar. E como as coisas não gostam de ficar paradas no mar, é preciso reposicionar o navio constantemente para garantir que a coletas sejam todas feitas mais ou menos sobre o mesmo ponto em cada estação – e que os pesquisadores não levem uma surra das ondas a todo momento, e que os instrumentos submersos não sejam arrastados para debaixo do navio pela correnteza, o que seria perigoso para todos.

PROVA DE AUTONOMIA

A expedição foi originalmente planejada para durar duas semanas, aproveitando o tempo de autonomia do Alpha Crucis. O plano era ir até a Elevação do Rio Grande, uma grande “chapada” submersa que se eleva do assoalho marinho a cerca de 600 milhas náuticas (1.100 km) da costa, numa profundidade de 4 mil metros. Mas um atraso de uma semana na saída (por conta de problemas técnicos no navio) forçou Brandini a encurtar o trajeto em dois terços.

Poderia até ter ido mais longe e mais fundo, mas o professor resolveu dar meia volta antes do previsto e passar mais tempo na linha dos mil metros de profundidade, para reinvestigar algo inusitado: o aparecimento de um pico duplo de clorofila na Estação 4, ainda no segundo dia de navegação. O primeiro e maior pico apareceu na tela a 110 metros de profundidade. Normal. O segundo, um pouco menor, apareceu a 230 metros. Totalmente anormal, ainda mais numa profundidade dessas, abaixo da zona eufótica.

“Nessa profundidade já não tem mais quase nada de luz; aos seus olhos seria tudo preto”, explica Brandini. “É como se você descobrisse uma planta que cresce no escuro. Nunca vi um pico duplo como esse.” Amostras de água dos dois picos foram coletadas, mas a identificação dos organismos presentes em cada uma delas só será possível depois de estudos mais detalhados em terra, envolvendo análises genéticas e morfológicas.

“Nunca mais vamos ver isso”, previu o biólogo Tarcísio Cordeiro, professor da Universidade Federal da Paraíba, quando o pico duplo apareceu pela primeira vez.

Três dias depois, Brandini resolve desafiar essa previsão e voltar ao local para ver se o segundo pico continuava lá e fazer novas coletas em horários e pontos diferentes da mesma região. Na primeira descida dos sensores, o segundo pico reaparece, só que mais fraco. O navio segue sobre a isóbata de mil metros, fazendo mais prospecções para o sul e para o norte. Mas o pico desaparece na sequência. “Ele veio e se foi”, lamenta Brandini, curioso para saber que tipo de plâncton era aquele e o que estava fazendo a 230 metros de profundidade.

Ainda que a caçada aos segundo pico tenha sido infrutífera, a capacidade de dar meia volta com o navio para procurá-lo é simbólica da importância do Alpha Crucis para a oceanografia brasileira. Apesar dos seus 8 mil quilômetros de costa e 4,5 milhões de quilômetros quadrados de território marinho, o Brasil tem uma deficiência profunda e histórica em sua oceanografia: a falta de navios de pesquisa acadêmica para vasculhar e compreender esse gigantesco universo oceânico.

Com exceção do Navio Oceanográfico Professor W. Besnard, aposentado em 2008 por conta de um incêndio à bordo, pesquisadores que queriam ir um pouco mais longe da costa por mais tempo eram obrigados a “pegar carona” em navios de pesquisa estrangeiros ou de empresas privadas, da Marinha ou da Petrobrás – nos quais a ciência acadêmica não é necessariamente a prioridade, e seria impensável mudar de rumo para procurar uma nuvem de fitoplâncton.

“Nunca tive um navio de pesquisa assim, à minha disposição, então tenho de aproveitar”, brinca Brandini. “O fenômeno apareceu na nossa frente e fomos atrás dele. É assim que se faz ciência, é assim que se faz descobertas; não seguindo um curso predeterminado todas as vezes.”

É apenas o início de uma longa jornada científica oceânica, prevista para consumir três anos de pesquisa, incluindo mais 10 expedições do Carbom com o Alpha Crucis no Sudeste e no Nordeste. O projeto faz parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para o Oceanos, um grande projeto envolvendo 14 instituições de pesquisa e 120 cientistas.

FONTE: O Estado de S. Paulo